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A maneira como a violência é representada na dramaturgia do pós-guerra, tal como temos vindo a expor, dependerá em grande medida do seu contexto histórico. Ainda que estejamos a laborar sobre conceitos (potencialmente) universais e intemporais – sobretudo no que diz respeito à constituição das tipologias de violência com que operaremos o corpus de textos dramáticos seleccionado – o foco da nossa exposição e análise é, precisamente, a singularidade do imediato pós-guerra e dos anos seguintes, pela década de cinquenta. E, neste particular, do caso britânico, da sua dramaturgia e, ainda mais especificamente, da dramaturgia de matriz realista, mais permeável à irrupção e aos efeitos do real. Para tal, importa determo-nos, para já, ainda que muito brevemente, na caracterização deste período, descrito pelo historiador Peter Hennessy como “The Short Post-War”:

[W]hich was the triumphant, if exhausting, outcome of 1939-45 to the early months of 1960 which saw a significant reappraisal of Britain’s place in the world and a growing recognition of Britain’s incapacity to sustain the level of influence its political class still craved in the bipolar age of American and Soviet superpowerdom. (2007: 2)

Daremos particular atenção aos anos cinquenta londrinos – aqui considerados como o epicentro das transformações em foco. Assim, a capital inglesa, no imediato pós-guerra e na primeira metade dos anos cinquenta é uma cidade que vive sob uma severa austeridade (os racionamentos impostos pela guerra só serão levantados em 1954) e,

13 Expressão de Peter Hennessy – “easement tinged with anxiety” – para descrever o paradoxo que

simultaneamente, se encontra em plena vertigem de reconstrução. Exemplo dessa vertigem terá sido o “Festival of Britain”, um mega evento cultural e recreativo, concebido para elevar a auto-estima britânica e promover a sua representação cultural, construindo-se para isso um amplo parque de diversões, encomendando-se e apresentando-se os mais diversos espectáculos; em suma, promovendo-se – num contexto elogioso (embora, também, de uma eventual artificialidade fantasiosa) – o que de melhor se fazia no Reino Unido nos campos da ciência, da tecnologia, do desenho industrial, da arquitectura ou das mais variadas artes. Não obstante o alcance desta iniciativa, o Festival of Britain não deixa de ser um exemplo da disforia que se viveria nestes anos, entre a tranquilidade e a ansiedade. Assim, Londres é uma cidade em plena transformação social e geográfica, a implodir de agitação demográfica, com uma aposta no desenvolvimento urbano, cujas ruas são dominadas pela circulação de autocarros, de eléctricos, de Austin Sevens e, ao mesmo tempo, de edifícios destruídos, com poucos supermercados e com racionamento nos mais variados produtos, dos mais elementares aos mais específicos, dos ovos à gasolina; e com um fumo (o famoso smog) que se tornará uma dos mais icónicas (e indesejadas) imagens de marca da cidade.

De resto e de um modo geral, as tensões que marcariam o Ocidente delineavam também as que se apresentavam em contexto britânico (e mais concretamente, londrino). Este período, sendo normalmente considerado como conservador e extremamente materialista, é decididamente marcado pelo contexto de Guerra-Fria, num mundo bi-polarizado entre Ocidente e Oriente, a reboque das dissensões entre as duas potências económicas e militares que emergem da 2.ª Guerra Mundial: Estados Unidos da América e União Soviética. É também o tempo dos movimentos de descolonização que provocarão embates insuperáveis na cosmovisão do homem ocidental em relação ao resto do mundo, alterando também de forma decisiva noções como masculinidade, Império, nação, género, intervenção política ou revolução. Os anos cinquenta ainda marcados por eventos determinantes para o estabelecimento de um novo mapa geo- político, tais como a Guerra da Coreia (1950-53); a crise do Suez (1956); o estabelecimento do Mercado Comum Europeu (precursor da União Europeia) pelo Tratado de Roma (1957); ou a Revolução Cubana (1959).

Assim, o período aqui em estudo inicia-se sob o signo da austeridade mas desencadeia uma nova etapa do sistema capitalista – a sociedade de consumo –, alicerçado em sonhos de prosperidade (promovendo, em especial, a compra dos mais variados electrodomésticos e automóveis) que os então recém-criados meios de

comunicação de massa se encarregarão de promover e impulsionar. Regista-se ainda o surgimento (com epicentro nos E.U.A.) de uma cultura juvenil, com a constituição de um património cultural próprio – na música de Jazz e, sobretudo, o Rock n’ Roll) –, que as marcas comerciais vão saber rentabilizar.

No que diz respeito à política nacional britânica, o pós-guerra é, desde logo, marcado pela eleição do Trabalhista Clement Attlee (1945-51), que constituiu as bases do Welfare State [Estado Social] e do National Health Service [Serviço Nacional de Saúde], medidas que visavam uma democratização e universalização dos bens mais essenciais – a educação e a saúde –, bem como a nacionalização das mais importantes indústrias. Mas o mandato de Attlee será também marcado pela crise da libra esterlina (1947); consequência, em grande medida, dos esforços de reconstrução e do endividamento para com os E.U.A..

