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Líbia: da tirania à anarquia 

(2011)

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INCENT

 H

UGEUX

No rastro de seus vizinhos – o tunisiano Ben Ali e o egípcio Mubarak –, Muamar Kadafi, guia para lá de  imprevisível, será também varrido pelo vento da Primavera Árabe. Incentivador de uma insurreição fora do comum, o Ocidente, com a França à  frente, pode com certeza gabar-se de um sucesso militar. Mas a Líbia, entregue ao caos, à lei das milícias e às pulsões separatistas, deve ainda inventar um “depois”. Quanto ao espaço saheliano,I sofrerá por muito tempo as consequências de uma aventura cujo impacto geopolítico foi 

amplamente subestimado.

Nicolas Sarkozy esperava colher os louros graças à sua campanha líbia safra 2011. É provável que também acreditasse liquidar favoravelmente, desse modo, os desvarios e os desmentidos de Paris no prólogo tunisiano de uma tumultuada Primavera Árabe. E apagar a lembrança do tratamento principesco reservado ao ex-pária Muamar Kadafi, quando veio, em dezembro de 2007, plantar sua  tenda beduína refrigerada sobre o gramado do hotel de Marigny, a dois passos do Palácio do Eliseu. Lastimável! Esse enredo otimista não se tornará realidade. Os estrategistas franceses deverão ceder os comandos da ofensiva militar, mais laboriosa do que o esperado, aos do Pentágono; o processo complacente para com o guia da  Jamahiriya II  – a República das massas – “líbia, árabe, popular e

socialista”, perseguirá por muito tempo ainda o predecessor de François Hollande, suspeito de ter negociado seus favores diplomáticos; quanto à “Líbia nova”, Estado falido na origem e entregue de uma  só vez ao arbítrio de falanges rivais, ela se libertou de seu tirano para mergulhar numa desordem sangrenta, arriscando instaurar por longo tempo um foco de instabilidade no limite de uma área  saheliana arruinada pelos jihadistas e por traficantes de toda laia.

 Aí está o legado mortal de Kadafi, sua vingança póstuma. Pois esse Lenin das areias, ao longo de seus 42 anos de reino, esforçou-se ao máximo para dissolver as instituições estatais no banho de sangue ácido de suas quimeras, teorizadas em três tomos no seu Livro verde , breviário utopista e grandiloquente. Não há mais cidadãos, mas súditos reduzidos a figurantes em “comitês populares”, réplicas falsas de conselhos eleitos. Não há mais exército digno desse nome, mas sim unidades de elite de lealdade cega e uma densa  rede de mukhabarat, agentes de informação de uma vigilância implacável. Nem há ideia de nação, mas uma galáxia de principados tribais cuja obediência era comprada a preço de ouro negro. E dizer que o  jovem “oficial livre” nasseriano, filho único de um pastor miserável, nascido, segundo a lenda, sob uma 

tenda de pele de cabra, foi em 1969 (ano heroico) a figura de proa do golpe fatal à monarquia do indolente Idriss I, soberano que havia partido para a Turquia para usufruir de seu tratamento termal

anual… Foi a ele que coube a honra de fazer a leitura do primeiro comunicado, idealista ao extremo, do Conselho de Comando da Revolução. “A esperança do mundo árabe”, replica então Georges Pompidou, recém-empossado no Palácio do Eliseu.

Munido de um abundante guarda-roupa – da túnica enfeitada ao uniforme de opereta –, Kadafi  vestirá alternadamente diversos figurinos. O do profeta da Umma   árabe, a comunidade dos crentes,

obstinado em aliar sua Líbia com seus vizinhos. O do benfeitor de terroristas, portadores, em todos os lugares, de uma máscara de “combatentes da liberdade”. Além desses, o do pária arrependido, determinado, para passar a tempo para o lado bom do “eixo do Mal”, a dispor de seu arsenal nuclear e químico. Aquele, enfim, do “rei dos reis tradicionais da África”, continente que ele sufocava sob sua  imperiosa atenção.

