• Nenhum resultado encontrado

Lacan e a Linguística: particularidades dessa relação

4. O amor de Lacan pela Linguística

4.1. Lacan e a Linguística: particularidades dessa relação

Em Lacan I Ciência da linguagem e teoria da estrutura em Jacques Lacan, Milner (2002) afirma que existe uma especificidade na relação estabelecida por Lacan com a Linguística. Tal especificidade não se configura como mero prolongamento da relação estabelecida com a Linguística pelos estudiosos que o precederam no humanismo (gramática, filosofia, tradução, retórica). Ao contrário,

Lacan escapa do que se fazia até então na práxis psicanalítica para, valendo-se da Linguística, construir uma nova elaboração.

Milner defende que a relação da Linguística com a Psicanálise deverá ser examinada em si e não por meio do recurso a elementos externos (MILNER, 2002, p.196). Para esse exame, propõe dois caminhos: ou a Psicanálise vai se interessar pelas propriedades da linguagem, estabelecidas pela ciência Linguística, ou, deixando de lado essas propriedades, vai interessar-se exclusivamente pelo método da ciência Linguística.

Nesse livro, posterior ao artigo de 1995, ele ainda se surpreende com Freud ao afirmar que ele dedicou “pouquíssimo interesse pelo método da linguística científica” (MILNER, 2002, p. 196). Recorde-se que no texto que motivou esta dissertação (MILNER, 1995), o autor já havia esclarecido que Freud se interessa grandemente, em contrapartida, pelas propriedades da linguagem que poderiam esclarecer as propriedades dos processos inconscientes.

Com relação a Lacan, poderíamos pensar que ele se concentra no método da ciência da linguagem. Contudo, como esclarece Milner, isso não é verdade. Assim como Freud, Lacan interessou-se pelas propriedades da linguagem e sua peculiaridade foi valer-se do conceito de estrutura que, como sabemos, tomou

emprestado da Linguística estrutural. Nas palavras de Milner (2002, p. 197): “Lacan

se interessa somente pelo fato geral que a linguagem tenha as propriedades nela estabelecidas pela linguística estruturalista” (MILNER, 2002, p. 197).

O enunciado “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, interpreta Milner, significa que se a linguagem tem propriedades de estrutura, também o inconsciente. Nesse ponto, vê-se a importância que a ciência da linguagem ganha para a compreensão da estruturação do inconsciente. Nas palavras do autor:

A Linguística desempenha, então, o papel de uma ciência que estabelece propriedades materiais de um objeto particular, da mesma forma que as ciências anatômicas ou fisiológicas o fazem para o corpo. Ela é tomada, portanto, como uma disciplina capaz de fornecer informações dignas de confiança sobre seu objeto. (MILNER, 1995, p. 02)

Importa pensarmos, agora, como Lacan abordou o conceito de estrutura na construção de sua clínica. Milner é explícito quanto ao questionamento trazido pela

afirmação de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Leiamos suas questões:

Encontramos aqui um paradoxo: ao dizer que a linguagem tem propriedades de estrutura, acaso dizemos que ela tem propriedades específicas? E se por ventura essas propriedades não fossem específicas em que teríamos caracterizado o inconsciente dizendo-o estruturado como uma linguagem? (MILNER, 2002, p. 197)

Para respondê-las, o linguista postula a necessidade de distinguirmos dois

tipos de estruturalismo: o que chamou de “estruturalismo forte” e o que chamou de

“estruturalismo fraco”. No “estruturalismo fraco”, teremos a predominância da abordagem das propriedades mínimas de um sistema qualquer, enquanto que, no “estruturalismo forte”, o que predomina não são as propriedades, mas o sistema enquanto dotado de propriedades.

Na avaliação de Milner, Lacan acreditou tanto no estruturalismo forte como no fraco. Não chega a dar um exemplo de texto no qual o psicanalista teria demonstrado a crença no estruturalismo forte, mas localiza a crença no estruturalismo fraco no momento em que Lacan dedicou-se a fazer o comentário do

“Seminário da Carta Roubada” (LACAN, 1998)52.

Vejamos com Milner: “se o nome de um sistema qualquer é estrutura, o

nome de um sistema qualquer reduzido a suas propriedades mínimas é cadeia

(MILNER, 2002, p. 197). Pois bem, a Linguística (leia-se aí, “Saussure”) pode estudar a língua (la langue) dessa maneira - o que prova, sublinha Milner, ser viável estabelecer uma teoria, ao mesmo tempo, “metodologicamente pura e

empiricamente não-vazia no que diz respeito à cadeia”. Esta conquista da

Linguística certamente afetou Lacan já que é dela que pode retirar o sentido de significante para sua obra, qual seja: “algo que só pode ser considerado a partir das

52 Nesse Seminário, como lembra Dosse, Lacan mostrará o papel exercido pelo significante carta em

uma estrutura hierárquica: “Ali se pode ver como em um sistema, cujos elementos e leis têm a menor especificidade possível, emergem regularidades e propriedades” (MILNER, 2002, p. 201). Os sujeitos não podiam ver que a carta “brilhava” em seu silêncio. Foi Dupin quem, ocupando o lugar do analista, localizou a carta que estava à vista de todos, mas não era percebida justamente porque não havia sido pontuada, mencionada, posta em relevo por alguém. Embora a polícia tenha procurado várias vezes a carta, por que não a encontrava? Exatamente porque a procurava utilizando o que acreditava ser a metodologia científica: esquadrinhar sistematicamente todo o escritório do ministro.

propriedades mínimas que o convertem em elemento de um sistema” (MILNER, 2002, p. 146).

