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O LÉXICO HOJE : TEORIAS RECENTES PARA O ENSINO APRENDIZAGEM LEXICAL

Consequentemente à progressão histórica da didática do FLE, a partir dos anos 2000 o ensino-aprendizagem lexical em FLE passou a ser idealizado a partir dos preceitos difundidos pelo Quadro Europeu Comum de Referência para as línguas (doravante, QECRL). Esse quadro foi elaborado com a finalidade de servir de guia de referência para o ensino de línguas estrangeiras a europeus. Ele inaugura uma nova perspectiva de ensino baseada na ação e no papel do aprendiz como ator social, que age na língua em estudo para comunicar. Assim, apesar de não corresponder a uma metodologia, traz princípios bastante claros sobre a importância dos processos de ensino-aprendizagem baseados no desenvolvimento de projetos por meio da

realização de tarefas. Fala-se, assim, no desenvolvimento de competências que são (2000 : 29) “um conjunto dos conhecimentos, capacidades e características que permitem a realização de ações”.

Dentre as competências de um sujeito encontram-se as competências comunicativas em língua, que são “os conhecimentos, capacidades e características que lhe permitem expressar-se unicamente por meios linguísticos” (QECRL, 2000 : 29). Faz parte das competências comunicativas a competência lexical, que pode ser definida como o conjunto de conhecimentos, capacidades, estratégias e características lexicais que o aprendiz possui para interagir com o léxico da língua em estudo seja em situações de compreensão oral ou escrita, seja nas mais diversas situações de produção linguística.

Além da ideia de competência lexical, como o QECRL resgata a ideia de uma pedagogia de projetos, ele coloca o aprendiz como responsável por sua aprendizagem, sendo ele sujeito capaz de mobilizar estratégias, conhecimentos e habilidades para concluir projetos comunicativos (QECRL, 2000 : 29). O professor, neste caso, serve de mediador dos conhecimentos, capaz de guiar o aprendiz à descoberta da língua em estudo. Vemos, portanto, que o QECRL e sua perspectiva acional, que prevê que as ações do aprendiz o levem a adquirir a língu-alvo, também remetem o estudo do léxico à descoberta pelo contexto, sendo explorado à medida que o aprendiz tem necessidade de realizar tal ou tal etapa do projeto ou de se comunicar em determinada situação de interação.

Em 2009, C. Cavalla, E. Crozier, D. Dumarest e C. Richou lançam o livro Le

vocabulaire en classe de langue com o intuito de aliar as teorias acima apresentadas

a fichas práticas para ensino guiado do vocabulário em aulas de línguas estrangeiras. Nesse livro, os autores indicam que (2009:33) apesar de se saber que os processos onomasiológicos (de descoberta dos significados das palavras pelo contexto) e semasiológicos (de descoberta dos significados pela forma)são interativos, ainda hoje há preferência por uma abordagem onomasiológica do léxico, oriunda da aplicação do QECRL e da perspectiva acional.

A fim de se distanciar dessa tendência e propor uma abordagem equilibrada do léxico, eles defendem um ensino-aprendizagem lexical baseado (2009 : 39) em suas estruturas morfológicas, em suas estruturas semânticas oriundas do discurso e suas

estruturas externas que compõem a dimensão cultural (carga cultural compartilhada).

Como pudemos notar pelo percurso teórico acima apresentado sobre o ensino- aprendizagem lexical, em todas as metodologias de FLE e FLM não conseguimos identificar um ensino-aprendizagem lexical no qual se desenvolva, de maneira progressiva, a competência lexical baseada tanto nos conhecimentos depreendidos do contexto como no estudo em si das palavras. Tendo se dado conta da insuficiência dos métodos disponíveis para o ensino de línguas, B. Kumaravadivelu, já em 1993, fundou o pós-método. Para o linguista indiano, os diferentes métodos disponíveis para o ensino de línguas muitas vezes distanciam a prática de ensino de sua teoria e “amarram” os professores, pois determinam algumas regras de uso e preveem seus resultados, aspectos que nem sempre condizem com as necessidades específicas do contexto de ensino. Kumaravadivelu indica no capítulo 8 de seu livro Understanding

language teaching from method of postmethod, publicado em 2008, que o pós-

método surge como proposta de redimensionar totalmente o ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras pois não está associado a nenhuma regra que indique como esse ensino deva acontecer. Ao contrário, prevê autonomia do aprendiz e também do professor. Para isso, pauta o ensino em três princípios pedagógicos: o da particularidade, o da praticidade e o da possibilidade.

