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4.3 A androginia é feminina

4.3.1 Origens do melhor de dois

Há muitas histórias e interpretações, nas mais diversas áreas, entre elas religião, antropologia, estética e psicologia, acerca da figura do andrógino. Libis (2001) lembra que, na alquimia, o mundo é em seu princípio considerado andrógino, entendendo a androginia como a reunião e a síntese dos contrários. “Esa androginia primordial por la que se define la armonía y también la victoria sobre el tiempo” (LIBIS, 2001, p. 128). Em uma das interpretações míticas citadas pelo pesquisador está a de que a androginia representa a solução da tensão sexual e, ao mesmo tempo, a sua exasperação, sendo sempre um incremento de capacidade. “Y es que el andrógino es ‘sonado’ siempre por el inconsciente como una entidade organicamente superior al ser monosexuado, que es el resultado de una ruptura o escisión” (LIBIS, 2001, p. 124).

Etimologicamente, a palavra androginia vem do grego andros, que significa homem, masculino, e gimnos, mulher, feminino. O primeiro registro de seu uso está no texto O banquete, de Platão, em que o filósofo explica o surgimento do amor. Ele defende a existência original de três sexos, os quais chamou masculino, feminino e o andrógino.

... a figura de cada homem era inteira, sendo as costas arredondadas e as costelas em semicírculo; tinham quatro mãos, e pernas em número igual ao das mãos; sobre o pescoço bem redondo, duas caras, iguais em tudo, mas o crânio, sobre os dois rostos postados um em posição contrária ao outro, era um só; as orelhas quatro; duas as partes pudendas e todo o resto dobrado como daí se possa imaginar (PLATÃO, 2003, p. 17).

Eles eram a criação que Zeus mais admirava. Muito orgulhosos, enfrentaram os deuses. Para puni-los sem extinguir a espécie, Zeus optou por cortá-los ao meio, fazendo com que cada um virasse dois. Porém, cindidos, passaram a buscar suas metades, mas a cada encontro não era mais possível um encaixe. Zeus então optou por passar as partes pudendas para a frente do corpo. Dessa forma, se macho e fêmea se juntassem, poderiam se reproduzir e, se dois machos se encontrassem, “da reunião resultaria pelo menos a satisfação e, acalmados, se entregariam ao trabalho, cuidariam de outros interesses da vida” (PLATAO, 2003, p. 19) A partir desse mito, Platão explica não só a origem do amor, mas também a das mulheres homossexuais.

Todos os varões, portanto, que são segmento do que é comum a dois, são chamados de andróginos, são mulherengos e a maioria dos adúlteros deriva daquele sexo, e todas as mulheres caídas por homens e adúlteras procedem daquele sexo. No entanto, todas as mulheres que são segmentos da fêmea não dão a mínima atenção aos varões; ao contrário, são mais voltadas para as mulheres, e é daquele sexo que as lésbicas procedem (PLATÃO, 2003, p. 19).

No entendimento do filósofo, andróginas são aquelas figuras que originalmente comportavam o sexo masculino e o feminino. Tomar desse pensamento originado a partir do sexo biológico quase impediria pensar numa lésbica andrógina, pois seriam criaturas de origens diferentes. Mas, se essa análise for feita tendo como referência os gêneros, que são muitos, o mito de Platão ajuda a pensar na origem da androginia. Mesmo esta pode ser muitas, pois os gêneros também não devem se limitar a dois ou a três: são múltiplos.

O mito grego da androginia repercutiu em algumas leituras da Bíblia. Há interpretações de que Adão e Eva tinham um só corpo e que depois se dividiram, o que se assemelha à ideia do andrógino e do nascimento do amor narrados por Platão. “En ellos se armonizaban dos dimensiones fundamentales, una procedente de la masculinidade, otra de la feminidad; y la consecuencia de la caída será lá separación de una y otra. Esta visión no es extraña a la idea androgínica...” (LIBIS, 2001, p. 81). Ao analisar a figura do andrógino, Libis a considera uma das chaves do conhecimento. Em outras palavras, entende que o conhecimento será tão mais perfeito quanto encontre em si mesmo uma síntese entre os princípios do masculino e do feminino. ”... el andrógino realiza un deseo de indentificación fundamental, el de lo masculino con lo feminino y vice versa” (LIBIS, 2001, p. 125) Além de Adão e Eva, a figura de Jesus Cristo e também as imagens dos anjos são frequentemente associadas à androginia. O corpo ideal frequentemente