Se a Linguística trazia uma verdade com força de transmissão, é não menos importante lembrar que Lacan não foi um aplicador: houve, portanto, transformação no conceito de significante: “Lacan não o utiliza do mesmo modo que na Linguística” (MILNER, 2002, p. 146), isso porque a combinação entre estruturalismo fraco e estruturalismo forte, ambos articulados por Lacan, como dissemos acima, promove a emergência de uma contradição entre os termos “estrutura” e “linguístico”, como nos mostra Milner:

Para sermos precisos: se o nome “linguístico” designa em um sistema de linguagem aquilo que o distingue de qualquer outro sistema possível, os nomes “estrutura” e “cadeia” designam, em um sistema semelhante, aquilo que, justamente, não é específico do linguístico. Em particular, o termo “significante” [no sentido acima] designa aquilo que num elemento linguístico não é compatível com o linguístico em sua especificidade. (MILNER, 2002, p.146).

Os linguistas estruturalistas (Saussure, Jakobson e mesmo Benveniste) assumiram o estruturalismo forte (só um sistema tem propriedades) e sustentaram, por aí, a especificidade do linguístico (sistema, cadeia, significante). Lacan faz “uma forçagem deliberada”, afirma Milner. Lacan diz: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” - o “como” tem aí toda a importância porque indica que apenas que o inconsciente é estruturado, é sistema, mas não é o sistema linguístico.

Metáfora e metonímia podem ser admitidas como operações estruturais gerais, ou seja: “uma teoria geral da cadeia é uma teoria da metáfora e da metonímia; reciprocamente, uma teoria da metáfora e da metonímia é uma teoria da cadeia” (MILNER, 2002, p.147). Desse modo, essas operações seriam aplicáveis a toda e qualquer estrutura.

A especificidade de um sistema/cadeia só pode ser recuperada, afirma

Milner, através do seguinte enunciado: “uma estrutura qualquer tem propriedades

que não são quaisquer” (MILNER, 2002, p.147). Esta proposição - subjacente ao trabalho de Lacan e nomeada “hiperestruturalista” por Milner - salvaria o enunciado “é estruturado como uma linguagem” do perigo da circularidade inscrita na afirmação de que “uma linguagem nada mais tem que propriedades de estrutura e não há

propriedades senão pela estrutura”, que confunde especificidades e afirma generalidades.

Segundo Milner, apenas a conjectura hiperestruturalista (que caracterizaria o trabalho de Lacan frente à Linguística) seria, ao mesmo tempo, “requisito de consistência e ponto de heresia”. Tê-la sustentado significou, para Lacan, uma “exclusão interna” em relação a estruturalismo, ou seja: “Lacan se inscreve neste paradigma com uma tese que o separa do estruturalismo” (MILNER, 2002, p. 148).

Esclarece-se, assim, a afirmação de Milner no texto “Linguística e

Psicanálise”:

Na medida em que a linguagem determina de maneira decisiva a existência do inconsciente, ela não é, aos olhos de Lacan, o que é apreendido pela ciência linguística. E se a Linguística, como ciência, é importante para a Psicanálise, não é porque ela apreenderia o essencial do fenômeno linguagem. (MILNER,1995, p.05)

“Essencial” da linguagem, na Psicanálise é que “o significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante” (LACAN, 1998, p. 833). Lembremos que, para a Linguística estruturalista, não há lugar para uma teorização sobre o sujeito falante. O significante, como “efeito de operações do sistema”, ganha valor

numa cadeia – mas, note-se, ganha valor linguístico, ou seja, propriedades

estruturais específicas e significado.

Não há, porém, valor que possa ser remetido à singularidade de uma fala nem de um falante. Em que pese o fato (a verdade) de que a ideia de sistema/estrutura é legitimamente uma conquista linguística, a Linguística se dissolve caso introduza o factum loquendi (MILNER, 1987, p.44), uma vez que ele é, por definição, “assistemático” (como disse Saussure); “caótico” (como disse Chomsky). É dele que vive a Psicanálise. Milner conclui: Lacan adota a teoria geral da estrutura, mas ela é imediatamente teoria do significante e teoria do sujeito (do

inconsciente) – “este é o núcleo duro”. (MILNER, 2002, p. 202)

Lacan, portanto, foi fiel a Freud, quem instituiu uma “escuta para fenômenos

linguageiros”. Lacan referirá tais fenômenos à estrutura. Por isso, Milner afirma que: “Se a estrutura enquanto estrutura qualquer deve ser o ponto de nó da doutrina do inconsciente e da ciência moderna, então, uma invenção teórica é necessária(MILNER, 2002, p. 206). Esta “invenção” constitui-se no conceito de linguisteria,

termo inventado por Lacan. Este termo será assunto privilegiado no quinto capítulo da presente dissertação. Podemos adiantar que ele vem para distinguir, como vimos no início, o que é do linguista e o que é do psicanalista.

De fato, esse foi um movimento de Lacan. Em o Aturdito (LACAN, 1973), há um “adeus de Lacan à Linguística” (MILNER, 2002, p. 206), de modo que ele vai situar o Inconsciente onde a Linguística não está. Pensamos, assim, ter podido avançar um pouco mais na direção que é apontada no título deste trabalho: a relação de Lacan com a Linguística envolveu “encontros e desencontros”.