• Nenhum resultado encontrado

3 LÍNGUA, LINGUAGEM E GRAMÁTICA NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

3.1 LÍNGUA E LINGUAGEM

Não raras as vezes, língua e linguagem, erroneamente, são confundidas. Cabe, portanto, distingui-las, partindo da consideração de Saussure (CLG, 1999, p. 16): “é necessário colocar-se primeiramente no terreno da língua e tomá-la como norma de todas as outras manifestações da linguagem”.

Dito isso, cabe esclarecer que a língua é definida como um “sistema de signos” (CLG, 1999, p. 23). Para Saussure, o signo é uma unidade linguística constituída por uma “imagem acústica”, ou seja, o significante, e por um “conceito”, isto é, o significado, sendo que a relação entre essas duas faces do signo é considerada arbitrária, ou seja, imotivada,

porque não há laço natural que as una. Além disso, o signo59, por ter uma dimensão psíquica, não é considerado como representativo do que existe no mundo.

Relacionada ao signo, cabe destacar a noção saussureana de valor, compreendida como uma relação de oposição, a partir da qual se pode dizer que o sentido60 de um signo se completa ou se define por estar relacionado com outro(s), pois um signo é o que os outros não são. Assim, os valores são dependentes na sincronia de um sistema. Nas palavras de Saussure (1999, p. 133): a língua [...] “é um sistema em que todos os termos são solidários e o valor de um resulta tão-somente da presença simultânea de outros”.

Assim, é tributária do conceito de valor a constituição do sentido dos textos, já que se leva em conta que ele não se expressa nas palavras em si mesmas, mas na relação de combinação que elas estabelecem com outras. A problemática instaurada nesse âmbito é da língua enquanto produtora de sentido, o qual não é fixo, nem previsto, porque depende do ato de enunciação. Benveniste (2006, p. 222) explica que “o sentido é a noção implicada pelo termo mesmo da língua como conjunto de procedimentos de comunicação identicamente compreendidos por um conjunto de locutores”.

A língua também precisa ser entendida em relação à fala. Saussure (1999. p. 22) caracteriza a primeira como “social” e “essencial”. Sendo compartilhada, ela está no nível da virtualidade, ou seja, pode ser atualizada pelos sujeitos. Essa atualização, a fala, é um ato “individual”. Assim, a fala pode ser entendida também como realização, concretização ou uso da língua. Dessa forma, o conceito de fala não designa o ato de falar, mas toda e qualquer utilização linguística, como a escrita, por exemplo.

Os conceitos de língua e de fala foram opostos por Saussure, tendo o linguista eleito a língua como objeto de estudo da Linguística. Por meio da língua seria possível observar as relações internas ao sistema; porém, o próprio autor (1999, p. 27) destaca que: “a língua é necessária para que a fala seja inteligível e produza todos os seus efeitos; mas esta é necessária para que a língua se estabeleça”. Assim, os dois conceitos estão interligados. Além disso, destaca-se que, na teoria de Benveniste, “a língua comporta a fala e vice-versa”, em uma relação de interdependência. “É o próprio Saussure quem autoriza esse olhar” (FLORES;

59 Para fins de esclarecimento, para Benveniste, o signo “é uma unidade de base de todo sistema significante”.

(BENVENISTE, 2006, p. 33).

60

Benveniste (2006, p. 230, grifos do autor) também esclarece que “o sentido da frase é de fato a idéia que ela exprime; este sentido se realiza formalmente na língua pela escolha, pelo agenciamento de palavras, por sua organização sintática, pela ação que elas exercem umas sobre as outras”.

BARBISAN, 2012), isso porque o linguista61 incluiu tanto a língua quanto a fala em um mesmo patamar: o de constituinte da linguagem. (FLORES; TEIXEIRA, 2009).

Ademais, Saussure (1999, p. 27), ao afirmar que, “historicamente, o fato da fala vem sempre antes”, enfatiza que o aprendizado da língua materna ocorre por meio do contato com ela, ou seja, à medida que o sujeito percebe e internaliza os usos de sua comunidade linguística. É a partir desse processo que a língua evolui.

Saussure (CLG, 1999, p. 17) também salienta que, enquanto a linguagem depende da “faculdade” que, por natureza, o homem possui, a língua, sendo uma convenção, é adquirida. Assim, a língua é:

[...] somente uma parte determinada, essencial dela [da linguagem], indubitavelmente. É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; a cavaleiro, de diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence além disso ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade. (CLG, 1999, p. 17).

O uso da língua ocorre no emaranhado das relações sociais. Assim, ela é, ao mesmo tempo, produto62 da sociedade – em função de seu percurso no passado – e “condição de produção” do momento histórico presente, porque possui a marca desses usos e dos espaços em que se insere. (GERALDI, 1996, p. 28).

