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No “Kitchen Sink Cinema”, de uma maneira geral, os personagens deveriam ser ingleses. O filme deveria ser a preto e branco, não devendo ter pretensões artísticas ou formais, e o objectivo seria tratar de pessoas normais com problemas normais. É também relativamente comum fazer-se equivaler “Kitchen Sink Cinema” à “British New Wave”, “um conjunto de filmes realizados entre 1959 e 1965 por cineastas, na sua maioria, desconhecidos para a indústria, e que partiam de peças e romances de sucesso” (Lacey 1995: 163). À lista de títulos acima apresentada, Steven Lacey acrescenta The

Kitchen (1961) e The Quare Fellow (1962), embora estes tenham desempenhado “uma

parte menos importante nos debates críticos” (Ibidem: 163).

A ligação destes filmes à, então, nova dramaturgia britânica é de grande proximidade. Os filmes, para além de muitos serem realizados a partir de peças estreadas em palco, em particular no Royal Court, partilhavam também grande parte das equipas criativas: os realizadores e encenadores Lindsay Anderson e Tony Richardson, figuras centrais para a actividade do Royal Court nesse período, assinavam tanto encenações como realizações. Mas também a produtora que se ocupou da quase totalidade destes títulos – a Woodfall Films – foi fundada pelo dramaturgo John

Osborne e Tony Richardson, que se conheceram no Royal Court. E, de igual maneira, muitos actores que integravam os elencos dos filmes vinham dos palcos. Nomes como Albert Finney, Tom Courtenay, Rita Tushingham ou Rachel Roberts viram as suas carreiras reconhecidas pelas participações nos filmes; e os elencos das companhias teatrais garantiam igualmente um leque vasto de intérpretes para as realizações cinematográficas.

Realist cinema adopted a similar position in relation to the existing British film industry as its counterpart in the theatre occupied in relation to the established theatre structures. Just as the new drama was the product of minority theatres attempting to operate in distinctive ways, the new cinema was associated with independent companies and producers; and both appeared at a time when the mainstream was in crisis. In the cinema, the most dramatic manifestation of this crisis was the rapid decline in attendance that characterised the decade as a whole. […] The most obvious reason for this, in the opinion of contemporary commentators, was the rise of television. (Ibidem: 164)

A abordagem ao cinema preconizada por esta “escola realista” tem na sua raiz um episódico movimento, de características documentais, protagonizado pelos mesmos Lindsay Anderson, Karel Reisz e Tony Richardson; e também por Lorenza Mazzetti: o “Free Cinema”.

De matriz documental, terá tido início em 1956 quando Lindsay Anderson projectou várias curtas-metragens no National Film Theatre, tendo inspirado outros criadores e outras mostras de filmes semelhantes, até 1959. Sendo um movimento tido como precursor para a “New Wave” do final da década de cinquenta, tem algumas características idiossincráticas: o “‘Free Cinema’, quer seja entendido como um movimento histórico específico, como um género ou como uma inspiração, foi sempre definido, descrito ou atacado de modos tão díspares que não é surpreendente que haja agora uma grande confusão em relação ao que o termo implica”, afirmará Lindsay Anderson (apud Dupin 2006: 3).

Muito sumariamente, “Free Cinema” corresponde ao título genérico dado a uma série de seis programas onde se mostravam pequenos documentários, no National Film Theatre (NFT), em Londres, de Fevereiro de 1956 a Março de 1959. Nas seis séries de

apresentações incluíam-se não só cineastas britânicos (nos ciclos “Free Cinema”; “Free Cinema 3: Look at Britain”; e “Free Cinema 6: The Last Free Cinema”), mas também alguns estrangeiros: Lionel Rogosin, Georges Franju e Norman McLaren (“Free Cinema 2”); Roman Polanski, Walerian Borowcyzk e outros realizadores polacos (“Free Cinema 4: Polish Voices”); e também Claude Chabrol e François Truffaut (“Free Cinema 5: French Renewal”).

