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L ONGITUDINALIDADE DO C UIDADO – F ONTE R EGULAR D E C UIDADO

Não deixa de trabalhar

5.3 L ONGITUDINALIDADE DO C UIDADO – F ONTE R EGULAR D E C UIDADO

Os resultados evidenciam que a maioria dos indivíduos tem um médico de referência para o acompanhamento da saúde, sendo mais frequente entre aqueles que não têm plano de saúde, o que revela a existência de uma fonte regular de cuidados por esses indivíduos. Estudos indicam que a existência de uma fonte regular de cuidados faz com que o indivíduo realize mais consultas e cuidados preventivos (BASTOS et al., 2011; DEVOE et al., 2003). Além disso, a relação com um médico específico facilita o reconhecimento de problemas pelo profissional e fortalece o senso de confiança no médico, que é adquirido ao longo do tempo (STARFIELD, 2002).

O fato de a minoria dos indivíduos que têm médico de referência serem filiados a plano de saúde sugere que a dinâmica de atenção à saúde praticada pelos planos e seguros de saúde não favorece a obtenção de um médico como fonte regular de cuidados. No Brasil, o sistema público, tido como universal, convive com um considerável mercado privado de planos e seguros de saúde com predomínio da atenção especializada e fragmentada. A atenção especializada apesar de oferecer o cuidado mais apropriada para as enfermidades específicas, dificilmente produz uma atenção básica altamente efetiva de modo a integrar a atenção para a variedade de problemas de saúde que os indivíduos apresentam com o tempo (STARFIELD, 2002). Desse modo, os indivíduos afiliados a plano de saúde ficam desprovidos de um médico de referência para o acompanhamento da saúde pelo fato de terem um especialista para cada problema de saúde.

Quanto ao tipo de médico, os dados desse estudo revelam que o médico da UBS foi o mais citado como referência entre os indivíduos, predominantemente pelas mulheres, idosos (60 anos ou mais), pelos que possuem baixa escolaridade, que pertencem à classe econômica C, que não trabalham e que fazem o uso de medicamento contínuo. Foi ainda considerado como referência pela maioria dos entrevistados que não possui plano de saúde (64,1%) e por 24,5% dos indivíduos que possuem plano o que revela a utilização desse profissional como fonte regular de cuidados e por consequência o estabelecimento de vínculo com essa parcela da população.

Estudos mostram que a ESF e a UBS têm sido fonte regular de atenção ao longo do tempo (IBAÑEZ et al., 2006; MACINKO; ALMEIDA; OLIVEIRA, 2003; VIACAVA, 2010) e as equipes do PSF e da ESF têm apresentado vínculo mais forte

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Discussão ____________________________________________________________________________ com seus usuários (MACINKO; ALMEIDA; OLIVEIRA, 2003; MARIN; MARCHIOLI; MORACVICK, 2013; VAN STRALEN et al., 2008) provavelmente pelos investimentos realizados nesse modelo de atenção com vistas à expansão e consolidação da estratégia e das políticas para institucionalização do monitoramento e avaliação desses serviços (PAULA et al., 2016). O fato de o usuário ter uma unidade próxima da sua casa, de fácil acesso e diversidade de serviços, pode facilitar o estabelecimento de vínculo (PEREIRA et al., 2011).

O perfil da população que considera o médico da UBS como referência corrobora a ideia exposta por Travassos e Castro (2012) de que o padrão de utilização por tipo de serviço é desigual, sendo que as pessoas mais pobres usam mais os postos e centros de saúde e menos consultórios privados. Essa desigualdade também é percebida entre os sexos e faixa etária de modo que há predomínio das mulheres e dos idosos o que sugere, por um lado, a presença de práticas equitativas nas UBS de modo a contemplar os indivíduos mais vulneráveis. Por outro lado, parece haver dificuldade em ter um médico de referência para o cuidado e em captar toda população que deveria estar recebendo atendimento na unidade, pois além das desigualdades percebidas somente 489 (55,2%) indivíduos têm médico de referência e apenas 26,4% dos entrevistados consideraram o médico da UBS como referência.

A baixa prevalência de fonte regular de cuidado aponta para problemas na organização dos serviços de saúde no sentido de estreitar o vínculo, proporcionar o acompanhamento dos indivíduos (LIMA-COSTA; TURCI; MACINKO, 2013) e ampliar o acesso aos serviços (PAULA et al., 2016). O acolhimento, entendido como o modo de operar os processos de trabalho em saúde, de forma a atender a todos que procuram os serviços com uma postura ética é uma ferramenta capaz de qualificar a construção do vínculo, da relação de confiança, do compromisso dos usuários com o serviço e garantir o acesso com responsabilização e resolubilidade nos serviços (BRASIL, 2010b). É um aspecto que deve ser considerado no processo de produção da relação usuário-serviço sob o olhar da acessibilidade uma vez que opera como um dispositivo nos momentos em que acontece a recepção do usuário nos serviços de saúde (FRANCO; BUENO; MERHY, 1999).