Além disso, a relação entre língua e sociedade pode ser percebida nos postulados de Saussure. Sua obra (1999, p. 21) refere que a língua:

Trata-se de um tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade, um sistema gramatical que existe virtualmente em cada cérebro ou, mais exatamente, nos cérebros dum conjunto de indivíduos, pois a língua não está completa em nenhum, e só na massa ela existe de modo completo. (CLG, 1999, p. 21).

A linguagem, por sua vez, conforme definida no capítulo anterior, caracteriza a humanidade. Ela não “se aprende”, “nem se faz”, mas se desenvolve, como o desabrochar de

61

Para esclarecimento, entende-se que Saussure, considerado estruturalista por linguistas contemporâneos, foi mal interpretado em seus estudos acerca da linguagem. Falou-se que o autor priorizou a estrutura, enquanto entende-se que seu foco era o sistema. Também, quando o teórico postulou uma oposição entre língua e fala (sendo que cada uma implica uma linguística própria) pelo fato de ter elegido a primeira como o objeto de estudo, compreendeu-se que Saussure pouco teria teorizado sobre fala e discurso. Porém, determinados aspectos de sua teoria, contidos, inclusive, no Curso de Linguística Geral – lido atentamente por Benveniste –, mostram que Saussure não desconsiderou a questão do discurso. Isso também está sendo verificado após a análise de manuscritos saussureanos, há pouco descobertos. (FLORES; BARBISAN, 2012).

62 Destaca-se que essa ideia de produto não denota algo acabado, mas em constante evolução e construção.

uma rosa – retomando a metáfora de Chomsky – quando o sujeito a ela tem acesso. (FRANCHI, 2006, p. 24).

É “na e pela linguagem” que os sujeitos “se colocam e se situam”, explicou Benveniste (2006, p. 68). Esse colocar-se envolve o fato de o eu, o locutor, em oposição ao tu e ao ele (alocutários), a cada vez que enuncia, compor um ato novo – por mais que o intuito seja reproduzi-lo –, visto haver um tempo e um espaço diferente. A linguagem, dessa forma, só é possível porque esse eu implanta um tu. Nesse processo, pode haver uma alternância: aquele que era tu assume o papel de eu63. Assim, “uma dialética singular é a mola dessa subjetividade64”. Nesse sentido, cada enunciação – “este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização” (p. 82) – é única; portanto, irrepetível.

Diante disso, a língua, na perspectiva enunciativa, é utilizada pelo sujeito como um modo de expressar um vínculo com o entorno. Ele, no papel de locutor, apropria-se da língua para “referir”, do mesmo modo que o alocutário pode “co-referir”. (BENVENISTE, 2006, p. 84). Essa relação entre o locutor e seu parceiro é caracterizada por Benveniste (2006, p. 80) como “indefinidamente reversível”. Nesse sentido, “é sempre ao ato de fala no processo de troca que remete a experiência humana inscrita na linguagem”.

Benveniste (2006), a partir dos estudos de Saussure, reconhece que a linguagem não é substância, mas forma. O linguista defende que não há esse aspecto substancial na linguagem porque seus dados existem em razão de suas diferenças, valendo por oposição. Para explicar isso, o autor afirma:

Pode-se contemplar uma pedra em si, localizando-a na série dos minerais. Enquanto que uma palavra, por si mesma, não significa absolutamente nada. Ela não é senão por oposição, por vizinhança ou por diferenciação em relação a um outro, um som em relação a um outro som, e assim por diante. (BENVENISTE, 2006, p. 31).

Nessa perspectiva, acredita-se que todo e qualquer trabalho que envolve a língua precisa levar em conta o todo, não os elementos isolados, já que uma palavra só adquire sentido sempre em relação às outras.

63 Nesse sentido, Benveniste (2005, p. 87) esclarece que “o que em geral caracteriza a enunciação é a acentuação

da relação discursiva com o parceiro, seja este real ou imaginado, individual ou coletivo”.

64 Cabe ressaltar que, para Normand (2006), o pensamento de Benveniste possui uma ruptura em relação ao de

Saussure pelo fato de o primeiro realizar um retorno à fenomenologia e debruçar-se sobre o entendimento da subjetividade nos enunciados, ao perceber que ela está presente de modo ativo em toda enunciação. Não se tratou, portanto, de abandonar as noções de língua, no que diz respeito à sua matéria significante, a suas estruturas comuns e ao aparelho semiótico, mas de considerar esses postulados, conciliando-os com a subjetividade e “com a comunicação sempre situada, como acontecimento inebriante que é todo enunciado. Analisar o semântico, eis a aposta de Benveniste”. (NORMAND, 2006, p. 19).

Quanto à linguagem, o capítulo anterior explicitou a concepção aceita neste trabalho; porém, cabe, a seguir, apontar alguns aspectos considerados relevantes a respeito dos modos como ela pode ser entendida para, na sequência, estabelecer relações entre essas concepções e as de gramática.