O “Free Cinema” é criado por razões essencialmente pragmáticas: Anderson, Richardson, Reisz e Mazzetti uniram esforços para conseguir mostrar os seus trabalhos. Mas rápido terão percebido que, não obstante serem trabalhos diferentes, partilhavam uma atitude comum em relação ao cinema – ideia expressa no seu manifesto de 1956, assinado pelos quatro.

These films were not made together; nor with the idea of showing them together. But when they came together, we felt they had an attitude in common. Implicit in this attitude is a belief in freedom, in the importance of people and the significance of the everyday.

As filmmakers we believe that No film can be too personal.

The image speaks. Sound amplifies and comments. Size is irrelevant. Perfection is not an aim.

An attitude means a style. A style means an attitude. (apud

Dupin 2006: 9)

O termo “free” indica que os filmes são feitos sem constrangimentos impostos pelas bilheteiras ou por políticas de propaganda. Esta liberdade estendia-se também a uma nova atitute perante a realização, oposta quer ao cinema de cariz mais comercial, quer como à tradição documentarista dos anos trinta, na linha de John Grierson.

The Free Cinema group was particularly critical of the fact that 1950s British films were completely cut off from the reality of everyday contemporary life in Britain, and condemned their stereotypical and patronising representation of the working class. […] Their films attempted to rehabilitate an objective and critical, yet respectful and often affectionate portrayal of

ordinary people at work or at play. At the same time, they were strong advocates of the filmmaker’s freedom to express his/her personal views through his/her film […], of the commitment of the filmmaker as an artist, and his/her role as social commentator on contemporary society. (Dupin 2006: 4)

Formalmente, os filmes “Free Cinema” partilhavam também várias características: eram (quase) todos de curtas dimensões, filmados a preto-e-branco, de câmara na mão, com recurso limitado no que diz respeito à utilização de voz-off ou a comentários, sem grande interesse pela continuidade narrativa e com um uso impressionista de som e edição.

The films recognisable aesthetic was a consequence of three main factors: (1) the conscious decision by the filmmakers to take their cameras out of the studios and into the streets in order to film the reality of contemporary Britain, (2) the extremely limited funds at their disposal and (3) the technology available. (Dupin 2006: 5)

Os filmes “Free Cinema” apresentados no National Film Theatre, por cineastas britânicos, integraram títulos como: O Dreamland (real. Lindsay Anderson, 1953) – um olhar altamente crítico e agressivo sobre o parque temático Dreamland, em Margate, Londres; Momma Dont’t Allow (real. Karel Reisz e Tony Richardson, 1956) – um documentário sobre um típico sábado à noite num clube de jazz, em Wood Green, North London, desde o chegar a casa de rapazes e raparigas, vindos do trabalho, o preparar das roupas e maquilhagens, até ao sôfrego fim de festa; Together (real. Lorenza Mazzetti, 1956) – uma abordagem lírica (e, ao contrário dos outros filmes, ficcionada) à vida da classe trabalhadora do East End londrino, através de dois estivadores surdo-mudos, que servem como pivots para perscrutar labirintos de ruas bombardeadas e estreitas, os pubs e as casas, as comidas e os hábitos, em suma, toda a atmosfera do dia-a-dia da vida da classe trabalhadora; Wakefield Express (real. Lindsay Anderson, 1952) – documentário sobre um jornal de província; Nice Time (real. Claude Goretta e Alain Tanner, 1957) – sobre a vida nocturna em Picadilly Circus, entendida como a alegoria necessária para comentar as disfóricas aspirações dos jovens; The Singing Street (real. N. Mclsaac e J.T.R. Ritchie, 1952) – onde se mostra a cidade de Edimburgo, acompanhando uma série de jogos, lenga-lengas e cantigas infantis, interpretadas por um grupo de sessenta

crianças; Every Day Except Christmas (real. Lindsay Anderson, 1957) – centrado nos trabalhadores do mercado de flores de Covent Garden, tentando dar conta da dimensão poética do dia-a-dia, celebrando a dignidade do trabalho das classes mais baixas; Refuge