O recrudescimento

 Vista das margens do Sena, a última Guerra de Muamar começa em 19 de março de 2011, quando um punhado de aviões Rafale e Mirage 2000 ostentando o emblema azul, branco e vermelho dá  cobertura à coluna blindada “legalista” que avança para Benghazi, berço da insurreição. Ilusão de ótica. Pois a revolução, anunciada aqui e ali desde janeiro por tímidos desfiles, havia começado no centro da  indócil capital da Cirenaica III um mês antes. Em 15 de fevereiro, a prisão do advogado dissidente Fathi

Tirbil, fervoroso defensor dos direitos humanos, provoca, diante do quartel-general da polícia e da sede do tribunal local, manifestações dispersadas pelo uso da força. Dias depois, inspirados pelos manifestantes de Túnis e do Cairo – o rais egípcio havia deixado seu palácio uma semana antes – os líderes das manifestações decretam, via rede social Facebook, um “dia de cólera”, cuja onda de conflitos abala cerca de meia dúzia de cidades. Protegido por seus milicianos, o regime de Kadafi reprime as manifestações com balas reais; o que faz as manifestações cívicas se transformarem em motim, e depois em rebelião armada. No dia 19, Benghazi cai nas mãos dos revoltosos, os quais, ajudados pelas deserções de soldados e de policiais, logo se apoderam, entre Tobruk e Ras Lanuf, de toda a faixa litorânea  oriental do país, muito rica em campos petrolíferos. Abalados pela brutalidade da repressão, eminentes dignitários da Jamahiriya   aderem à revolta. A começar pelo general Abdel Fatah Yunes, ministro do Interior, e seu homólogo na Justiça, Mustapha Abdeljalil. O primeiro, cujo assassinato, em 28 de julho do mesmo ano, não será jamais elucidado, chega ao posto de chefe de Estado-Maior das forças rebeldes; o segundo toma a liderança de um Conselho Nacional de Transição (CNT), estabelecido em Benghazi,

que Sarkozy, inebriado pelas críticas líricas do escritor e filósofo Bernard-Henri Lévy, apressa-se em reconhecer já a partir de 10 de março.

Enquanto, em Trípoli, o Guia desorientado jura ora não ceder jamais, ora perecer como mártir, recorrendo a discursos alucinados para difamar aqueles que ousam desafiá-lo, relegados ao nível de “ratos” drogados pela al-Qaeda ou financiados pelo inimigo sionista e seus aliados “cruzados”, os rebeldes avançam com dificuldade para Sirte, feudo tribal dos Kadafi. Mais a oeste, a expansão progride. Principalmente em Misrata, zona portuária e comercial de grande importância, em Zawiya e em Zintan, praça-forte árabe-berbere do Jebel Nafusa a sudoeste de Trípoli. Entretanto, o vento logo muda  de direção. Desorientado por algum tempo, o poder, embora sem o apoio da Liga Árabe – à exceção

notável de Argélia, Síria e Iêmen –, lança a contraofensiva e reconquista, em meados de março, o núcleo petroleiro de Ajdabiya. No papel, é verdade, a Jamahiriya  tem a vantagem numérica e de poder de fogo. Segundo o famoso International Institute for Strategic Studies (IISS) de Londres, Trípoli

dispunha, em 2009, de 50 mil homens, sendo a metade de recrutas, 800 tanques, 400 canhões motorizados, 600 peças de artilharia e 200 aviões de combate. Inventário um tanto enganador. No dizer dos especialistas, menos da metade do efetivo tem o preparo necessário aos guerreiros. Ainda mais que Kadafi não confia em sua tropa. Um sinal: na primavera de 2011, seus sargentos recrutadores ainda  engajavam auxiliares subsaarianos, chamados a prestar serviço a uma Legião Islâmica povoada de mercenários chadianos, nigerianos ou malineses. Quanto à supremacia terrestre e aérea, minada com o passar do tempo pelo vírus da usura, ela se revela um socorro inútil quando o inimigo domina os ares. No conflito, o CNT alinha, ao que parece, 17 mil combatentes. Contingente aumentado ao longo das

semanas pelo afluxo de voluntários e de desertores, e fragmentado em uma miríade de brigadas móveis, equipadas essencialmente com fuzis automáticos, com metralhadoras sobre pick-ups, com lança-foguetes e canhões antiaéreos. Bombardeio com arma pesada de um lado; ataques, incursões e emboscadas do outro: o balé inicial desenha a dramaturgia dos combates por vir.