Práticas acolhedoras se constituem num dos pontos fundamentais para a efetivação da atenção básica como contato e porta de entrada preferencial da rede de

Discussão ____________________________________________________________________________ atenção à saúde (BRASIL, 2012a) e contribuição com a redução de barreiras de acesso aos serviços de saúde (BARBOSA; ELIZEU; PENNA, 2013; GIOVANELLA; ESCOREL; MENDONÇA, 2003; SANTOS et al., 2016). Pesquisadores que objetivaram conhecer as necessidades de saúde e os obstáculos que impedem o atendimento das necessidades de saúde do homem em Cuité-PB evidenciaram nas falas dos entrevistados que o acolhimento e a comunicação são estratégias que contribuem na procura pelos serviços de atenção básica (CAVALCANTI et al., 2014). Assim, essa atitude deve ser realizada por toda equipe de saúde, em toda relação profissional de saúde – pessoa em cuidado, envolvendo carinho, atenção e respeito com o objetivo de defender a vida das pessoas (MASSON et al., 2015).

Entretanto, o fato de alguns indivíduos utilizarem o médico da UBS, mas não o considerarem como referência conforme observado no presente estudo, sugere que essa prática acolhedora ainda não faz parte do dia-a-dia dos trabalhadores de saúde - um dos protagonistas do processo de trabalho. Dificuldade que supostamente ocorre pela incorporação do modelo hegemônico de atenção à saúde (médico centrado), despreparo dos profissionais (BECK; MINUZI, 2008; SANTOS; SANTOS, 2011) e pela vivência de uma prática de trabalho mecanizado com desgaste psíquico, físico e emocional (MARTINS; ALBUQUERQUE, 2007; TONINI et al., 2016). Entre os principais desafios da ESF está a implementação de estratégias de qualificação e a formação profissional de acordo com o modelo de atenção centrado na APS (ARANTES; SHIMIZU; MERCHÁN-HAMANN, 2016; MENDONÇA et al., 2010) na medida em que se trata de alterar as formas de educação já consolidadas (GIOVANELLA; MENDONÇA, 2012) e a mentalidade dos profissionais de saúde acerca do SUS (ERDMANN et al., 2009). Ações direcionadas aos trabalhadores de saúde que consideram os fatores subjetivos do sujeito e o contexto em que esses estão inseridos podem ser uma alternativa para a inclusão do acolhimento nas ações (MARTINS; ALBUQUERQUE, 2007) de modo que se efetive de fato nas práticas diárias e seja considerado como um instrumento de trabalho (BECK; MINUZI, 2008; MACHADO et al., 2016).

A oferta e a disponibilidade de médicos são outros fatores que podem estar interferindo no acesso e por consequência no estabelecimento de uma fonte regular de cuidado e no vínculo longitudinal dos entrevistados que não têm médico para o

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Discussão ____________________________________________________________________________ acompanhamento da saúde. Apesar de a pesquisa ter sido realizada em um município situado no Paraná, um dos estados brasileiros que está entre os que possuem as maiores concentrações de médico (SCHEFFER; BIANCARELLI; CASSENOTE, 2015), no município estudado, em 2016, apenas 35 médicos atuavam na atenção primária para atender uma população de 113.822 habitantes, segundo dados oficiais do município (CAMBÉ, 2016a). O Brasil tem proporção de médico por 1000 habitantes abaixo da média dos países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE (3,2 médicos por 1.000 habitantes), sendo em 2015 o oitavo país com a menor taxa de médicos por 1000 habitantes – 2,1 médicos - dentre quarenta países comparados no estudo (SCHEFFER; BIANCARELLI; CASSENOTE, 2015).

Além disso, o crescimento na oferta de médicos na atenção primária – setor público - é menor do que no setor privado, fato que predispõe a uma desigualdade público-privada cada vez maior para a prática médica no Brasil. A população atendida pela assistência médica suplementar tem aproximadamente três vezes mais médicos à sua disposição que a população atendida pela rede pública, supostamente devido aos fatores mais relevantes para fixação do médico como salário/remuneração, condição de trabalho, qualidade de vida e ambiente seguro/sem violência (SCHEFFER; BIANCARELLI; CASSENOTE, 2015). No ponto de vista dos gestores e profissionais da ESF de grandes centros urbanos a carga horária e a influência da prática liberal da medicina, além das baixas remunerações, também se constituem em fatores que dificultam a atração e retenção dos profissionais médicos na atenção básica (MENDONÇA et al., 2010). Ademais, esse cenário é influenciado pelo contexto coletivo uma vez que o médico da equipe de saúde da família não é socialmente valorizado entre seus pares cuja valorização é medida pelo uso de tecnologias cada vez mais avançadas (VAN STRALEN et al., 2008).

Esses supostos fatores que dificultam a utilização de serviços como ausência acolhimento, de acesso e reduzido número de médicos atuantes na atenção primária podem explicar o fato de aproximadamente 38,0% dos indivíduos não terem médico para o acompanhamento da saúde e a utilização do plantonista do hospital/UPA como referência para o acompanhamento da saúde de alguns entrevistados. Vale ressaltar que ainda que esses indivíduos tenham garantia de atendimento nesses serviços de pronto atendimento, o modelo assistencial da UPA responde apenas a casos agudos ou

Discussão ____________________________________________________________________________ episódios de agudização de agravos crônicos sem possibilitar seguimento (GIOVANELLA; MENDONÇA, 2012). Assim, supõe-se que a utilização do plantonista como referência corresponde ao médico que está atuando no dia em que o indivíduo compareceu ao serviço de urgência/emergência e não a um profissional específico que tem vínculo com o usuário. Essa situação é preocupante, pois os profissionais dos serviços de pronto atendimento não atendem aos atributos da APS como a criação de vínculos e acompanhamento longitudinal.

5.4LONGITUDINALIDADE DO CUIDADO – RELAÇÃO INTERPESSOAL