England (real. Robery Vas, 1959) – filme sobre o périplo de um refugiado húngaro em

Londres; Enginemen (real. Michael Gribsby, 1959) – onde se acompanha, durante dezoito meses, a vida de maquinistas em Newton Heath, perto de Manchester, captando o sentimento de perda e perplexidade perante as rápidas transformações na rede ferroviária britânica; We Are the Lambeth Boys (real. Karel Reisz, 1959) – documentário sobre a cultura juvenil, mostrando desabridamente a vida de um grupo de jovens no trabalho e no lazer, sublinhando as suas frustrações, anseios, sonhos e, sobretudo, modos de vida; ou Food for a Blush (real. Elizabeth Russell, 1959) – um documentário atípico, de tom surrealista, com sequências narrativas ficcionadas, sobre as desavenças de um casal, mas visando atingir o sentimento de vazio da geração que estaria na casa dos vinte anos em 1955 (data de rodagem do filme).

Assim, regra geral, este movimento poderá ser caracterizado da seguinte maneira:

A sympathetic interest in communities, whether they were the traditional industrial ones… or the new, improvised one of the jazz club… fascination with the newly emerging youth culture… unease about the quality of leisure in an urban society… and respect for the traditional working class. (Hillier and Lovell apud Lacey 1995: 166-67)

Este movimento (ou, pelo menos, atitude em relação ao cinema) irá desembocar na “New Wave Cinema”, ou “Kitchen Sink Cinema”, do final dos anos cinquenta. Contudo, a realização destes filmes – longas-metragens ficcionadas, compostas essencialmente a partir de textos dramáticos, novelas e romances – não eram somente “‘Free Cinema’ com um novo rótulo” (Ibidem: 167). Apesar da estreita proximidade com as peças dos “Angry Young Men”, estes filmes não eram somente versões fílmicas dos textos dramáticos estreados em palco. Assim, na passagem do palco para o ecrã, sofriam “reconstituições radicais” (Ibidem: 167). Tal como faz notar Stephen Lacey, esta condição notava-se desde logo no facto de os dramaturgos estarem envolvidos no processo de criação, trabalhando, frequentemente, em colaboração com os argumentistas, com outros escritores ou com os próprios realizadores em novas versões

dos textos com vista aos argumentos finais; mas também no facto de a autoria maior ser creditada aos realizadores – trata-se do Look Back in Anger ou A Taste of Honey de Tony Richardson, e não de Osborne ou Delaney. Tudo isto promovendo a liberdade criativa da figura do realizador e apoiando o seu estilo e o seu modo particular de entender o cinema.

Esta atitude passava, necessariamente, pela rejeição do sistema de estúdios, que tomavam como “snob, anti-inteligente, emocionalmente limitado, voluntariamente cego em relação às condições e problemas do presente, e dedicado a uma ideia desusada e estafada de nacionalismo” (Anderson apud Lacey 1995: 166).

O que lhes interessava era um cinema que conseguisse dar uma mais correcta conta dos espaços, ambientes e modos de vida da classe trabalhadora. No ecrã, os criadores conseguem trazer para a cena com rigor realista os espaços que nas peças ficariam apenas aludidos e figurar com precisão os “interiores atafulhados das casas do realismo da classe trabalhadora” (Ibidem: 168).

One of the most obvious and important differences between the films and the plays on which they are based is the way that the former takes advantage of the camera to transform the spatial systems of the latter, opening up the action in ways that lead to a radical transformation of the narratives. This usually takes the form of representing directly on screen situations and locations that are referred to in the plays. (Ibidem: 168)

Assim, mostram-se os mercados, as praças, os locais de trabalho, as ruas, os pubs, os locais de lazer, ao passo que nas peças estes locais “exteriores” eram sobretudo apenas referidos. Deste modo, e ainda no entender de Stephen Lacey, “mostrar a sociedade britânica desta maneira possibilitou tomar os filmes como ‘documentários’, ligando-os a um realismo que capta a superfície de um Reino Unido que é diferente daquele habitualmente representado no cinema” (Ibidem: 169).

