• Nenhum resultado encontrado

CAPITULO III – MICROPOLÍTICA

2.2 LABERINTO DE PASIONES

O Cine Alphaville que nunca tinha produzido um filme financiou o segundo longa- metragem do diretor. O valor recebido para essa produção era considerado baixo, já que a mesma tinha cerca de 40 cenários. Por esse motivo, demorou quase dois anos para ser rodada. Segundo o diretor, a escrita do roteiro não foi difícil, o pior foi rodar as cenas, pois eram muitas e ele não tinha tanta experiência. Quando o cineasta escreveu esse roteiro queria mostrar que Madri era a principal cidade do mundo, uma cidade que todos queriam visitar e na qual tudo poderia acontecer. Essa capital, em sua cinematografia, tem um importante papel na medida em que é palco da Movida Madrileña e de suas experiências:

[...] ele inclui um aspecto muito próximo da vida real da época. Labirinto de Paixões foi rodado durante os anos de ouro da Movida, entre 1977 e 1983 e, ali vemos praticamente todos os protagonistas desse movimento – pintores, músicos que tiveram muito sucesso nos anos que se seguiram às filmagens. As personagens- chave daquele período intervêm na história de forma indireta e, isso dá ao filme um interesse local alheio a qualquer julgamento propriamente cinematográfico. Na Espanha de hoje, contudo, esse aspecto conservou uma força emblemática”. (…) O filme estava em sintonia com o clima de liberação que então se percebia em Madri, e as pessoas sentiam, ao assisti-lo vibrações semelhantes às de suas próprias vidas. (STRAUSS, 2008, p. 43).

Labirinto de paixões foi rodado na Espanha no ano de 1982 e por causa de seu impacto ficou em cartaz durante dez anos no Cine Alphaville, o que denota que a crítica não convenceu os espectadores com seus comentários negativos. A obra é um grande mosaico da cena pop cultural madrileña e retratava de maneira direta as drogas, os comportamentos extravagantes, a música contemporânea, a inseminação artificial e outros elementos que escancaravam a sociedade espanhola. Contudo, como na época pós-franquista ainda havia censura, e como causou escândalo no Festival de San Sebastián, duas salas de cinema em Madri, a Gayarre e a Sáinz de Baranda, decidiram retirar o filme de seus circuitos, já que sua projeção poderia alterar a ordem pública.

O filme tem várias estórias paralelas e tem como linha narrativa principal a estória de Sexilia, filha de um ginecologista especializado em inseminação artificial e concepção de bebês de proveta. A protagonista faz psicanálise com a esperança de curar-se da ninfomania e fobia ao sol. Mas, sua psicanalista não é de grande ajuda, pois se preocupa apenas com o seu próprio desejo: o de dormir com o pai da paciente. Riza, jovem homossexual e filho do

imperador do Tirão, veio à Madri para viver algumas aventuras. Depois de se tornar cantor de um grupo pop, ele conhece Sexilia – revelando-se um amor à primeira vista. Não param de pensar um no outro e posteriormente confessam o seu amor, mas não fazem sexo. Sexilia, durante a trama, encontra com Queti, filha do dono de uma lavanderia, que veste suas roupas para sentir-se como ela. Queti é obrigada a dormir com o pai que a confunde com a mãe – que, por sua vez, fugiu com um amante. Sexilia, que fisicamente é parecida com Queti, propõe à mesma que ocupe o seu lugar. Dessa forma, Queti poderá libertar-se do pai, e Sexilia terá a oportunidade de fugir com Riza para viver um grande amor no Panamá. Toraya, ex- imperatriz do Tirão e cliente do pai de Sexilia, encontra Riza no hotel em que está hospedada e tenta seduzi-lo. Sexilia flagra os dois na cama e, decepcionada procura por sua psicanalista. Ao recordar o passado, descobre que Toraya é responsável pelos traumas de sua infância: a ninfomania e o horror à luz do sol. Sadec (um dos primeiros amantes de Riza em Madri) e seus amigos querem raptá-lo. Todas as personagens chegam ao aeroporto na perseguição de Riza. Contudo, ele e Sexilia conseguem fugir para o Panamá e fazem amor pela primeira vez dentro do avião.

Nessa produção, como em quase todas as outras, nos deparamos com uma mistura de gêneros cinematográficos que marca toda a carreira do diretor: comédia pura, ação, filme musical, crônica realista, filme romântico e outros. O longa é um pouco melhor elaborado que

Pepi.., mas ainda assim tem alguns problemas técnicos, uma vez que Almodóvar vai alcançando o domínio da arte cinematográfica gradativamente. Há alguns cortes abruptos e a linha narrativa é um pouco confusa, pois existem muitas estórias paralelas que em determinados momentos são mais interessantes que a própria narrativa principal.

As personagens de Laberinto... são um reflexo distorcido e exagerado das pessoas apresentadas nas revistas de crônica social. Riza Niro (Imanoel Arias) e Toraya (Helga Liné) aludem claramente aos integrantes da dinastia do Irã: Reza Niro e Soraya, além de serem um retrato fiel de um segmento da Madri pós-franquista.

A estética pop, outra vez, pode ser percebida através da clara apropriação das revistas da época com seus ícones e também com a filmagem de uma fotonovela dirigida pelo próprio Almodóvar. Outro indício está na abertura do filme, que apresenta El Rastro, uma importante feira de Madri na qual se vende quase tudo. Sexilia passeia por esse lugar contemplando o órgão genital masculino de todos que passam pela sua frente. Nessa cena, o diretor recupera uma importante capa da banda Rolling Stones intitulada Stick Fingers. Em outro momento,

uma das personagens folheia uma revista em que aparece Patty Diphusa, estrela pornô e figura literária de Almodóvar quando ele publicava contos na revista La Luna.

