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OS INTERCESSORES DE ALMODÓVAR

CAPITULO II CONTEXTO E INTERCESSORES

2 OS INTERCESSORES DE ALMODÓVAR

Desde a sua infância em La Mancha, ainda que de uma maneira inconsciente, o cineasta sempre promoveu encontros com outros saberes e artes. Ainda criança, não estava contente com a educação que recebia da Igreja, que insistia em assegurar que tudo se resumia a pecado. Através dos filmes que via e da ânsia em descobrir outras maneiras de viver, ia construindo sua singularidade que, posteriormente, pudemos apreciar em suas produções. A sua maneira singular de pensar, de se expressar e de não se conformar com uma realidade imposta por diferentes segmentos como família, escola, religião, mídia, ou seja, com os processos de subjetivação dominantes, fizeram de Almodóvar um observador, que foi registrando ao longo de sua vida culturas diferentes, modos de vida distintos e, que de forma emblemática, traduziu o desejo como ninguém. O modo como foi afetado por essas estruturas ultrapassou sua identidade e constituiu sua subjetividade de modo singular. Quando se referem à subjetividade, Guatarri e Rolnik explicam que:

A subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela é essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares. O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, no qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um processo que eu chamaria de singularização. (GUATTARI; ROLNIK, 2000, p. 33)

Podemos entender esses processos como o que recebemos ao longo de nossa vida por segmentos que tentam moldar indivíduos serializados que respondem aos mesmos códigos e significações. Entretanto, a partir desses mesmos segmentos, pode-se romper com essa homogeneização de significados e criar outras formas de resistência e Almodóvar fez exatamente isso quando elegeu o cinema como o seu mais forte aliado no combate ao sufocamento do desejo.

Pedro Almodóvar sempre se deparou com vários intercessores para a criação de seu cinema. Mas, afinal o que são os intercessores? Nas palavras de Deleuze:

[...] o intercessor é qualquer encontro que faz o pensamento sair de sua imobilidade natural, de seu estupor. Sem os intercessores não há criação. Sem eles não há pensamento: o essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Podem ser pessoas – para um filósofo, artistas ou cientistas, para um cientista, filósofos ou artistas – mas também coisas, plantas, até animais como em Castañeda. Fictícios ou

reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores. (DELEUZE, 1992, p. 156)

Pedro Almodóvar sempre teve como seu mais forte aliado e intercessor o próprio cinema. Produções como A aventura, Bom dia tristeza, Gata em teto de zinco quente e outras

o marcaram profundamente. As conversas que tinha com os amigos da escola, contando as mágicas experiências que tinha com esses filmes despertavam um olhar, ao mesmo tempo, de admiração e surpresa já que não conseguiam entender quase nada do que ele dizia. A própria mãe de Almodóvar, venerada por ele, sempre questionava: “a quem será que esse menino saiu?”

O rompimento do cineasta com o que significava valores impostos, ou seja, com todas as formas castradoras de vida, fez com que ele encontrasse no cinema esse aliado que dava força ao “estranho” que se sentia. Na época do fascismo espanhol a tríade Igreja-Família- Estado prevalecia como forma totalitária, mas o não conformismo de Almodóvar fazia com que ele resistisse a esses processos de subjetivação. Como aponta Rolnik, bem exemplificando essas formas totalitárias:

[...] a operação básica deste modo de subjetivação, dominante em nosso mundo, é o racismo contra tudo aquilo que não repõe o idêntico, ou seja, um racismo contra o estranho-em-nós. É que a voz do estranho é ouvida por este tipo de subjetividade, como voz da carência e não do caráter intrinsecamente processual, heterogenético do ser. Muito, ao nosso redor, conspira contra o estranho, e é tão forte esse racismo, que necessitamos de intercessores para combatê-lo, senão fica difícil e, em alguns casos, até impossível. Deleuze e Guattari não param de nos alertar para isto, ao longo de toda sua obra: por exemplo, quando escrevem “precisamos de aliados”, de “inconscientes que protestam”, ou quando falam em revolução molecular, esta espécie de conspiração a favor do estranho-em-nós; ou em dispositivos catalisadores de existencialização ou de singularização, ou ainda, lá no começo, em grupos- sujeito, analisadores. (ROLNIK, 1993, p. 39)