Em 1955 é eleito o Conservador Anthony Eden, que será primeiro-ministro de 1955 a 57. Mas o seu mandato não sobreviverá ao rude golpe na auto-estima britânica imposto pela Crise do Canal do Suez, que humilhou internacionalmente a diplomacia e o poder militar britânico. Eden, por razões de saúde, resignará ao cargo e, em Janeiro de 1957, será eleito Harold Macmillan, também conservador, que governará até 1963. A sua política ficará conhecida por um pragmatismo de feição keynesiana, recorrendo ao investimento público para fomentar o crescimento da economia. A sua governação será epitomizada no famoso discurso “We never had it so good”14, onde apresentava o seu tempo como um período de grande prosperidade, dando voz a um sentimento corrente, com baixas taxas de desemprego e com uma crescente melhoria das condições de vida, esquecendo-se, contudo, que nem todos seriam contemplados com essas medidas e que, entretanto, cresciam perigosas assimetrias sociais.

Para David Pattie, que resume eficazmente as convulsões sociais e políticas ocorridas nesta década, o Reino Unido via-se apanhado entre duas ideias sobre si próprio:

It can either be Modern Britain, providing care for all of its inhabitants – or it can be Great Britaim, a superpower

14 “Sejamos claros, a maior parte de nós nunca esteve tão bem. Ide por todo o país, às cidades industriais,

às quintas, e verão um estado de prosperidade como nunca tivemos no nosso tempo de vida – nem em toda a história do nosso país. Aquilo que começa a inquietar alguns é: “Será bom demais para ser verdade?; ou talvez eu deva dizer: “Será bom demais para durar?”, Harold Macmillan, excerto de discurso proferido no campo desportivo de Bedford, 20 de Julho de 1957.

measuring itself against the US and the USSR. It cannot be both. (Pattie 2012: 7)

Se a dramaturgia britânica é, tal como a entende o crítico Michael Billington, uma dramaturgia muito interessada em interpelar o estado da nação (leitura com a qual, inevitavelmente, concordamos), a cronologia para a história do teatro em Inglaterra estará forçosamente anexa ao mapa que acima introduzimos. Este mesmo crítico, em

State of the Nation (2007), pergunta: quando é que começa, exactamente, a história do

teatro britânico do pós-guerra? Para alguns, avança ele, começará no “VE Day”, a 8 de Maio de 1945, “o dia em que uma nação grata celebrou a derrota do Nazismo e por todas as ruas irromperam celebrações, um pouco por todo o país” (2007: 5). Outros considerarão que só mais tarde, a meio da década, com a chegada dos dramas em verso de Christopher Fry e T.S. Eliot, terá lugar uma mudança no paradigma cultural. Ainda segundo Billington, e corroborando uma visão mais popular, será com as estreias de

Waiting for Godot (1955) e Look Back in Anger (1956) que começará verdadeiramente

a história do teatro britânico do pós-guerra: “até aí, não obstante o heróico individualismo de actores como Olivier e Gielgud, o drama britânico era ainda governado por escapismo rendilhado e refinamento burguês” (2007: 5). E, concluindo, avançando com as suas próprias balizas temporais:

For me, however, the story really starts on 26 July 1945. That was the date on which it was announced that Labour, with the slogan “Let us face the future”, had won 393 seats in the General Election as against 213 for the Conservatives and twelve for the Liberals, with twenty-two independents. Churchill, the great wartime symbol, had been swept from power to be supplanted by Clement Attlee: a decent, supposedly dull Labour leader, who looked like a suburban bank manager, listened eagerly to the country cricket scores and relished the novels of Agatha Christie. (Ibidem: 5)

Ainda segundo Billington, se alguns olharão para os anos da governação de Attlee como uma oportunidade perdida, “um período no qual o Reino Unido falhou por não enfrentado o seu diminuído estatuto mundial, porque perdeu o barco da Europa e se manteve intacto o antigo sistema de classes” (Ibidem: 6), outros sublinharão as conquistas sociais nas áreas da saúde, educação, segurança social ou habitação, um

progressivo processo de descolonização e o início da transição de um período de austeridade de guerra para uma aliciante prosperidade.

Seja com que balizas temporais se olhe para este período, será inegável que foram anos de grandes transformações, dependendo, contudo, do ponto de vista a maneira como se fará o balanço. Essa situação é caracterizada pelo historiador John Charmley da seguinte maneira:

Images crowd around in such conflicting forms that it is tempting to ask the real post-war forties to stand up: food queues, rationing, frozen water pipes, grey bread, Evelyn Waugh excoriating the Attlee regime for its levelling ways; or a truly egalitarian era, where moral purposes counted above profit and individual advantage, and a united people strove successfully to overcome the effects of the most devastating war in history; a false dawn when time and energy were wasted on nonsense like nationalization; or a bright new morning when the foundations of a better, more decent Britain were laid. (apud Billington 2007: 6)

No fundo, este é o retrato de uma situação paradoxal, “uma história de tranquilidade contaminada por ansiedade, um paradoxo que, de certo modo, capta os anos cinquenta no Reino Unido de uma forma geral” (Hennessy 2007: 7).

It would have needed a clairvoyant with a strong streak of pessimism in his or her make-up in the early 1950s to have foreseen this conjunction. One must, therefore, begin with the political and social climate of the time which derived from recent experiences and current preoccupations. For, in the early Fifties, the shadows of the world war past (1939-45), the limited war present (Korea) and the possibility of absolute war future (terminal) were the present. (Ibidem: 7)