O princípio da particularidade é o principal deles, pois reforça o fato de que toda sala de aula é única uma vez que inserida em situações histórico-culturais específicas, com professores diferentes que elaboram aulas adaptadas aos objetivos particulares de seus alunos (Kumaravadivelu, 2008 : 538).

O segundo princípio faz referência diretamente ao professor e ao seu papel de professor-teórico. Para Kumaravadivelu, é preciso que, por meio da formação contínua e continuada dos professores, estes sejam capazes de unir teoria e prática a fim de obter os resultados demandados pelo contexto e pelos alunos.

Já o terceiro princípio pode ser associado ao que Brouat afirma quanto à linguagem como sistema de representação uma vez que dá ênfase à necessidade de explicitar e reforçar os mecanismos sociais, políticos, educacionais e institucionais que moldam a formação identitária dos alunos e dos professores, transformando o contexto social e suas manifestações.

A fim de pôr em prática esses três princípios, o pesquisador menciona dez macroestratégias capazes de direcionar a ação do professor para que este seja capaz de promover um ensino-aprendizagem significativo e correspondente às necessidades dos aprendizes. São elas:

1. Maximizar as oportunidades de aprendizagem. 2. Facilitar a interação negociada.

3. Minimizar os desencontros perceptuais. 4. Ativar a heurística intuitiva dos alunos. 5. Incentivar a consciência linguística. 6. Contextualizar o insumo linguístico. 7. Integrar as habilidades linguísticas. 8. Promover a autonomia do aluno. 9. Garantir a relevância social. 10. Elevar a consciência cultural.

Consideramos que os três princípios e as dez macroestratégias propostas por Kumaravadivelu podem contribuir ao desenvolvimento de ações pedagógicas para promover um ensino-aprendizagem lexical capaz de minimizar as lacunas identificadas até então tanto na história do ensino-aprendizagem lexical quanto no uso pouco adequado que essas lacunas ocasionam. As macroestratégias são excelentes para analisar os materiais didáticos de FLE a fim de identificar se estes privilegiam ou não a autonomia do aluno por meio do desenvolvimento progressivo de sua competência lexical.

Diante de tudo o que dito até então, cabe verificar se as produções de materiais atuais (elaboradas depois de 2010) põem em prática essas teorias e são capazes de promover o desenvolvimento progressivo da competência lexical.

Capítulo 2

Sem emoção: o léxico nos manuais de FLE

A história da didática do francês como língua estrangeira mostra-nos que a evolução do ensino-aprendizagem lexical passou a ocupar uma posição pouco privilegiada a partir do lançamento do Français Fondamental em 1954 e posteriormente com o surgimento das metodologias de abordagem comunicativa. Se, na Metodologia Tradicional, o léxico era rico devido à sua ligação com a língua escrita e com os textos literários, nos quais a riqueza lexical era inegável, a partir das Metodologias Direta e Áudio-visual houve um declínio no seu ensino-aprendizagem visto que passou a ser trabalhado de maneira acessória, ocupando posição lateral e sendo apresentado fora de seu contexto de uso, por meio de frases isoladas, extraídas dos diálogos que caracterizaram essas metodologias. A partir de então, essa posição acessória continuou a ser sedimentada pelo estruturalismo, pela própria evolução da linguística que dava preferência a sistemas fechados passíveis de definições e generalizações e posteriormente pelas metodologias de abordagem comunicativa, que passaram a subjugá-lo às situações de comunicação, chegando- se à ideia de que o léxico seria aprendido por imersão na língua em estudo, por uma impregnação implícita resultante do estudo das situações de comunicação e das leituras pessoais do aluno.

Tal posição, no entanto, foi bastante criticada por diversos estudiosos do ensino-aprendizagem de línguas17 uma vez que, como consequência a essa

perspectiva de aprendizagem do léxico, notaram pouco domínio do vocabulário, mesmo cotidiano, tanto em atividades de compreensão de textos orais e escritos quanto no reemprego adequado de palavras vistas em sala de aula nas situações de comunicação. Assim, a partir do fim de 1980 houve uma retomada dos estudos sobre o léxico e sobre o seu papel na didática das línguas como uma tentativa de lhe conferir um lugar merecido dentre as competências comunicativas. Para tanto, buscou-se compreender seus princípios a partir da relação com estudos de base cognitiva e delinear passos metodológicos de ensino-aprendizagem.