Enquanto isso, a 8 mil quilômetros dali, a França trava, em plena ONU, uma outra batalha. E

arranca à força, em 17 de março, o voto da Resolução 1.973 pelo Conselho de Segurança, apadrinhada  pelo Reino Unido e pelo Líbano. A Rússia, a China e a Alemanha se abstêm. O que ocorre é que, em nome do dever de proteção aos civis líbios, o texto instaura uma no fly zone  – zona de exclusão aérea – e autoriza o recurso aos bombardeios e a “toda medida necessária”. Única opção banida: a expansão terrestre. Em resumo, uma maneira de dar carta branca. Já era tempo, pois o exército kadafista se aproxima dos subúrbios de Benghazi, levado pelo juramento de seus chefes: “Não haverá nem perdão, nem piedade.”

O temido banho de sangue não acontecerá. Diante da urgência, a missão de reconhecimento feita  em 19 de março por quatro Mirage e dois Rafale muda de natureza in extremis . Trata-se então de aniquilar algumas baterias de DCA  (defesa antiaérea, também chamada de defesa contra aeronaves), assim

como a vanguarda blindada dos atacantes. Decisivo, esse ataque é apenas o prelúdio de um intenso massacre efetuado por uma coalizão de 19 países, dotada de uma impressionante força aérea na qual os bombardeiros furtivos B-2 Spirit da US Air Force ladeiam os Tornados e os Eurofighter britânicos, os

CF-18 canadenses ou os F-16 com as cores da Dinamarca, da Espanha, da Bélgica, do Qatar e dos Emirados Árabes Unidos. Para o Guia e os seus, o perigo vem não somente do céu, mas também do mar. Como prova, o dilúvio de mísseis Tomahawk atirados pelos submarinos americanos e britânicos que cruzam o Mediterrâneo.

O espectro da tempestade de areia 

Em Paris, aposta-se numa derrota rápida do inimigo. “Uma questão de dias ou de semanas, mas não de meses”, arrisca Alain Juppé, então ministro das Relações Exteriores. Errado: a Operação Aurora da  Odisseia durará mais de um semestre. Por quê? Quatro fatores esclarecem a dilatação da data limite. De início, os ocidentais subestimam a capacidade de luta da guarda pretoriana da  Jamahiriya , aliança de

unidades de elite comandadas por filhos ou por zelosos vassalos de Muamar Kadafi. Depois, e simetricamente, eles tendem a idealizar a performance em combate daquela miscelânia de rebeldes, reunião incomum de voluntários de inegável valentia, mas desprovidos em sua maior parte de conhecimento militar. Se muitos oficiais, suboficiais ou homens de patente abraçaram a causa, nas linhas de frente encontram-se principalmente estudantes, professores, operários, engenheiros, magistrados ou enfermeiros. “Patético”, dirá o almirante Edouard Guillaud, então chefe de Estado- Maior dos exércitos, estarrecido ante o amadorismo dos rebeldes.

Terceiro obstáculo, logo visível: a heterogeneidade de um CNT  onde convivem monarquistas,

liberais, islamitas, resistentes do interior e “retornados” da diáspora; mas também a persistência, no interior desse grupo, de velhas linhas de separação regionalistas. Historicamente permeáveis à tentação separatista, os rebeldes de Benghazi, muitas vezes, só têm desprezo pelo pouco ardor revolucionário dos tripolitanos. Quanto aos sitiados de Misrata, atores de uma resistência homérica unidos por uma  consciência identitária aguda, reivindicarão um estatuto privilegiado conforme seus méritos. Enfim, as tensões e divergências patentes no interior da coalizão impedem sua eficácia operacional. Para despeito da França oficial, que nesse caso foi ignorada por Londres, o comando do dispositivo cabe à Otan. O que, levando-se em conta o peso inerente ao processo de decisão em vigor no seio da Aliança Atlântica, aumenta o intervalo dos ataques. Mísseis, drones, aviões abastecedores; mesmo que Washington retire precocemente sua frota de bombardeiros “matadores de tanques”, a supremacia do arsenal made in USA

priva Nicolas Sarkozy de sua leadership cronológica. Na realidade, quer se trate da escolha dos alvos ou da agenda dos ataques, são mesmo os Estados Unidos que dirigem a manobra.

Uma certeza: no final da primavera de 2011, surge o temor da estagnação. E não sem razão… Em campo, a insurreição coleciona revezes. É evidente que a caça a distância não é suficiente. Eis por que Paris engaja helicópteros de ataque e lança, de paraquedas, armamentos ultramodernos nos santuários rebeldes. Eis também por que o patrocinador do Qatar intensifica suas entregas via Cirenaica. Eis enfim por que, preocupado em melhorar a coordenação entre a Otan e as tropas do CNT e em disciplinar os

movimentos erráticos destas, as forças especiais francesas e britânicas e dos “conselheiros” com sotaque ianque fincam pé no leste, no coração do enclave portuário de Misrata e no Jebel Nafusa.

