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Língua e crioulos

No documento Trabalho projecto Ines Castano Vol. 1 (páginas 66-69)

4. Cultura(s), Património(s) e Museu(s) em São Tomé e Príncipe: abordagem para um diagnóstico a partir do terreno

4.1. A Cultura Santomense: identidade cultural e Santomensidade

4.1.1. Língua e crioulos

Parece-nos fundamental que nos foquemos aqui nas línguas de São Tomé e Príncipe enquanto característica identitária de um povo e, mais ainda, das diferentes comunidades que o constituem. À semelhança de outras manifestações culturais, também as línguas se caracterizam pelos seus vários estágios construtivos, resultado de um processo histórico evolutivo e consequente da permanência no mesmo território de povos oriundos de diferentes pontos do globo (acerca da perspectiva histórico-linguística dos crioulos do Golfo da Guiné (cf. Hagemeijer, 1999).

Segundo Inocência Mata (2010:20) importa então equacionar o binómio língua/identidade cultural, problematizando, assim, a relação da língua como expressão da santomensidade. Sendo a língua, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de

A singularidade da língua enquanto património cultural e factor de identidade, advém da sua situação privilegiada de elemento que incorpora as diferentes dinâmicas sociais, interagindo com os universos com os quais contacta e, por isso, definindo-se enquanto factor de delineamento de

identidade, memória da consciência colectiva, arrastando consigo a concepção do mundo, dos mitos e dos hábitos (Cristóvão apud Mata, 2010:21). Numa perspectiva histórica, importa aqui

referir o papel crucial do forro como língua de identidade nacional na luta pela independência. Na clandestinidade se faziam passar mensagens naquela língua que tinham por missão informar a população acerca da realidade política, de autoridade portuguesa (Alegre, 2005:81). Embora o forro tenha assumido tal papel, no momento da independência, e segundo Nelson Campos (cf. ap.2, Entrevista III, p.20) o país não tinha recursos financeiros para sistematizar uma das línguas

nacionais. Por outro lado, refere ainda que terá sido uma decisão estratégica uma vez que a língua

se tornaria mais um elemento de isolamento (para além da insularidade) na relação do novo país com o mundo.

A situação linguística actual de São Tomé e Príncipe é algo complexa pela sua diversidade

e pelo sistema piramidal que hierarquiza as diferentes línguas. No pequeno país arquipelágico falam-se cinco línguas: o português, forro (são-tomense ou lungwa santomé), o lunguyé (ou principense), o cabo-verdiano e o angolar, sendo os três primeiros crioulos claramente de base portuguesa - portanto derivações da latinidade - e o último de forte influência de línguas africanas ainda não identificadas com certeza (Mata, 2010:14).

O português, para além de língua oficial, é a língua franca entendida por todos os grupos sociais. Língua de trabalho e de união, é também a língua de ensino, da comunicação social, da produção escrita e do estado (do poder). Por outro lado, o forro, lunguyé e angolar, embora com o estatuto de línguas nacionais, com um carácter identitário e folclórico, situam-se em diferentes patamares, quando em relação com o português. Em seguida tentaremos compreender melhor esta questão, numa breve análise da situação sóciolinguística em São Tomé e Príncipe.

Embora não seja fácil determinar a situação sóciolinguística do país de forma precisa, uma vez que as estatísticas acerca da população divergem muito consoante os diferentes estudos, pode calcular-se os valores a partir da média das estimativas (cf. Araújo, 2010). Assim, o cabo-verdiano (kaboverdianu) é falado por milhares de pessoas residentes, sobretudo nas roças, ou em propriedade rurais isoladas. Já o angolar, falado sobretudo no Distrito de Caué (sul da ilha), pode ser falado por cerca de 5 mil pessoas. É certo, todavia, apontar que o lunguyé (língua principense), como língua materna, possui uso muito restrito e está limitada à população da Ilha do Príncipe, havendo menos de cinquenta falantes. Por conseguinte, a segunda língua mais falada em São Tomé e Príncipe é o

forro (são-tomense), sendo, por isso, a língua crioula que possui o maior número de falantes, embora os níveis de domínio da língua variem. Por um lado o forro tem-se tornado a língua crioula mais falada (mesmo pelos outros grupos minoritários), por outro, cada vez menos, é aprendido como língua materna, papel desempenhado pelo português.

