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1.2 Da visibilidade, um panorama

1.2.3 Lésbicas na TV brasileira

O Brasil não tem a tradição norte-americana na produção de seriados nem a presença de canais pagos que exploram temas mais ousados, como HBO e Showtime, bancando produções próprias. O canal pago GNT cumpre um pouco essa função ao exibir documentários, sobre o tema, que circulam pouco no Brasil. Ainda assim, não se compara à TV norte-americana, que já dispõe de canais pagos exclusivos para homossexuais. Um espaço muito valorizado pelo telespectador brasileiro e no qual podemos ter um termômetro da representação das lésbicas na televisão é a telenovela. Numa pesquisa na internet sobre a história das lésbicas na televisão brasileira, havia uma ferramenta do Google que nos oferecia algumas pistas. Ao buscar “lésbicas na tv brasileira” e escolher a opção “cronograma”, encontrava-se o gráfico a seguir.

Gráfico 1 – Pesquisa “Lésbicas na história da TV brasileira”.

Fonte: Disponível em: <www.google.com.br>. Acesso em: 10 out. 2010.

O gráfico pode não ser preciso, mas há pistas de que, no Brasil, a presença de lésbicas na televisão seguiu, ainda que de maneira mais tímida, a frequência da TV norte-americana. É bom ressaltar que a pesquisa se refere à presença de lésbicas na televisão, incluindo comerciais, aparições de Madonna beijando mulheres, enfim, qualquer aparição de afeto lésbico, não necessariamente restrita às telenovelas.

É curioso pensar que, no início do século XXI, volta e meia há uma polêmica sobre se deve ou não haver um beijo gay nas novelas da Rede Globo que vão ao ar às 21 horas. O debate soa até ultrapassado quando se constata que o primeiro beijo homossexual da TV aberta no Brasil já aconteceu na década de 1960 e foi protagonizado por Vida Alves e Geórgia Gomide.

Ousadia pouca é besteira; em 1963, no teleteatro “Calúnia”, peça de Lilian Helmann, na Tupi, ela [Vida Alves] deu o primeiro beijo homossexual da TV brasileira. Sua parceira foi a atriz Geórgia Gomide. As duas viviam as professoras Karin e Martha, acusadas de lésbicas pelas alunas e de repente uma delas se revela apaixonada pela outra. – Um beijo para a época era um escândalo, pois nem nas ruas ele era usual. O universo da TV era pequeno, tinham apenas dez mil aparelhos ligados (SENNA, 2008).

Figura 28 – Calúnia! Em linhas gerais, vemos que até 1980 a representação de lésbicas é praticamente inexistente nas novelas da Rede Globo. Em Os gigantes (1979-1980) há uma insinuação de um interesse homossexual entre as personagens de Dina Sfat e Lídia Brondi. Em Ciranda de pedra (1981), a personagem de Mônica Torres vive uma espécie de lésbica no armário.

O primeiro casal assumido é formado por Cecília (Lala Deheinzelin) e Laís (Christina Prochaska), que viveram um namoro lésbico em Vale tudo (1988). O casal não agradou ao telespectador, que criticou as cenas em que apareciam de mãos dadas. No capítulo 69, Cecília morre em um acidente de carro e Laís fica arrasada. Por quatro capítulos, a novela instaura a discussão sobre a herança em relacionamentos homossexuais, pois o casal tinha uma pousada em Búzios. No último capítulo, Laís aparece com sua nova sócia, vivida pela atriz Bia Seidl, e a sugestão de que arrumou uma nova namorada.

Figura 29 – O primeiro casal lésbico da TV: vale tudo? Em Bebê a bordo, Joana Mendonça (Débora Duarte), uma lésbica masculinizada, tenta relacionar-se com Ângela (Maria Zilda), mas não tem sucesso.

Somente após 10 anos, tentou-se emplacar outro casal lésbico no horário nobre da emissora. Em 1998, Torre de Babel apresentou o casal Rafaela (Christiane Torloni) e Leila (Silvia Pfeifer), lindas, bem-sucedidas e felizes. A intolerância do telespectador, porém, fez com que ambas morressem na explosão de um shopping.

Figura 30 – A intolerância vence: não vale dançar mulher com mulher. O público não mostrou o mesmo preconceito em relação a Tonhão, vivida por Cláudia Raia no quadro “As Presidiárias”, do humorístico TV Pirata, que foi ao ar no mesmo ano que Torre de Babel. No programa, a lésbica sempre seduzia suas companheiras de cela. A atriz, acostumada a fazer papéis de símbolo sexual, teve de insistir para que o diretor,

Guel Arraes, a deixasse fazer a personagem. Será que uma lésbica não pode ser símbolo sexual? Parece que, no final dos anos 1980, Arraes se esqueceu de Greta Garbo. Para que Cláudia Raia assumisse a personagem, teve de passar por uma transformação visual no estilo de diva a dyke. As lésbicas protestaram contra o visual de Tonhão, totalmente butch (masculinizada), mas o público em geral se divertia com o estereótipo. Essa imagem da lésbica presidiária costuma ser recorrente no cinema, como lembram os pesquisadores. “Las películas de presidiarias han sido siempre una excusa para explotar el sensacionalismo lésbico con un presupuesto bajo” (HADLEIGH, 1996 p. 125).