Histórias e mitos a respeito da origem da androginia estão muito ligados ao corpo construído biologicamente, o que não é o foco desta pesquisa. Entende-se a androginia, nesta tese, como uma construção de imagem feita a partir de uma linguagem corporal. Trata-se de uma maneira de vestir o corpo, significando-o culturalmente. Nesse sentido, a androginia, neste trabalho, pode ser associada a outras figuras que, historicamente, embaralharam os códigos culturais que organizam as construções de gênero. Esse jeito de passear pelo mundo remete, por exemplo, à figura do dândi, imagem considerada um exemplo de androginia, frequentemente relacionada à leveza, à liberdade e à sedução.

Os dândis nos excitam porque não podem ser categorizados e falam indiretamente de uma liberdade que desejamos para nós mesmos. Eles jogam com a masculinidade e com a feminilidade; eles moldam a sua própria imagem física, que é sempre surpreendente; eles são misteriosos e ariscos. Eles tambem apelam para o narcisismo de ambos os sexos: com uma mulher, são psicologicamente femininos; com um homem, são masculinos. Use o poder do Dândi para criar uma presença ambígua, fascinante, que excita desejos reprimidos (GREENE, 2012, p. 47).

A esse jogo entre gêneros, Greene acrescenta que particularmente a mulher andrógina consegue reverter o padrão de superioridade masculina em amor e sedução, chegando a neutralizar os poderes do homem. De um lado, não estão vulneráveis a caprichos femininos; do outro, não são apenas masculinas a ponto de não despertar interesse. Segundo ele, essa habilidade entre gêneros se trata “de uma espécie de travestismo mental, uma habilidade para lidar com os espíritos de ambos os sexos”. Ele acrescenta que esse dom é uma das chaves da sedução, pois deixa as vítimas hipnotizadas. Shane McCutcheon, a sedutora de The L Word, é um ótimo exemplo de quem deixa as mulheres hipnotizadas.

Jogar com os papéis de gênero é um tipo intrigante de paradoxo que tem uma longa história na sedução. Os maiores dom juans tinham um toque de beleza e feminilidade, e as cortesãs mais atraentes tinham um traço masculino. A estratégia, entretanto, só funciona bem quando a subqualidade é apenas sugerida; se a mistura for óbvia, ou surpreendente demais, vai parecer bizarra e até ameaçadora (GREENE, 2012, p. 103).

Se esse jogo com a aparência, chave para a sedução como ressalta Greene (2010), e a forma de se colocar no mundo são características fortes da androginia, o dândi não deixa dúvidas de que o segredo é fazer de tudo uma opção estética, o que, mais uma vez, traduz-se em imagem. Seguindo o raciocínio de Greene, essa mistura de gêneros incorpora sutileza e delicadeza, pois, caso contrário, poderia cair numa grotesca caricatura, o que fugiria totalmente à sofisticação estética pretendida na androginia. Essa

sutileza a que Greene se refere encontra eco na análise de Galard (2008, p. 49-62), quando o autor lembra que o dandismo não recomenda extravagância.

Em vez de exagero no fausto ou na fantasia, ele procurava uma distinção sóbria. Sem dúvida, tratava-se de se singularizar, mais por refinamento que por incongruência. (...) O dândi cultiva o detalhe essencial. Mais exatamente, tudo é detalhe para ele, e cada detalhe é capital. (GALARD, 2008, p. 49-62)

Galard (2008) prossegue em suas considerações sobre o dândi, lembrando que sua imagem é um modo de subverter a hierarquia. Nesse sentido, aponta que é como ele postulasse entre o importante e o acessório. Isso parece querer dizer que, numa sociedade heterocêntrica, é uma forma de reverter a hierarquia e fazer do acessório o grande diferencial.

Figura 91 – Dândis modernas: os acessórios são o grande diferencial.