No processo de criação do cineasta, observamos que além do cinema, outros intercessores estão presentes. A pintura, a literatura, os quadrinhos, a fotografia, além da música que tem papel fundamental em suas produções e que é considerada uma espécie de diálogo nas obras do diretor, como aponta Maia:

As canções inscritas na obra do diretor Pedro Almodóvar são dispositivos especialmente relevantes. Habilmente imbricadas na própria estrutura do roteiro, as canções de Almodóvar participam da composição do perfil dos personagens, fornecem ao espectador um índice de “latinidade”, ou mais precisamente, de um modo “latino” de expressar sentimentos e operam, por meio das letras, muitas vezes como uma espécie de fala cantada. O que é de fato distinto nas canções em

Almodóvar são, em primeiro lugar, elas mesmas, ou seja, o repertório eleito pelo diretor: rancheiras, boleros, merengues, mambos, canções flamengas e canções românticas internacionais que fizeram grande sucesso entre os anos 1940 e 60, aproximadamente, interpretados quase sempre por cantoras consideradas grandes estrelas da canção de língua espanhola. (...) À exceção dos rocks dos primeiros filmes e de alguns outros desvios pontuais, praticamente todas as canções escolhidas pelo diretor foram lançadas nas vozes das chamadas grandes estrelas da canção popular latina. Com harmonias bem simples, melodias sentimentais de fácil memorização e interpretação vocal de acentuada dramaticidade. (MAIA, 2008, p. 13-14)

Verificamos em seus filmes uma vasta relação entre vários campos artísticos, que preferimos chamar de intercessores, de aliados, pois consideramos que todos os outros textos que aparecem dentro dos seus filmes não são apenas citações dessas outras artes, mas sim apropriações e formas de produção de subjetividade que construíram todo um pensamento não identitário. Vasconcelos observa esse procedimento referindo-se ao cinema de Godard, entretanto, pensamos que esse olhar se aplica diretamente ao cinema de Pedro Almodóvar: “[...] Entretanto, não é de citações que se trata aqui. Trata-se na verdade de uma massa discursiva de outrem, que é “ROUBADA” como por um bom “ladrão” de ideias [...]. Essa massa discursiva ganha sentido fundamentada em um não sentido [...]”. (VASCONCELOS, 2006, p.171)

Um dos aspectos do pensamento bakhtiniano, e que pensamos ter uma relação direta com o conceito de intercessores, foi o desenvolvimento do conceito de dialogismo e polifonia onde o mesmo tinha a preocupação de que um discurso, um texto (e aqui consideraremos texto, como filme) nunca se constrói sozinho, ao contrário, é elaborado com a conjugação de outros discursos. Referindo-se às duas modalidades do romance, o monológico e o polifônico, Bakhtin associa à primeira modalidade adjetivos como autoritarismo e acabamento. Já na modalidade polifônica, o autor associa a esse termo questões que se traduzem em realidade em formação, inconclusibilidade, não acabamento, dialogismo e polifonia.

Em um discurso monológico e, portanto, identitário, o autoritarismo é associado às verdades veiculadas por um tipo de discurso, de dogma. No discurso polifônico, verificamos a presença dos vários discursos que se cruzam para recriar a riqueza de várias vozes da vida social, cultural e ideológica traduzidas em um texto. Bezerra constata que o conceito de dialogismo está imbricado com o rompimento das formas identitárias e explica que:

[...] o dialogismo é o procedimento que constrói a imagem do homem num processo de comunicação interativa, no qual eu me vejo e me reconheço através do outro, na imagem que o outro faz de mim. Aí o autor visa a conhecer o homem em sua verdadeira essência como um outro “eu”, infinito e inacabável; não se propõe conhecer a si mesmo, conhecer seu próprio eu, propõe-se conhecer o outro, o “eu” estranho [...]. (BEZERRA, 2005, p. 194)

A utilização do conceito de intertextualidade, muitas vezes se resume somente à alusão e citação de outros textos sem mencionar a grande importância na reescritura da obra final. Sarduy apud Varderi (1996, p. 19) afirma que “La intertextualidad no es una mera acumulación de referencias externas, sino que es un trabajo interno de re-escritura, de readaptación, de tatuaje”. Ou seja, existe algo mais nesse processo de mera citação na composição de todo tipo de texto.