Desde então, muitos estudiosos, dentre eles Janine Courtillon (1989), passaram a compreender o léxico como

17 Cf. Capítulo 1 desta dissertação, no qual discorremos de modo mais aprofundado sobre os estudos sobre o léxico na didática do FLE.

o pivô da aquisição a partir do qual se organiza a sintaxe e, mais tarde, a morfossintaxe. Isso se explica facilmente pelo fato de que o léxico, transportador da informação, contribui, com a entonação, a dar rapidamente aos alunos acesso à comunicação.18

Poucos anos depois, mais precisamente em 1993, Michael Lewis reforça esse movimento que vê o léxico como o pivô de uma língua ao publicar o livro Lexical

Approach: the state of ELT and a way forward. Nele, difunde a abordagem lexical

(lexical approach) de ensino ao entender a língua como léxico gramaticalizado e não como gramática lexicalizada. Assim, afirma que todo o ensino de língua inglesa até então era baseado no erro de se acreditar que, para se comunicar e ser fluente numa língua estrangeira, era preciso aprender bem as estruturas gramaticais, combinadas com algumas palavras isoladas.

No entanto, apesar desse esforço para repensar o papel do léxico e das pesquisas buscando aliar aspectos cognitivos, sociais e a abordagem comunicativa, as pesquisas mais recentes mostram que, ainda hoje, o léxico não encontrou seu lugar no ensino-aprendizagem do FLE. É o que afirmam C. Cavalla, E. Crozier, D. Dumarest e C. Richou (2009 : 39) no livro Le vocabulaire en classe de langue: “O senso comum tende a difundir que o léxico é algo que se adquire ‘um tanto quanto sozinho’, isto é falso”.19 Essa aquisição “um tanto quanto sozinha” faz referência à

ideia de aprendizagem implícita, citada como consequência das metodologias de abordagem comunicativa.

Tal afirmação, se correlacionada à anedota contada na introdução desta dissertação sobre o uso impreciso do verbo travailler e a muitos outros exemplos que encontramos diariamente em sala de aula de alunos com parco domínio do vocabulário, mesmo cotidiano, que não conseguem desenvolver estratégias de tratamento de palavras novas passíveis de torná-los progressivamente autônomos para comunicar na língua em estudo, faz-nos acreditar que ainda hoje os professores

18 Do original: “le pivot de l’acquisition à partir duquel s’organise la syntaxe et, plus tard, la morfo-syntaxe. Cela s’explique aisément par le fait que le lexique, haut porteur d’information, contribue, avec l’intonation, à donner rapidement aux élèves l’accès à la communication ”.

19 Do original: “Le sens commun a tendance à diffuser que le lexique s’acquiert ‘un peu tout seul’, cela est faux”.

de francês língua estrangeira não têm suportes didáticos suficientes para promover um ensino-aprendizagem lexical que seja efetivo no desenvolvimento progressivo da competência lexical do aluno.

Por isso, procuramos investigar qual é o papel acordado ao ensino- aprendizagem lexical em contexto brasileiro por meio da análise de um dos suportes aos quais os professores de FLE têm acesso: manuais de FLE disponíveis em nosso mercado, elaborados para o ensino-aprendizagem de um grande público (de origem e motivações variadas). Nossa intenção com isso é, primeiramente, conhecer melhor o material apresentado aos professores e alunos para, em seguida, problematizá-lo por meio da análise das atividades lexicais propostas e das instruções de ensino (guia pedagógico) a fim de compreender como ele pode ou não auxiliar na construção progressiva da competência lexical nos estudantes de francês.

Contudo, antes de apresentarmos os manuais escolhidos para análise, cabe esclarecer o que entendemos por manual, método e metodologia, visto que esses termos muitas vezes são usados de maneira diversa nos estudos de didática das línguas estrangeiras e podem gerar confusão. Para determinar tais conceitos, seguimos as definições apresentadas por Jean-Pierre Cuq no Dictionnaire de

didactique du français langue étrangère et seconde (2003). Entendemos, pois, como

manual o livro didático disponibilizado para o aluno. Entendemos como método o mesmo livro, quando acompanhado de um guia pedagógico contendo exercícios corrigidos, instruções de aplicação e outros suportes que auxiliem o professor a trabalhar com o manual do aluno. Nesta dissertação utilizaremos as palavras método e guia pedagógico como sinônimas. Como metodologia compreendemos uma maneira de ensinar, pautada por uma série de preceitos que são oriundos de estudos práticos e teóricos e que são capazes de fundamentar a elaboração tanto dos métodos quanto dos manuais de ensino-aprendizagem.