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Língua e discriminação

No documento 2007DeboraCristinaSchneider (páginas 47-51)

1. OS PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

1.2.8 Língua e discriminação

Esses conceitos permitem estabelecer as relações de sentido produzidas a partir do uso que os falantes fazem dos recursos lingüísticos na constituição de seus discursos. Tendo em vista que, conforme Bakhtin, a língua:

[...] não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. [...] (2004, p.123)

Dessa forma, a língua não atinge significação por si própria. Ela transcende a condição de código, ao interagir com os sujeitos e capacitar-se como condutora de suas representações do real, frente aos demais membros do grupo, interferindo na mediação social enquanto vínculo estabelecido entre os partícipes da interação dialógica. Ela emerge de interações verbais inseridas em contextos sócio-econômico-políticos, determinados no espaço e no tempo, não havendo, na sua efetivação, neutralidade de forma alguma. Assim, se não existe neutralidade lingüística, é um erro achar que existe uma língua una.

Sendo assim, podemos perceber que a interação e a segregação entre os homens ocorrem através da língua/discurso, da representação do pensamento individual e do grupo através de signos lingüísticos pré-determinados. Então, consideramos um cenário que excede o significado estrito das palavras, abrangendo informações implícitas, onde se identifica o correto como o mais próximo da ‘norma padrão’, aceitando-se determinadas variações disseminadas e popularizadas, e alienando a forma não padrão que é socialmente estigmatizada. Dessa maneira, a língua padrão detém prestígio por vincular-se a uma classe

minoritária, detentora do poder, ao contrário das variações que são vistas empiricamente como vícios grotescos provenientes de indivíduos inaptos e desajeitados socialmente.

Os usuários da língua, mesmo quando não dominam as formas lingüísticas consideradas ‘aceitáveis/corretas’, lutam por identificar-se com elas, introjetando-as, porque sabem que não usá-las em certas situações implica censura, discriminação e mesmo bloqueio à ascensão social. Assim, propaga-se a noção de unanimidade nacional em torno da excelência da ‘língua padrão’, difundida pelas instituições mantenedoras de estereótipos sociais que visam a perpetuar situações estratificantes, ou seja, pela escola que forma indivíduos num princípio discursivo que desconhece a pluralidade, ou, conhecendo, minimiza seu poder transformador. De acordo com Maurizzio Gnerre:

Se as pessoas podem ser discriminadas de forma explícita ( e não encoberta) com base nas capacidades lingüísticas medidas no metro da gramática normativa e da língua padrão, poderia parecer que a difusão da educação em geral e do conhecimento da variedade lingüística de maior prestigio em particular é um projeto altamente democrático que visa a reduzir a distância entre grupos sociais para uma sociedade de ‘oportunidades iguais’ para todos. Acontece, porém, que este virtual projeto democrático sustenta ao mesmo tempo o processo de constante redefinição de uma norma e de um novo consenso para ela. A própria norma é constantemente redefinida e recolocada na realidade sócio-histórica, acumulando assim ao mesmo tempo a própria razão de ser e o consenso. Os que passam através do processo são diferentes dos que não o conseguiram, e constituem um contingente social de apoio aos fundamentos da discriminação com base na legitimação do saber e da língua de que eles (formalmente) dispõem. (1998, p.28)

A imposição de uma norma lingüística padrão em detrimento de outras nos remete a Foucault e aos conceitos de poder disciplinar e norma em que os sujeitos são ajustados para adequar-se a padrões sociais pré-estabelecidos. Ao impor uma norma, a escola tenta disciplinar o discurso do sujeito, assentando-o em regulamentações que garantem uma homogeneização da população e um controle social eficaz. Desse modo, as instituições de ensino veiculam uma noção de valores e práticas sociais ideais, que privilegiam a manutenção das relações de poder e do percurso histórico que as constitui.

Sendo assim, a função da escola é inculcar os preceitos necessários para que cada sujeito ocupe sua posição na sociedade. Para tanto, há a organização de formas de apreensão da cultura dominante, aquisição da noção de pertinência e adequação social. Essa organização

ocorre na escola, procurando disciplinar o sujeito quanto à estrutura social e ao seu papel nessa conjuntura. A instituição tende a minimizar as diferenças existentes entre os alunos, pois são desajustes que a ela cabe eliminar. Então, acaba descaracterizando-os, anulando sua identidade social, submetendo-os a rótulos e normas. Essas diferenças, tidas na maioria das escolas como marcas de inferioridade, sempre representam um obstáculo e um problema para o aluno que pretende se incluir e alcançar o sucesso escolar. Para que seja aceito no grupo, as marcas lingüísticas, culturais, sociais, políticas e econômicas devem ser ignoradas e sublevadas em prol do ideal que a escola preconiza. Dessa forma, não podemos negar o papel que a escola exerce nos processos discriminatórios, através da organização curricular, das práticas pedagógicas, das posturas administrativas como, por exemplo, na distribuição dos alunos por turmas onde são respeitadas certas categorias que a escola define e segue implicitamente na maioria das ocasiões. Esse ponto pode ser verificado na análise das entrevistas dos alunos ao observarmos as respostas dadas acerca de questões sobre processos discriminatórios.

Nas escolas, o ensino dos padrões é tido como certo e inquestionável. No português, por exemplo, a norma culta é a única representação correta da língua. A variação da norma padrão revela a origem das pessoas, o lugar social de onde vêm, enfim, é uma marca de diferença. Dessa maneira, a rejeição de um falante, de uma variedade não-padrão, está relacionada ao seu lugar social e ao prestígio que esse lugar oferta. O preconceito é do lugar de origem e não da forma como ele se expressa. E a principal causa do fracasso escolar do aluno, oriundo das camadas populares, reside no uso de uma linguagem fora dos padrões lingüísticos, que acaba estigmatizando e determinando o seu insucesso. Tendo em vista que, de acordo com Leandro Ferreira:

A perfeita biunivicidade entre idéias claras e completas e frases que as exprimem (ideal de clareza e completude ligado por efeito inverso à ambigüidade) insere-se no quadro de uma visão idealizada de sociedade, composta de interlocutores ideais que convivem harmoniosamente. A ordem social é garantida pela língua (através da gramática), como elemento estável e conservador. Desse modo, identidade de intenções e homogeneidade de representações passam a ser consideradas como pressupostos das relações sociais. (2000, p.66)

Sendo assim, a língua ensinada na escola usa a norma gramatical para solidificar e reproduzir a estrutura da sociedade e as relações de produção, criando uma representação de unidade e harmonia social. Então, a educação está atrelada às relações de poder e controle social, sendo um instrumento para regular, normatizar e disciplinar os sujeitos. No próximo capítulo, teremos oportunidade de entender um pouco melhor a maneira como o processo educacional foi construído no Brasil, a fim de compreendermos o seu percurso histórico.

No documento 2007DeboraCristinaSchneider (páginas 47-51)

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