Em uma passagem do livro de Strauss, o próprio Almodóvar, quando se refere à utilização de outros textos em suas produções, afirma:

[...] o cinema está presente em meus filmes, mas não sou um diretor cinéfilo que cita outros autores. Utilizo certos filmes como parte ativa dos meus roteiros. Quando integro um trecho de filme, não é uma homenagem – é um ROUBO – Isto faz parte da história que conto, torna-se uma presença ativa, enquanto uma homenagem é sempre muito passiva. Converto o cinema que vi na minha própria experiência, que se transforma automaticamente na experiência de minhas personagens. (STRAUSS, 2008, p. 67-68)

Quando o diretor se apropria de outros gêneros cinematográficos e de outros filmes propriamente ditos, não o faz somente como uma citação, ele recria esse discurso sob a forma de fabulação e por isso esse procedimento não é uma homenagem e sim uma apropriação, ou seja, transporta esses discursos para os seus filmes inserindo-os no contexto espanhol. Em

Tacones Lejanos (1991), a atriz Victoria Abril interpreta uma mulher que tem muitos conflitos com a mãe, personagem interpretada por Marisa Paredes. Em uma determinada sequência, há um diálogo mais exacerbado entre mãe e filha que evoca o filme de Ingmar Bergman Sonata de Outono (1978), onde a relação mãe e filha também é complicada. Entretanto, quando Almodóvar evoca esse filme e rouba o seu argumento, como quem rouba a um bom ladrão, recria a cena da discussão dentro do contexto espanhol. Ainda que a personagem cite de uma maneira direta Sonata de Outono, o que vemos em Tacones Lejanos é outra cena. A polifonia existente nos filmes de Almodóvar é proliferante e ecoa em todas as suas produções. Desse modo, o cineasta é sempre “um outro” que promove o discurso

polifônico em todos os seus filmes e dessa maneira rompe com o uno. A identidade dá lugar à singularidade através de “vários outros”.

Almodóvar também pode ser considerado um cineasta da técnica da colagem, que consiste em unir elementos de várias ordens que, juntos, formam um novo conteúdo a serviço de uma ideia, para produzir seu próprio pensamento.

Além do conceito de intercessores, dialogismo e polifonia, pensamos que o conceito de antropofagia corrobora todo esse discurso não identitário que o cineasta realizou e continua realizando em seus filmes.

Pensando na antropofagia como o ato de consumir uma parte, ou várias partes da totalidade do ser humano de forma a imprimir em seu corpo o que interessa no outro, pensamos que Almodóvar praticou o ato antropofágico desde o começo de sua carreira. Alimentou-se de grandes obras que o fortaleceram em seu processo de singularização. “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente” – é com essas palavras que Oswald de Andrade inicia seu manifesto e evidencia a importância de um discurso não identitário. Rolnik sintetiza de forma especial a relevância da antropofagia para o processo de criação:

No domínio da subjetividade, o princípio antropofágico consiste em engolir o outro, sobretudo, o outro admirado, de forma que partículas do universo desse outro se misturem às que já povoam a subjetividade do antropófago e na invisível química dessa mistura, se produza uma verdadeira transmutação [...]. Em suma, a antropofagia é todo o contrário de uma imagem identitária. (ROLNIK, 1996, p. 84)

As ideias, as estéticas e tudo que é pertinente e “forte” é abocanhado para depois ser digerido e traduzido como outra forma de pensamento.