 Aliás, é desse relevo escarpado, negligenciado sem razão pelos estrategistas do Guia, que virá o essencial para a salvação. A inflexão tática se revela eficaz. Em 15 de julho, os “montanheses” de Zintan arrombam o “ferrolho” de Gharyan, abrindo a via para a capital. Tudo indica que a malha protetora do último domínio kadafista se enfraquece. Já em meados de maio, os Misrati conseguiram expulsar dos muros os snipers  (franco-atiradores) infiltrados na cidade. Para isso, os thuwar  – rebeldes – perfuram as paredes das casas e os muros dos quintais, visando avançar sem serem vistos, para surpreender, com o uso de um punhal, se necessário, os franco-atiradores que espalham a morte do alto da torre Tamin, o imóvel mais elevado da avenida de Trípoli. Eles que, de costas para o mar, obstinavam-se a desafiar Kadafi, seus foguetes, seus obuses de morteiro e os tanques da 32ª Brigada, comandada por seu filho Khamis, conseguem, enfim, vencer a resistência kadafista.

Uma guerra sem fim?

Resta então organizar a junção que apressará o ataque em pinça a um bastião tripolitano que alguns ainda acreditam ser inexpugnável. Há semanas que os rebeldes, com o apoio de seus mentores ocidentais, infiltram armas e combatentes na capital. Para sair da sombra, suas células adormecidas só aguardam o apelo da Sereia, nome em código dessa operação ad hoc . Ele ressoa em agosto, em pleno mês do jejum do ramadã. Em 19 de agosto, Zawiya, cidade costeira estratégica a oeste de Trípoli, cede. Enquanto isso, os maquis de Zintan se aproximam pelo sul e os thuwar  de Misrata, transportados de barco, atracam discretamente a bordo de botes infláveis na marina de Abu Sita, a leste da capital – onde, ironia da história, está ancorado o iate de Saadi, outro herdeiro de Muamar Kadafi. Dois dias depois, os rebeldes estão na praça. Seu objetivo: o palácio-caserna de Bab al-Azizia. O Guia desaparece na  antevéspera da queda de seu fortim, conquistado em 23 de agosto. Sua esposa Safia e três de seus filhos –  Aisha, “la pasionaria”,IV  em gravidez adiantada, Mohamed e Hannibal – fogem pelo deserto na Argélia.1

Ponta de lança do golpe: a brigada do “17 de Fevereiro”, comandada por Abdel Hakim Belhadj, um antigo membro do Grupo Islâmico Combatente na Líbia, falange jihadista considerada próxima da Al- Qaeda.

ainda resistem: Sirte, claro, mas também o oásis sulista de Sebha, no meio das dunas do Fezzan, e Bani  Walid, feudo de uma tribo leal ao regime que está ameaçado. É necessário também, e principalmente,

capturar o tirano execrado. A perseguição dura dois meses e termina em 20 de outubro numa adutora  de drenagem feita de concreto, palco de uma caçada bárbara.2 Nada detém então a sede de vingança dos

 vencedores. Serão encontrados nas vizinhanças do hotel Mahari de Sirte, não longe do último covil de Kadafi, os cadáveres de 53 homens executados a bala.

Três dias depois da morte do “caid” (chefe) em fuga, Mustapha Abdeljalil, frágil timoneiro do Conselho Nacional de Transição (CNT), anuncia solenemente a “libertação” do país. A Líbia libertada?