A norma portuguesa europeia (do português) é ensinada nas escolas e dominá-la é o objectivo do sistema escolar. No entanto, e por se tratar de um contexto multilingue, começam a verificar-se variações do português decorrentes da sua condição de língua materna ou mesmo enquanto segunda língua. Deste modo e uma vez que as línguas nacionais concomitam no espaço com a língua portuguesa e por isso se dá um processo de influência mútua, pode falar-se agora de uma uma nova variante do português: o português de São Tomé. Fruto desta situação linguística podemos então aferir que o português se vem crioulizando e, por seu turno, o crioulo se

aportuguesou (Mata, 2010:26).

De notar, porém, que o problema de diglossia38 que se verifica em todo o país se configura

num quadro adverso em qualquer processo de aquisição ou proficiência de uma língua. Segundo Nelson Campos:

«O homem santomense pensa de uma maneira, numa das línguas que lhe seja mais próxima, por exemplo o crioulo forro, que é falado e entendido por quase toda a população, mas depois ele tenta traduzir, mas que tipo de tradução? Ele usa o léxico português mas o pensamento está muito distante entre aquilo que é o português e o crioulo, ele não consegue separar as fronteiras». (cf. ap.2, Entrevista III, p.20)

Face ao complexo panorama linguístico santomense importa agora considerar o vasto leque de medidas/iniciativas já realizadas ou a decorrer. É certo porém que, até ao momento, as tentativas de normalização ortográfica39 das línguas nacionais não têm dependido de iniciativas oficiais,

motivo que as tem submetendo ao mundo da oralidade (Araújo, 2010). De referir então, pela sua actualidade face a estudos anteriores40, o Dicionário bilingue santomé-português (não publicado)

elaborado por uma equipa de trabalho composta por elementos do Centro de Linguística da

38 Diglossia designa a situação linguística em que, numa sociedade, duas línguas ou registos linguísticos funcionalmente diferenciados coexistem, sendo que o uso de um ou de outro depende da situação comunicativa.

Universidade de Lisboa e da Universidade de São Paulo que segue, do ponto de vista das formas escritas do forro, o Alfabeto Unificado para as Línguas Nativas de S. Tomé e Príncipe (ALUSTP)41.

Se atentarmos na Lei do Património Histórico-Cultural Nacional (lei nº4/2003) (cf. supra Cap. 3.5, p.47), ali está expresso que cabe ao Estado promover a protecção e fomento dos crioulos de

São Tomé e Príncipe e incentivar a sua utilização nas escolas (Capítulo II - Bens imateriais, Artigo 86º Medidas de protecção, ponto 1, alínea b). De facto, e segundo Caustrino Alcântara (cf. ap.2,

Entrevista II, p.11), apenas o lunguyé está a ser ensinado nas escolas da Ilha do Príncipe, apesar de lhe parecer difícil ensinar sem que haja uma metodologia adequada para o efeito, uma vez que o trabalho não está a ser acompanhado por um linguista. Segundo Alcântara não se pode arrancar

com um método lúdico para se fazer uma coisa científica. O método lúdico, normalmente, apoia-se no sistema científico. Tal medida deve-se, sem dúvida, ao facto de o lunguyé estar em vias de

desaparecer, devido ao actual número de falantes (c.50). Para Alcântara (cf. ap.2, Entrevista II,

idem), o santomé não corre o mesmo perigo uma vez que há muitos elementos que concorrem para

este facto. O primeiro e mais expressiva é o coeficiente das músicas nacionais produzidas em forro (c. 90%) ou ainda através da transmissão da sabedoria popular através, por exemplo, das sóias (cf.

supra Cap.4.1, p.58). Ressalva, porém, que o facto de não haver um normalização dos vocábulos,

inviabiliza que se fixe a vertente oral e escrita da língua.

Para concluir, socorremo-nos da conversa com Nelson Campos, evidenciando a necessidade de medidas de salvaguarda dos crioulos em São Tomé:

«O Ministério da Educação e o Governo sabem muito bem a necessidade que temos em preservar esses valores linguísticos que caracterizam o ser e o estar do homem santomense. Eu penso que o ministério e o ministro da Educação estão bastante preocupados com esta questão, e a realização deste Fórum é também para colhermos subsídios para a preservação e promoção dos crioulos. Será preciso estabelecer a fronteira entre as línguas porque isto tem dificultado muito o processo de ensino/aprendizagem e o bom desempenho por parte dos alunos. E também não tem sido fácil por parte dos professores. Quando o ministério da educação adoptar uma das línguas que será, certamente, o crioulo forro, virá aí uma guerra linguística. Se tivermos que escolher uma língua e não dermos atenção às outras, as pessoas vão começar a reivindicar. Mas o Ministério da Educação e o Estado vão ter que saber lidar com esta situação». (cf. ap.2, Entrevista III, p.21)

No documento Trabalho projecto Ines Castano Vol. 1 (páginas 66-69)