Figura 31 – A intolerância ri: estereótipo butch pode. A primeira aprovação da audiência – pelo menos, as personagens não morreram antes do final da trama – ocorreu apenas em 2003. Em Mulheres apaixonadas, o casal de adolescentes Rafaela (Paula Picarelli) e Clara (Aline Moraes) viveu seu primeiro amor e enfrentou o preconceito da família e de colegas. Durante a trama, quase não houve cenas em que as duas se tocassem. Além disso, as personagens provocaram a polêmica sobre a exibição ou não de um beijo entre um casal homossexual no horário nobre da TV brasileira. De um lado, a reprovação do público conservador; de outro, o incentivo da militância homossexual. A saída encontrada pelo autor da trama, Manoel Carlos, desagradou a todos. No último capítulo, numa encenação da peça Romeu e Julieta, apresentada no teatro da escola, Clara e Rafaela trocam um singelo toque de lábios.

Na sexta-feira (10/10), no último “ato” da novela, Manoel Carlos banalizou o mérito de ter incluído o tema da homossexualidade em sua trama, deixando-se levar por uma característica peculiar de seu trabalho: ele “ouve” a opinião pública e a mídia. Aproveitando as cenas de Romeu e Julieta, falseou a realidade, entronizou o preconceito, coroou a homofobia (...) Manoel Carlos preferiu vestir Rafaela de Romeu. Numa

confusão entre novela, literatura e realidade, o Romeu pôde beijar a Julieta (LIMA, 2003).

Figura 32 – Na Globo, valem Romeu e Julieta; Clara e Rafaela, não. Na novela seguinte, Celebridade, aparece o casal Laura (Claudia Abreu) e Dora (Renata Sorrah). Laura é bissexual, o romance é fugaz e não chega a chamar a atenção. Em 2004, a lesbianidade volta com bastante visibilidade por meio do casal Eleonora (Mylla Christie) e Jenifer (Bárbara Borges), da novela Senhora do destino. Na trama, enfrentam preconceito de familiares e amigos, mas também são acolhidas por vários personagens, trocam selinhos, adotam uma criança e terminam juntas e felizes. As personagens conquistaram a aceitação dos mais preconceituosos. Gomide (2006) ressalta que as telespectadoras que discutiam os rumos do casal pelo Orkut aprovavam as cenas de intimidade, mas, ao mesmo tempo, temiam uma má reação do telespectador hegemônico.

A partir daí, as outras personagens lésbicas que apareceram nas telenovelas não tiveram relacionamentos estáveis nas tramas nem foram tão marcantes quanto Jenifer e Eleonora. Em Belíssima (2006), o sutil envolvimento entre Karen (Mônica Torres) e Rebeca (Carolina Ferraz) só se concretiza no último capítulo. Depois de se envolver com alguns homens, Rebeca opta por Karen, com quem termina brindando em alto-mar. Em Duas caras (2007), Dolores (Vera Fisher), deixa várias pistas de que tinha uma queda pela sua secretária. A discrição foi tamanha que ninguém notou, nem a secretária.

A favorita (2008), sucessora de Duas caras, foi mais explícita ao mostrar o amor de Stela (Paula Burlamarqui) por Catarina (Lilia Cabral). Depois de ajudar Catarina a se livrar do marido alcoólatra, machista e violento, Stela a leva para Buenos Aires, onde, supomos, vivem uma feliz lua de mel.

Figura 34 – A lua de mel. É preciso registrar que, atualmente, personagens lésbicas têm aparecido com frequência em séries exibidas pela emissora. Entre exemplos recentes está Tudo novo de novo (2009), que trouxe Letícia (Irene Ravache), namorada de Ruth (Arieta Corrêa), ex-mulher de Miguel (Marco Ricca). Na trama, mostra-se a dificuldade da filha de Ruth, Júlia (Poliana Aleixo), em entender a orientação sexual da mãe. No mesmo ano, a emissora exibiu Cinquentinha, em que Leila (Angela Vieira), uma jornalista lésbica, seduz Mariana (Marília Gabriela). Na série policial Força tarefa, exibida em 2010, houve um selinho entre a sargento lésbica Selma (Hermila Guedes) e a heterossexual Jaqueline (Fabíola Nascimento).

Como o beijo lésbico de Calúnia caiu no esquecimento, pode-se dizer que há um novo marco nas telas. Pelo SBT, a novela Amor e revolução exibiu, no dia 12 de maio de 2011,

o primeiro beijo lésbico da telenovela brasileira, numa cena que durou praticamente 1 minuto e foi compartilhada e comemorada muitas vezes pelas redes sociais.

Figura 35 – Vale a pena ver de novo: primeiro beijo outra vez. Depois do SBT, a Rede Globo deu vez ao beijo lésbico, selado, literalmente, pelas atrizes Giovanna Antonelli (Clara) e Marina (Tainá Müller), na novela Em Família, exibida em 2014. Foram três selinhos seguidos nos capítulos finais que não empolgaram as telespectadoras lésbicas, uma vez que ficaram bem frios se comparados aos do SBT ou aos beijos dos casais heterossexuais da telenovela.

Figura 36 – E teve até casamento. Depois do jovem casal de Em Família, a telenovela Babilônia (2015) trouxe uma par romântico de lésbicas mais velhas, interpretadas por Fernanda Montenegro e Nathália

Timberg, que logo no primeiro capítulo já protagonizaram um beijo lésbico. Imediatamente após a exibição da cena, setores mais conservadores da sociedade brasileira, liderados pelas bancadas evangélicas, protestaram e iniciaram uma campanha de boicote ao programa. Reações como essa indicam que boa parte da sociedade brasileira ainda tem um bom caminho a percorrer para se despir de atitudes preconceituosas.