Mas a vida do normal dia-a-dia das classes trabalhadoras não é figurada sem que ocorra um processo de estilização da sua rudeza e, até, brutalidade. Assim, embora o intuito fosse o de retratar o real, avançava-se também com uma visão poética sobre o mundo, ou seja, na construção de um tímido “realismo poético”.

To take one recurrent example: most of the films contain a sequence (at least one) in which the characters escape to the countryside. At some point, they look back towards the town in a panoramic shot that is self-consciously beautiful […] the appeal of these sequences is partly aesthetic – we take in and admire the scenery as spectacle – an partly sociological; the town/city is laid bare, its shape and outline caught often within a single frame. (Ibidem: 172)

No que diz respeito ao processo de adaptação das peças para filmes, um outro dado merece menção. Com a distância temporal que há entre a apresentação das peças nos palcos e as suas versões fílmicas, Lacey argumenta também no sentido de haver uma transformação no contexto do realismo social que englobava estas criações artísticas. Assim, argumenta que neste processo a famosa “revolta” dos jovens dramaturgos se transforma em “Working Class Realism” (“realismo da classe trabalhadora”), caracterizando um cinema claramente comprometido com o realismo e evidenciando um assumido projecto político.

Realism in this sense relies for its effect on being different from anything else around it. Its innovations are towards a greater ‘truthfulness’ in its depiction of social reality and its representations are ‘how things really are’. (Ibidem: 164) A consciência política destas produções é, pois, um dos traços mais representativos das criações “Kitchen Sink” deste período, obedecendo a uma estratégia de representação realista (céptica, como a adjectiva Robert Hewison)30. O estado de vigilância que mantinham aos hábitos culturais de um capitalismo que se ia transfigurando e, de um modo geral, ao modo de vida ocidental – próspero e indolente –, obrigava a um embate com as pressões sistémicas que as instituições exerciam sobre os indivíduos (e em particular sobre a classe trabalhadora. Deste modo, as peças e os filmes resultantes deste posicionamento crítico, são loci férteis para a discussão sobre a cultura de massas e os modos de cultura mais enraizados nas tradições populares – o que equivale a dizer,

30 “Depois do romantismo da década de quarenta, o realismo céptico dos anos cinquenta teve um efeito

refrescante, mas o cepticismo é uma base frágil para a cultura. A revolta dos anos cinquenta era tão frequentemente uma raiva que provinha da frustração pela inacessibilidade a um número restrito de privilégios, como uma apaixonada indignação moral contra a passividade e a falta de espírito do seu tempo” (Hewison 1981: xi).

sobre os modos de vida. Se a cultura de massas se via servida pelos meios de comunicação e ampliada pela publicidade e máquinas de venda, estes criadores buscavam nas suas criações uma dimensão mais próxima das aspirações e anseios daqueles que retratavam. Assim, não é raro estas criações deixarem entrever secos comentários à futilidade e vacuidade das diversões oferecidas às classes mais baixas da sociedade, bem como um implícito louvor às suas tradições mais genuínas.

One way of viewing this is to argue that these films are not simply concerned with the cultural and social experience of the northern working-classes, but also with the problem of ‘culture’ itself – and especially the encroachment of mass culture on the lives and opportunities of the communities represented. This concern with the debilitating effects of mass culture is a current that runs deep in the period, as we have seen, crossing artistic forms and surfacing in a range of discourses, and centring on a fear for the political and cultural homogeneity of the working class. In this way, the concern with traditional working class communities is of a piece with the hostility towards mass culture, and is reflected in the way that New Wave realist films are overwhelmingly set in domestic and leisure spaces (the pub, the club, the dance-hall, the fairground) – and hardly ever in the workplace. (Ibidem: 174)