O termo é associado às práticas dos índios tupis que devoravam seus inimigos para absorver partículas de suas qualidades e registrá-los na própria alma. Entretanto, existia um critério: o outro não era devorado aleatoriamente, mas em função de uma questão vital – a revigoração da alma do devorador. Em outra observação sobre processos de criação, Barcelos evidencia que:

A marca antropofágica, nos modos de subjetivação, possibilita plasticidade e liberdade para misturar o que tiver disponível e improvisar linguagens. Isso interpõe dificuldade para sua adesão a qualquer sistema de referência. A devoração do outro favorece os processos de desterritorialização/territorialização e faz com que a subjetividade tenha “know-how de gestão”, ou seja, certo “estado de corpo” que

tolera, com mais facilidade, os estranhamentos e as improvisações de novas formas de vida. (BARCELOS, 2006)

Nesse sentido, a mistura de linguagens favorece esses processos de desterritorialização que nos tiram do lugar comum dando vazão ao desejo e privilegiando linhas de fuga. Contudo, há uma tensão de forças que os sistemas de referências não costumam aceitar com facilidade.

Desenvolver a problemática dos intercessores, dialogismo, polifonia e antropofagia nos parece de fundamental importância na medida em que o cineasta foi perpassado durante toda a sua vida por muitos discursos, sejam estéticos, culturais, sociais e dessa forma soube realizar uma leitura da sociedade espanhola de forma que pudesse esquadrinhar todo um comportamento social e estético da época. Ganhou força com esses intercessores, principalmente o cinematográfico e pode livrar-se da culpa, dando passagem ao desejo e desse modo, privilegiar a micropolítica.

3 O CINEMA COMO INTERCESSOR DIRETO

Muitos estudos dedicados ao cinema de Pedro Almodóvar evidenciam a presença de outras linguagens em suas obras, principalmente a cinematográfica. É fato que desde as suas primeiras produções podemos nos deparar com estéticas, gêneros e apropriações que o cineasta faz de outras obras para compor o seu repertório. Cabe ainda ressaltar que, todos os filmes vistos desde a infância e as apropriações presentes em seus longas não foram aleatórias e que eles sempre tinham algo que também não estavam em consonância com a subjetividade dominante, seja através da forma ou do conteúdo.

Em entrevista concedida a Marsha Kinder, publicada na revista Film Quarterly, Almodóvar afirma: “Si tiene que buscar algún origen o relación de mi obra con otras películas españolas, también tiene que ver con una de las primeras películas de Francisco Reguero:

Duerme, Duerme mi amor (1975)” (GARCÍA DE LEÓN; MALDONADO, p. 150). O filme tem como gênero o humor negro e narra a história de um casal que vive a crise da convivência dando visibilidade a uma gama de personagens frustrados e reprimidos. Nesse sentido, observamos que Almodóvar não se atribui uma originalidade e sabe o quanto é importante o entrecruzamento de discursos.

Como intercessores cinematográficos de sua primeira produção Pepi... temos os primeiros filmes de Paul Morrysey, como Flesh (1968), Trash (1970) e o cineasta Iván Zulueta com o filme Un, dos, tres, al escondite inglés (1969). Neste caso, além do conteúdo da produção que fazia com que os protagonistas tentassem boicotar, em termos de música, o que a Espanha representava, ainda encontramos a sonoridade e a forma presentes no primeiro longa de Almodóvar: Pepi, Luci , Bom y otras chicas del montón. Arrebato (1979), do mesmo diretor, também é outra produção que irá influenciar sua carreira. O filme narra a história de um diretor de cinema em crise, que é viciado em filmagens Super-8 e que é obcecado pela descoberta da essência do cinema. Iván Zulueta foi um cineasta que teve sua carreira interrompida pelo uso de heroína. Produziu além de outros trabalhos, dois longas-metragens e colaborou com a produção dos cartazes dos filmes de Almodóvar. Alguns estudiosos como Maldonado, afirmam que o diretor espanhol retomou o estilo de Zulueta de fazer cinema:

Zulueta, lo que de repente prometía al cine español era una gran libertad que luego no pudo llegar a darle porque dejó de rodar y, para mí, el gran mérito de Pedro es, de manera involuntaria, retomar lo que estaba haciendo Iván Zulueta y dar al cine

español esa especie de enorme libertad que necesitaba [...] (MALDONADO, 1989, p. 154)