De seu excêntrico carcereiro, sim. De seus demônios, certamente não. Não basta rebatizar, em homenagem aos “mártires”, a Praça Verde, ainda ontem lugar de manifestações organizadas pela  propaganda oficial, para purificar o passado e limpar o horizonte. Reabilitada, a bandeira da monarquia, derrubada em 1º de setembro de 1969, flutua não sobre uma nação, mas sobre um mosaico de baronatos regidos pela única lei das armas e forjados pelo irredentismo. Um índice em cem: 30 meses depois de terem capturado – em 19 de novembro – o filho mais novo do Guia, Saif al-Islam Kadafi, os milicianos de Zintan recusavam-se ainda a transferi-lo para Trípoli. Entregá-lo à Corte Penal Internacional (CPI) de Haia? Nunca se pensou nisso. Os vitoriosos da Jamahiriya  preferem julgar – e,

por conseguinte, condenar – seus caciques nos locais de seus crimes. E é mais do que provável que os mandatos de prisão emitidos desde 27 de junho de 2011 pela CPI contra o ex-herdeiro presumido do

defunto Muamar e do cunhado e chefe dos serviços de informações deste último, Abdullah al-Senussi, preso no aeroporto de Nouakchott (Mauritânia) em março de 2012 e depois extraditado, continuarão letra morta.

 A Líbia é logo tomada por vertigens, consequência do vazio político legado por Kadafi. Tanto na  capital como no restante do país, os chefes de milícia estão equipados com fuzis kalashnikov e com lança-foguetes nos feudos urbanos. Há conflitos em Benghazi, em Zintan e no sudeste desértico, teatro de embates homicidas entre tribos árabes, tuaregues e tubus. Mas há também a possibilidade de ocupar por algum tempo o aeroporto de Trípoli ou de destruir a sede da comissão eleitoral. É claro que o CNT

se esforça por estabelecer uma aparência de autoridade, e mesmo por integrar os rebeldes num exército a ser reinventado e numa polícia embrionária. E, ainda, os cidadãos líbios elegem livremente em julho de 2012 – prática inédita – um Congresso Geral Nacional (CGN), arremedo de parlamento controlado

nos bastidores pela Irmandade Muçulmana e em que logo se infiltrarão os incendiários islamitas. Mas a  tragédia de Benghazi, que aconteceu algumas semanas depois, dá a exata medida da fragilidade do processo de normalização. Em 11 de setembro, um comando da Ansar al-Charia, facção salafista de estrita obediência religiosa, ataca o consulado dos Estados Unidos. Ataque fatal ao embaixador americano Christopher Stevens e a três de seus colaboradores, um diplomata e dois agentes de segurança.

Em Trípoli, onde um atentado com carro-bomba explode a embaixada da França em 23 abril de 2013, as gangues armadas adquirem o hábito de atingir ministérios e imóveis oficiais para impor suas reivindicações. É hora de purismo revolucionário. Presidente do CGN e, de facto, chefe de Estado

não faz mais que antecipar os efeitos de uma “lei de exclusão” que, adotada sob pressão das milícias, afasta das esferas do poder quem quer que tenha servido ao governo de Kadafi… Cinco meses depois, um comando da “Célula das Operações Revolucionárias” surge no hotel Corinthia, palácio vizinho à  medina de Trípoli, para, por conta de uma misteriosa “ordem superior”, sequestrar o primeiro-ministro  Ali Zidan. Mas ele, que será destituído em 11 de março de 2014, é posto em liberdade no mesmo dia.

O que fica do episódio é uma forte impressão de caos. Impressão alimentada pelos confrontos homicidas que, em Benghazi, opõem valentões “laicos” e belicistas islamitas. Sem dúvida deve-se atribuir a essa guerrilha a eliminação do coronel Mustapha al-Barghathi, chefe da polícia militar líbia, abatido na  porta de sua casa por “desconhecidos”. Outro reflexo, mais prosaico, da impotência de uma autoridade central que não exerce autoridade: a queda, ao longo do verão de 2013, das receitas do ouro negro, que representam para o país 96% de sua renda. Lógica da questão: conduzidos pelo carismático Ibrahim al- adran, de cerca de 30 anos de idade, os franco-atiradores federalistas da Cirenaica mantêm os terminais petroleiros sob seu controle, trancando o acesso a eles desde o início do verão de 2013, como instrumento de chantagem. Esses rebeldes serão vistos, em março de 2014, negociando com um misterioso cliente uma carga de petróleo bruto, logo levada por um navio-cisterna de bandeira norte- coreana que as forças leais a Trípoli tentarão deter inutilmente. Desafio perigoso, pois essa facção, pelo que se conhece de sua trajetória, aspira à guerra civil. Valorosa mas vulnerável, a sociedade civil líbia não escapa ao domínio da violência. Como prova, o assassinato, em 26 de julho de 2013, de Abdelsalam al- Mismari, advogado e militante renomado dos direitos civis. Policiais, oficiais, advogados, magistrados: