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4. GÊNERO COMO REPRESENTAÇÃO NO ROMANCE DE AUTORIA FEMININA

4.3. Lívia Garcia-Roza: a família como doença

Pensando o gênero como uma categoria relacional, nos termos de Teresa de Lauretis, as relações que as personagens dos romances assumem são fundamentais para se pensar as diversas maneiras de representação de gênero criadas pelas escritoras. Lívia Garcia-Roza é a narradora dessas relações dentro da família. Filhas e filhos, mães e pais, esposas e maridos, irmãos e irmãs aparecem em profusão, bem como parentes e agregados, como as empregadas domésticas. Uma das principais características do discurso dessas personagens, em especial as mulheres adultas, é o fato de que, por trás das frases aparentemente banais e cotidianas, estão embutidas críticas às suas vidas e, em uma forma mais ampliada, às estruturas familiares tradicionais, principalmente aos papéis de gênero.

Os seus romances, em sua maioria, se passam na cidade do Rio de Janeiro, mas têm como principal cenário os “lares”. Ou seja, as relações das personagens dão-se mais na esfera privada, espaço da domesticidade. Nesse sentido, as relações conjugais e familiares são as mais relevantes para as protagonistas, como veremos a seguir. Mesmo no caso das crianças – Luciana, de Quarto de menina, João, de Cartão-postal, e Leninha, de A palavra que veio do sul – a escola, tão importante nessa fase de vida, não aparece nos romances, tampouco colegas e amigos de brincadeiras, apenas referências bastante esparsas. O espaço doméstico é predominante, e a família, em seus diversos arranjos de parentesco e convivência, a principal esfera pela qual movem-se as personagens. Em Solo feminino e Cine Odeon, em que a parceria sexual (fora de casa) é o principal anseio de Gilda e Isabel, protagonistas e narradoras dos respectivos livros, o diálogo principal ainda é com os elementos familiares.

A família mostrada pela escritora é um local tanto de reprodução da tradição quanto de seu questionamento, movido pelo efeito de paródia e criação de estereótipos através de personagens por vezes caricaturais. Como principal teatro da vida privada, é na (e pela) família que as personagens de Lívia Garcia-Roza vão questionar (ou não) os seus rituais, em especial da classe média urbana carioca. Contudo, é importante ressaltar que a escritora não trabalha em um estilo estritamente realista, apesar da linguagem referencial. Além das inserções de cenas oníricas, o foco narrativo em primeira pessoa revela protagonistas assumidamente “desequilibradas” e “destemperadas”. No caso de suas crianças protagonistas, há a forte presença da fantasia, aqui associada ao universo infantil, em meio a brinquedos e medos. O medo, por sinal, é um sentimento bastante específico: medo das pessoas mais próximas, medo da família. Em Cine Odeon, a primeira frase da adolescente Isabel, que abre o romance, refere-se à mãe: “Tenho muito medo de dizer não para minha mãe, mas disse”.28(CO, 5) Seu medo é da reação exposta em seu rosto: “às vezes, mamãe tem uns troços, grita, chora, depois passa. Ou então, emudece. Nunca sei o que vai acontecer.” (CO, 5). Já a narradora, sem nome, de Meus

queridos estranhos (o título refere-se mesmo à família, tanto a de origem quanto aquela

construída pelos seus casamentos), é mais explícita:

Tenho muito medo. Não sei como as pessoas agüentam ver sempre os parentes, como não escorre mãe dos ouvidos, purgam irmãos pelos olhos, pinga um avô do nariz. Eu não posso ver todos os dias a mesma pessoa; passo muito mal. Acho que foi a bondade, muita bondade, que me deixou

28

desse jeito, desequilibrada. Não vou enveredar por aí, é um caminho sem volta. Sabe Deus onde vai dar...”29(MQE, 68)

Mulher de meia-idade, hipocondríaca, “piora” a cada visita da mãe idosa. Essa mãe está sempre a contar das doenças da família e, nas visitas que faz a ela, imagina que “a um gesto seu, parentes prestimosos, vivos ou mortos, entrarão voando pelas janelas dando rasantes e com suas garras de pluma me levarão em suas asas rumo ao seio farto do abutre. Socorro. Me levantei para fechar as janelas. Perguntou por quê. Calor (sempre que a vejo, pioro instantaneamente). (MQE, 123). A sua hipocondria surgira ainda na infância, quando se refugiava no banheiro toda vez que tinha discussão em sua casa (“tenho horror a briga, fui criada no meio de confusão” (MQE, 146)). Lá ela ficava durante horas a ler bulas de remédios. Decorava-as e depois recitava nas festas de família.

Outro adoecido pela família é Eduardo, de Meu marido. E lembra à Bela, sua esposa e narradora, porque está “arrasado” diante da notícia da chegada dos parentes dela: “Você sabe que eu não gosto de família. Qualquer que ela seja. Não é à toa que eu não tenho. Só tive a minha pequena bailarina, e assim mesmo na ponta dos pés30. Passo muito mal na presença de familiares. Têm vezes que até vomito. Uma vez desmaiei num batizado, e em outra oportunidade fui a uma comemoração de bodas e quase saí estendido. Apertos de mão, beijos e abraços compungidos liquidam comigo”. (MM, 61)31 Gilda, em Solo feminino, tem “horror” a dormir depois que conversa com a mãe, sempre a falar dos mortos, tem “medo” de criança, em especial da filha de seu namorado. O seu tio, que mora com elas, vive embaixo da cama. Para Gilda, ele “atingiu um tal ponto de insuportabilidade da família, que mal consegue dar uma espiada”. (SF, 9)32

Nos romances narrados por crianças também há esse sentimento de medo e estranhamento. Luciana, de Quarto de menina, depois de anos morando com o pai, passa a ser “uma criança móvel”, dividida entre a “sua casa” e a da mãe, que retornara à cidade após um tempo trabalhando em Brasília. No início da narrativa, ela é bastante distante dessa mãe, que a enche de presentes em seu novo quarto. E seu discurso, de boa menina educada, mostra isso, em especial seus novos temores:

A casa da mamãe é tão bonita... foi o que pensei enquanto chegava em sua casa nova. Ela também, bonita, simpática, sorridente. Não gostava

29Meus queridos estranhos será referido pela sigla MQE, seguido do número da página. 30Refere-se à sua mãe bailarina, que o criou dentro dos teatros.

31O romance Meu marido será referenciado pela sigla MM. 32

dela. Tinha medo que descobrisse. Ao contrário de papai, mamãe falava demais. Não conseguia escutá-la. Em meio às frases, a todo momento dizia meu nome, não sei por quê, muito menos para quê. (QM, 14)33

Chega a passar mal nesse primeiro dia na casa da mãe e desmaia. Quando o pai vai buscá-la, sente-o mais velho (provavelmente entristecido com a partida da filha) e mais falante também. “Falando, quase sorriu. Sinto medo que venha a sorrir. Não é de sorrisos. Pai e mãe são pessoas estranhas... dão até medo na gente.” (QM, 24)

Leninha, de A palavra que veio do Sul, outra menina dividida entre a casa do pai e da mãe, não usa a palavra “medo”, mas está sempre a imaginar que o pai irá agredi-la fisicamente (o que nunca acontece), mas suas fantasias se repetem e reprime algumas ações por conta disso: “Eu não acho bonito isso que papai faz, mas não posso dizer porque ele pode me dar um tapa nas costas e eu perder o equilíbrio e cair de boca no chão. Um dia, eu vi um pai batendo nas costas de um menino, e o menino chorava e cuspia os dentes.” (PQS, 63)34 João, de Cartão-postal, também imagina violências e agressões o tempo todo, mas no caso, vindas do padrasto Chico Danger. Como sua mãe, ele é dublê e está sempre treinando e descrevendo cenas perigosas das quais participa. João e sua irmã Clara vivem em um universo violento, com o tio que bate efetivamente na avó, com a mãe “morrendo” em filmagens. Seu maior medo se confirma, quando Chico Danger passa a morar com eles. João imagina que ele quer matá-lo e a toda família. Vive com dor de barriga de tanto terror e, às vezes, descarrega sobre a irmãzinha (admiradora do padrasto), contando-lhe histórias apavorantes. Tenta recorrer ao pai, que não faz nada, à avó (que só acredita que a filha está feliz) e até ao violento tio Vicentinho, que, ao final, revela-se fraco diante de Chico Danger. De fato, Chico é violento e explosivo, tem brigas bastante intensas com a mãe, e chega a empurrar o menino, que tenta protegê-la. Mas a imaginação de João faz tudo ficar maior, principalmente porque ninguém percebe que Chico é literalmente um perigo (daí o apelido). A narrativa é bastante tensa, mas há tantas situações “fantásticas” que o efeito termina sendo diminuído, em relação aos temores mais “realistas” das outras crianças. Ao final, já adolescente, João é integrado ao universo de Chico Danger, que o leva a um prostíbulo, pois afinal “era hora dele conhecer as mulheres”. (CP, 187)35Todos na casa dão “vivas” quando ele retorna desse “primeiro intercurso físico”, nas palavras do padrasto.

33A sigla QM será usada para o romance Quarto de menina. 34A sigla PQS será usada para o livro A palavra que veio do sul. 35

Essa família retratada por Lívia Garcia-Roza é um espaço de medo e de falta de comunicação, provocando doenças e desajustes entre seus membros. Pessoas desajustadas em relação a um modelo consolidado, a partir do século XVIII. Como aponta Michelle Perrot36, a família, como responsável pelo gerenciamento dos “interesses privados”, tem inúmeras funções: elemento fundamental para o funcionamento econômico e transmissão de patrimônio, célula reprodutora, responsável pela socialização das crianças, é instigada pelo Estado para transmitir os valores simbólicos da nacionalidade e da cidadania. Ela destaca o século XIX como período em que esse modelo mostrou-se triunfante. No Brasil, o “estímulo” à “organização familiar adequada” ocorreu no início do século XX, baseada no modelo nuclear e burguês e foi dado por uma série combinada de estratégias, resumidas por Susan Beese. Padrões higienistas e conjugais “saudáveis”, leis “protetoras” ao trabalho das mulheres, incentivos estatais ao casamento e à procriação dentro dele eram temas de debates entre “progressistas” e “conservadores”. Como salienta Beese, as “relações íntimas entre homens e mulheres tornaram-se objeto de vigilância e controle público cada vez maiores, tendência que acompanhava e complementava as tentativas crescentes do Estado de passar a se envolver na regulamentação de todos os aspectos da vida social.”37 Se as mulheres começaram a entrar no mercado de trabalho, era preciso enfatizar, através de diversos discursos, a permanência da necessidade da hierarquia social, acentuando a esfera de atuação da “esposa” e “mãe” na esfera doméstica.

A família brasileira foi estruturada, ao longo da história, por um modelo patriarcal, no qual o pátrio poder era mantido pela relação de sangue e compadrio. Ao lado do patriarcalismo, destacou-se, segundo os autores citados por Marlise Matos, o “familismo”: o entrelaçamento da família, da vida econômica e política do país”38. A pesquisadora enfatiza que, junto de modelos hegemônicos, há um processo paulatino de perda da força normativa da instituição familiar, em relação aos comportamentos afetivos e sexuais (em especial nas camadas médias urbanas). Destaca fatores desencadeadores: incorporação de todos à dinâmica do trabalho assalariado, em especial das mulheres; a luta pelos direitos civis e pelas “minorias”; movimento crescente e contínuo de individualização das mulheres por meio do feminismo e da conscientização; controle tecnológico sobre a reprodução humana e a maior visibilização das alternativas

36Ver Perrot, Funções da família.

37Beese, Modernizando a desigualdade, p. 64. 38

identitárias de gênero (homossexuais, bissexuais e transexuais).39 Marlise Matos defende que tal perspectiva não exclui a existência do modelo tradicional, mas sim que há a coexistência conflituosa, que faz com que interajam “formatos heterogêneos de relações identitárias e familiares.”40

Existem trabalhos específicos que apresentaram a relação da literatura das escritoras brasileiras e a recorrência do tema da família. Para Elódia Xavier, escritoras como Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Rachel de Queiroz, Lya Luft, Helena Parente Cunha, entre outras, trouxeram narrativas que “desvelaram a falência dos valores da família nuclear burguesa”.41Com estilos diferentes, segundo a pesquisadora, elas colocaram em cena questões de inadequação das mulheres aos papéis dominantes de gênero, instituídos no espaço privado da família. Com maior sustentação teórica, Cristina Ferreira-Pinto fez trabalho semelhante, promovendo o diálogo entre obras de quatro escritoras (Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Lúcia Miguel-Pereira e Rachel de Queiroz) e as mudanças sociais, em especial da família nuclear. Sua perspectiva foi analisar romances de formação dessas escritoras.42 Cristina Ferreira- Pinto vai dedicar mais páginas à obra e ao perfil de Lygia Fagundes Telles. Para ela, a escritora tem registrado as transformações da família patriarcal brasileira ao longo do tempo, em especial a descentralização da figura do pai, ausente em muitos de seus romances. Se os estudos citados põem em foco as narrativas até a década de 80, essa família mostrada por uma escritora surgida na década de 90, como Lívia Garcia-Roza, ainda retrata a falência de um modelo opressivo, mas ainda sem uma solução alternativa. As pessoas continuam morando juntas por conta dos laços consangüíneos e conjugais, mesmo em meio ao caos e à comunicação truncada. Seu horizonte dominante é o da família nuclear, seja para ratificar ou contestar suas características. Se Stella Florence mostrou um discurso ambíguo de suas personagens, pendularmente confusa entre tantas referências díspares, as personagens de Lívia Garcia-Roza não são muito diferentes. Mas o tratamento narrativo é diferenciado. O conflito está o tempo todo presente, não necessariamente nos diálogos (muitos sem sentido), mas na própria falta de comunicação entre essas pessoas vivendo sobre o mesmo teto. Há afeto, junto com uma outra série de sentimentos misturados, mas a expressão é falha, e suas narradoras, na maioria das vezes, nada confiáveis, pois vivem a família como uma instituição que as

39Id, p. 20. 40Id, p.21.

41Xavier, O declínio do patriarcado, p. 120. 42

adoece. A alternativa é falar sem ser compreendida, trocar palavras conflituosas, descrever os ruídos e estranhezas do cotidiano familiar. A incerteza e o estranhamento dominam suas narrativas, bem diferente das “verdades” presentes na obra de Florence.

As personagens estão sempre em busca de uma palavra, de uma linguagem que as faça sobreviver em meio a tantos “perigos”. Sentem que falam uma outra língua que cada vez as afasta mais, principalmente daqueles próximos. A luta por uma linguagem própria nem sempre tem final feliz, mas a escritora tem retratado isso de forma constante. Traz, por isso, uma das grandes questões da agenda feminista que é a busca por uma autonomia simbólica e representacional por parte das mulheres. As suas narradoras, mesmo em primeira pessoa, não chegaram a isso, mas têm lampejos de conscientização. A sua escrita apela então a um posicionamento de leitura, capaz de interpretar criticamente essa visão de gênero, acossado por estereótipos e incapacidade de expressão e comunicação. Em Meus queridos estranhos, a narradora cria novas palavras (juntando, por exemplo, o nome do marido falecido com o do atual, “Xanoel”), sendo essa uma das marcas de seu “desequilíbrio”: “Quando pioro, a fala sofre. Já me surpreendi falando como num livro, letra de música, dublagem; várias linguagens falam em mim quando estou mais perturbada”. (MQE, 103) Em Cine Odeon, esse processo é acentuado, mas Isabel não é consciente dele. Mesmo sendo a narradora, a estranheza fica só percebida pelos leitores e leitoras. O seu namorado misterioso, Miguel, a seduz com frases de enciclopédias e de programas educativos (“A cor do seu vestido me atraiu. Existem vários brancos, um esquimó distingue sessenta tons”. (CO, 10)) e, mesmo em seus encontros sexuais há esse tom “didático” em que compara, por exemplo, seu pênis a um cogumelo (“não tem esqueleto, é carnoso, e se você examinar com cuidado seu porte arbóreo de tronco grosso e formato inconfundível verá que está intumescido pelo acúmulo de reservas nutritivas” (CO, 71)). O pai de Isabel só fala através de frases feitas e impessoais, como “A vida traz fortes exigências”, “A natureza não tem limites” etc. A avó fala italiano em seus surtos, e o irmão Gual, ao viajar pelo Peru, manda cartas para Isabel, assinando como Miguel. No fim, revela-se que Miguel era uma fantasia de Isabel (“o único a quem a minha paixão amou” (CO, 220)), com seu discurso recheado de frases de TV, por exemplo. Quando Miguel some, ela começa a ouvir a voz dele nos noticiários da TV e a vê-lo em todos os rapazes. Em certo momento, chama seu irmão Gual de Miguel (Gual/Guel: igual), como se juntasse a fantasia do irmão à do imaginário namorado. Em Solo feminino, Gilda solta frases em espanhol, sem nenhuma razão. Até que a mãe lhe explica que, quando muito pequena,

passara um ano com o pai na Espanha. Ela não se lembrava e o espanhol aflora nas situações mais tensas. O único diálogo mais freqüente com a mãe (de quem foge continuamente, por conta dos inúmeros conselhos que ela lhe dá) é sobre a resolução de “palavras cruzadas”. A mãe está sempre a perguntar os sinônimos e Gilda tem prazer em ajudá-la. É o diálogo possível entre mãe e filha, marcado pela busca de significados altamente denotativos das revistas. Há ainda agravantes, pois a mãe não escuta direito, apenas quando as pessoas gritam ou pega emprestado o aparelho de surdez de uma vizinha. Aí tem outra “escuta” (através do recurso de uma outra mulher). Gilda diz que é assim: “eu digo uma coisa, mamãe entende outra, e vice-versa” (SF, 11). Em Cartão-

postal, João não reconhece a voz da mãe quando ela está com o padrasto. Perde sua

força e fica com uma “vozinha”, que não é a dela.

Mas nenhum desses processos é tão forte quanto em Meu marido. Bela é a narradora, mas isso não configura que é “dona” de seu discurso. O romance já começa com o discurso direto livre de Eduardo falando sobre o Cristo Redentor (... Está me ouvindo, Bela? Não quer conversar, nhein...? (MM,5). E continua: “ Não vai dizer nada?  O que você quer que eu diga?  Que concorda.” (MM,5) Apesar de ser professora de inglês (trabalha com palavras, mas uma língua estrangeira), Bela pouco conversa. A narração volta à Bela: “Temos uma vida confusa, apesar de sermos somente meu marido, eu e Raphael, nosso filho. Tem também a Dulce, babá do Raphael, e o cachorro.” (MM, 6) Esse tom “tranqüilo” de Bela ao narrar sua vida é cheia de eufemismos para mostrar os excessos e a violência de Eduardo. Hipocondríaco, alcoólatra, violento, verborrágico, machista, ele, aparentemente, domina todas as palavras. Gosta de usar palavras que Bela não entende, para assim poder explicá-las (“Nunca escutou o verbo solancar, não é? Sua expressão revelou ignorância. Solancar é trabalhar arduamente, com afinco, em serviço pesado” .(MM,43)) As relações sexuais dos dois também são descritas, simultaneamente, por Eduardo, que chama seu pênis de “Comendador” e dá ordens à Bela, como tirar a calcinha, desfilar na frente dele nua, mandar abaixá-la, abrir as pernas etc. Não se mostra a fala de Bela, que apenas parece cumprir os “comandos”. E gosta, pois quando passam um tempo sem sexo, reclama com Eduardo, suavemente. Conta a sua dificuldade em engravidar, depois de dois anos de casamento:

Passei por muitas situações esquisitas, sexualmente falando. A cada vez que fazíamos amor, Eduardo achava que estava fazendo o filho dele, então me punha em posições complicadas e falava o tempo todo, numa

sofreguidão desesperada. Já naquela época. Chamava Raphael de campeão. (MM,102)

Nessas tentativas, Eduardo chega a tapar o rosto de Bela com travesseiro, para provocar o “relaxamento” dela. Essa violência é descrita pela narradora como “uma invenção” sem efeito, além da “dificuldade para respirar em algumas noites” (MM, 103). Aparece a violência de Eduardo, mas o discurso de Bela é sempre atenuante. Enfim, fica grávida e tem medo que Eduardo perceba sua felicidade. Só conta a ele depois de três meses de gravidez (“Nem sei como Raphael agüentou todas as trepadas que demos durante esse período. Às vezes tinha impressão de que o bebê chorava dentro de mim” (MM, 107)). A palavra “trepadas” soa dissonante, pois parece a inserção do discurso de Eduardo nesse momento. Como se a gravidez fizesse “juntar” o vocabulário até então diferenciado do casal. Bela é uma mãe dedicada ao seu bebê, emociona-se quando ele balbucia “ma-mã”. Eduardo só fica em silêncio e presta atenção no que Bela diz quando ela fala do filho. Ao final, Raphael já é um garoto, louco por futebol como o pai, e repetindo seu jeito de falar.

A figura da “mãe” das protagonistas é central e, em todos os seus livros, as primeiras linhas trazem referência a ela. O medo de Isabel em Cine Odeon (já referido); a mãe que lembra como Luciana era bebê, em Quarto de menina; “tudo começou no dia em que mamãe disse que iria se separar de papai” (Cartão-postal); a “mamãe” deitada no chão da sala, em A palavra que veio do Sul; um banquete de mulheres presidido por