No primeiro longa é possível perceber como intercessor direto o filme Pink Flamingos (1972), de John Waters. A produção foi realizada com baixo orçamento e conta a história da

drag-queen Divine que, junto com sua família entra em uma competição de “pessoas mais sórdidas do mundo” contra o casal Connie e Raymond Marble. A obra tem cenas bizarras. Em uma delas, a câmera filma o ânus de um dos atores e em outra, podemos ver Divine se alimentando das fezes de um cachorro. Em Pepi... há uma sequencia em que Luci toma um banho de urina proporcionado por Bom (neste caso, Almodóvar usa cerveja para a realização da cena). Outro filme em que se percebe a apropriação do cineasta é Female Trouble (1974), do mesmo diretor. O riso e o humor que encontramos na obra de Waters também encontramos nas produções de Almodóvar, principalmente em sua primeira fase. Ambos são muito sérios e denunciam através desses recursos questões importantes e cotidianas da sociedade. Nas palavras de Valente sobre Waters, verificamos esse processo:

[...] O jogo de Waters é muito sério, muito maior. Ele não propõe uma piada, ele propõe uma afronta. Ele não propõe uma sátira, ele propõe uma alternativa. Ele não acha o mundo mainstream engraçado, ele o acha assustador, patético, fascista. Ele está certo. E sua obra, seríssima com toda sua graça, propõe isso categoricamente, filme a filme, plano a plano. [...] Os filmes são mais fortes que os estereótipos [...] não tratam apenas de pessoas feias, de pessoas patéticas, de pessoas excêntricas. Eles são feios, patéticos, excêntricos. Eles são um mergulho num imaginário doentio. E isso não é tão engraçado assim. (VALENTE)

O mesmo incômodo que se percebe nos filmes de John Waters, percebemos em Pepi... e na grande maioria das produções do diretor. As personagens já não têm os estereótipos conhecidos e esperados pela maior parte do público, fato que, de certa maneira, funciona como uma mola propulsora para desterritorializar o pensamento e os comportamentos. Em um estudo dedicado ao cineasta espanhol, Cañizal afirma:

[...] É por isso que em Pepi... o desejo funciona já como a mola propulsora de todo tipo de mudanças e, além de interferir constantemente no comportamento das personagens, arma incríveis ciladas aos valores que regem a estrutura familiar, buscando com incansável tenacidade, dada sua permanente insatisfação, substitutos para lançá-los, desajeitadamente, ao vazio deixado pela perda definitiva de algo que nunca se sabe o que é. (CAÑIZAL, 1996, p. 28)

Ainda no primeiro filme do diretor espanhol, encontramos referência a uma personagem que interpreta Kiti Manver e que, segundo entrevista de Almodóvar à Revista

Contracampo, é uma versão urbana da personagem de Sara Lezana na obra de Fernando Fernán Gómez, El extraño viaje (1964). A obra retrata as misérias dos povoados da Espanha dos anos sessenta e é relatada com um tom esperpêntico que caricaturiza a realidade. A produção só estreou sete anos depois de suas filmagens. Nessa época, vivia-se a explosão econômica na Espanha, que era favorecida pelo turismo – o que não acontece exatamente na obra. De acordo com Strauss, El extraño viaje não agradou, pois não era bem esse protótipo de espanhóis que o Ministério da Informação e do Turismo queria promover:

O ministro da Informação e do Turismo planejava então promover as praias espanholas e ficou furioso com El extraño viaje, porque a única praia que aparece no filme vai receber, na areia, os cadáveres de dois irmãos gordos, feios e bêbados. Esta única imagem condenava o filme de Fernando Fernán Gómez ao ostracismo. Mais ainda, foi também acusado de exibir deficientes em excesso e um número insuficiente de homens jovens. Fernán Gómez contou-me que utilizara no filme, como figurantes, habitantes da aldeia onde filmara, e que infelizmente a Guerra Civil Espanhola enchera o país de pernetas e manetas. Quanto aos jovens, a aldeia tinha muito poucos, por terem todos ir trabalhar na cidade ou na Alemanha. (STRAUSS, 2008, p. 50)

Na cena em que Pepi quer vingar-se do policial que a estupra, com a condição de não delatá-la por causa da plantação dos pés de maconha, percebemos a presença de outra referência cinematográfica, a música do célebre filme Psicose (1960), de Alfred Hitchcock.

Em seu segundo longa-metragem, Labirinto de Paixões, o intercessor predominante é

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