A gíria é outra forma de expressão que particulariza a comunicação das personagens e, portanto, do que se via naquele momento em Madri. No que se refere à moda, vários tipos de tecidos eram utilizados: o couro, o tule, as estampas, as cores fortes como o vermelho da paixão, do sangue e da vida que mostra o caráter hiperbólico da moda e o tumultuado cotidiano da época. O vermelho surge também para criar o clima de passionalidade e confrontar-se com a cor preta dos vestidos das mulheres da Espanha, que exigia recato e discrição provenientes do moralismo católico. Os acessórios das personagens são geometrizados e exagerados. Toda a figurativização das roupas, acessórios, sapatos, cortes de cabelo, tecidos, objetos e cores apontavam para um comportamento de vanguarda e de liberdade que se contrapunha a uma Espanha subjugada por muito tempo. A música também tem um importante papel, já que com suas letras punks era uma forma de romper com o que durante muito tempo se ouvia na Espanha: Julio Iglesias, Raphael e muitos outros cantores românticos.

Desse modo, verificamos nessa produção uma linguagem sincrética, ou seja, “as semióticas que – como no cinema – acionam várias linguagens de manifestação, pois manejam vários conjuntos significantes como música, moda, fotografia, fotonovela, quadrinhos, fala, gestos, cenários, etc”. (GREIMAS; COURTÈS, 1984)

Observamos o ambiente externo figurativizado pela própria capital da Movida

Madrileña, através de suas ruas, carros, motos e edifícios que sugere uma Madri de movimento, onde realmente a vida acontecia e as classes sociais se mesclavam, independentemente de poder aquisitivo, profissões ou ascensão social. No que diz respeito à mescla dessas classes, observamos a cantora de rock Sexilia, rica e bem-sucedida, tentando trazer para o seu mundo artístico a ajudante de lavanderia Queti. Há também um ambiente interno que semiotizava os acontecimentos do movimento através da figurativização do quarto da personagem Sexilia: esse ambiente traz Madri para dentro do quarto, fazendo um recorte do Movimento. Nesse espaço há um enorme quadro que é pintado com cores contrastivas e “austeras”, formas geométricas entrelaçando corpos, figuras de instrumentos musicais e aquarelas, e foi produzido por Guillermo Pérez-Villalta, importante personagem da Movida

presentes na Movida, como a liberdade sexual, a vivacidade do Movimento e a presença de outras linguagens.

Apesar de o diretor ser considerado moderno, em suas produções, ele nunca esquece os elementos da Espanha arábica. Quando a personagem Sexilia, que está vestida com uma capa vermelha semelhante à capa de um toureiro, abre a porta de seu quarto, podemos observar que há um quadro em forma de arco atrás da porta com a figura de um toureiro, o que designa a presença de elementos flamenco-arabizantes. Contudo, a porta de entrada em formato retangular determina elementos culturais de uma nova Espanha. Há nesse momento a fusão de ícones da cultura espanhola, como as touradas e a invasão árabe com elementos da linguagem moderna.

No eixo do conteúdo, Almodóvar lança alguns olhares sobre a psicanálise. Satiriza esse segmento nas personagens da psicanalista que só pensa em sexo e jogos, e no comportamento da personagem Sexilia, que vai ao consultório somente porque seu pai insiste. O diretor utiliza flashbacks para reconstruir a origem dos traumas dessas personagens. Contudo, para ele, a grande aventura da vida é conviver com os problemas e traumas e não resolvê-los. Pensamos que essas neuroses é que fazem das personagens do cineasta representantes tão fortes da vida e do desejo que os levam muitas vezes ao caráter de herói do cotidiano onde tudo pode acontecer. Vislumbra também a questão da maternidade, que é protagonizada por uma personagem que teve um bebê de proveta e odeia a criança. Ela realizou essa prática porque seu companheiro não podia ter filhos. Depois do fato consumado, ele a deixou. Dessa maneira, se vinga da filha, culpando-a pelo infortúnio de estar só. Almodóvar põe em xeque a prática da maternidade como algo celestial para todas as mulheres, além de destacar o que elas são capazes de fazer para escapar da solidão. Esses temas são retratados dentro de uma comédia, o que muitas vezes dificulta a observação da crítica no sentido de um olhar mais atento a assuntos importantes dentro de uma sociedade que são reproduzidos sem questionamentos.

Laberinto... é uma ficção louca e corresponde a um documento do que se vivia naqueles tempos particularmente em Madri. É uma fotografia do que acontecia na época. Almodóvar declara que:

Ya me he identificado con Madrid. Con el infierno de la gran ciudad. Con lo más espantoso. Uno acaba acostumbrándose al infierno. No hay otra posibilidad. Fíjate que lo “punk” vino de ahí. Los jóvenes de los barrios estaban condenados a la mierda, la miséria y el asfalto y como eran sus elementos decidieron utilizarlos. Era su lenguaje, no lo habían elegido. Es una actitud vital y agresiva. Devulves con más

agresividad e imaginación algo a lo que te han condenado. (MALDONADO, 1989, p. 48)

Nesse sentido, a vida estava escancarada e o desejo era latente. A micropolítica era a própria expressão desses jovens que devolveram com muito mais rigor e alegria o que lhes foi dado – as cores, a estética, as gírias e a inserção de outros segmentos artísticos que se constituíam em verdadeira afronta a relações de poder e subjetividades dominantes.

 

Documentos relacionados