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1. Há relação entre Linguística e Psicanálise?

1.1. O Curso de Linguística Geral e seus aportes

1.1.2. Em torno da obra de Saussure

Curiosamente, um fato une os dois principais autores tratados neste trabalho: os textos mais importantes de ambos, o Curso e os Seminários não foram redigidos por nenhum dos dois e, sim, estabelecidos por terceiros. Assim, alguns autores têm se dedicado a cotejar manuscritos de Saussure (disponibilizados, parte deles, primeiramente, em 1955 e, posteriormente, outros na década de 1990).

Por exemplo, a pesquisadora Claudine Normand (2000), em seu livro Saussure, sustenta a importância histórica do Curso de Linguística Geral apontando para seu impacto na França. Essa obra foi comparada a um acontecimento político quando, nos anos 60, seu potencial revolucionário foi percebido.

Para a pesquisadora, até então, o Curso de Linguística Geral era visto como a obra de um autor precocemente falecido cujos textos haviam sido redigidos e estabelecidos por dois alunos, mas, conclui ela:

Eis que, com a explosão dos anos 1960, ele [Curso de Linguística Geral] se encontrava sob a mesma bandeira de Marx e Freud, frequentemente acompanhados de Nietzsche, Lautréamont e Mallarmé, contra o velho mundo e seus valores rançosos. (NORMAND, 2009, p.16)

Com a efervescência dos anos 1960 e 1970, na França, é que o “corte saussuriano” (HAROCHE, PÊCHEUX, HENRY, 1971) pôde ser reconhecido por sua profunda e radical novidade. Saussure foi equiparado a Marx e Freud, o que abriu caminho para uma segunda leitura do Curso de Linguística Geral ou, como propôs Milner (2002), “o retorno a Saussure”.

A obra foi assumida por muitos como um texto que marcava a “origem da Linguística científica” e, para outros, aquele que suscitou “uma reviravolta na Linguística”. Por essa razão, Normand reafirma que Saussure continua a ser o Saussure do Curso de Linguística Geral, não o Saussure dos manuscritos descobertos na década de 199013. Isso porque foi o Saussure do Curso que, segundo ela, desencadeou toda uma revolução no pensamento científico. Normand, portanto, ao contrário daqueles que privilegiam os estudos dos manuscritos, concentra-se no Curso de Linguística Geral já que não acredita numa “verdade velada e somente desvelada” pelos manuscritos.

Segundo Normand, os manuscritos não são os depositários de uma verdade sagrada a ser desvelada, como acredita a perspectiva hermenêutica. A autora esclarece que a perspectiva hermenêutica vai contra a ideia de que os textos são feitos a partir de sua leitura, o que envolve considerar sua historicidade e a historicidade dos sujeitos que os leem. Podemos lembrar, aqui, do conhecido conto de Borges, Pierre Menard, autor do Quixote, que mostra que um texto se ressignifica, a cada época, de modo diferente14.

Posto isso, ressaltemos que existem autores que dão maior importância aos

manuscritos saussureanos.15 Partindo de uma hipótese de trabalho segundo a qual

“ao escolher a forma de apresentar o manuscrito também se explicita uma maneira de abordar a língua”, Silveira (2010) apresenta o estudo de um manuscrito de Saussure (1891), com de 28 folhas, que serviu como nota preparatória para as suas três primeiras conferências em Genebra.

Tendo como ponto de partida o fato de que quatro diferentes autores (BOUQUET E ENGLER, 2002-2004; MATSUZAWA, 2006 e SILVEIRA [2003] 2010)

13 Essa polêmica teve lugar entre os leitores de segunda geração. Bouquet (2002), por exemplo,

recusa o Curso como sendo representativo do “verdadeiro Saussure”. Normand (2000) e outros sustentam, diferentemente, que o Curso foi revolucionário antes mesmo dos manuscritos passarem a ser cotejados. Silveira (2010) dedica parte de seu livro à discussão dessa polêmica.

14 O texto de Borges nos mostra o desejo de Menard de criar ele mesmo outro Quixote, idêntico ao de

Cervantes. Mas, escrito por Menard, o Quixote será outro, carregando conotações que o texto de Cervantes não possuía. Nas palavras de Borges, “o texto de Cervantes e o de Menard são verbalmente idênticos, mas o segundo é quase infinitamente mais rico.” (BORGES, 2011, p.42).

15 A respeito dessa questão, gostaríamos de observar que Freud, ao abandonar a busca pela cena

primária e privilegiar o relato, descartou a investigação de uma “origem”, de uma “verdade”. Do mesmo modo, para nós, neste trabalho, não interessa qual é o “verdadeiro” Saussure, mas como ele propiciou a Lacan uma nova leitura da psicanálise de Freud.

tiveram acesso a esse manuscrito, depositado na Biblioteca Pública de Genebra, Silveira apresenta três modalidades de estudos realizados a partir dos manuscritos de Saussure. Eles estão apresentados no Quadro 2, a seguir.

Quadro 2 - Diferentes destinos dados à Premiére Conférence à l´Université

Autores Bouquet e Engler Silveira Matsuzawa

Recorte Edição das três primeiras conferências de Saussure.

Publicação e análise das primeiras 11 páginas da primeira conferência.

Edição diplomática da primeira conferências na íntegra.

Caráter Transcrição linearizada. Estudo das rasuras no

manuscrito de Saussure. Edição genética.

Opção

Ser o mais possível fiel ao manuscrito, de modo a obter um texto que é mais próximo do rascunho do que de um livro acabado. Manter a suspensão do sentido. Adotar a literaridade ao invés na linearidade. Busca de explicitar como a materialidade dos manuscritos se constitui. Reescrita do texto de Saussure usando o recurso da tipografia e não letra cursiva, mantendo-se a disposição gráfica original.

Procedimento Manter as lacunas e hesitações do manuscrito original. Apresentar a transcrição do manuscrito original, acrescida de setas indicadoras numeradas. Complementar o trabalho de Bouquet e Engler.

Após discorrer e debater as três perspectivas, Silveira conclui que as referidas apresentações do manuscrito são importantes para a leitura que se pode fazer do Curso. Não deixa de reconhecer que o impacto causado por essa obra foi tanto que “os leitores do CLG não se detiveram sobre a questão da edição” (p. 21).

Posto isso, o que nos interessa particularmente, assim, é o modo como Lacan entrou em contato com o pensamento saussuriano, operando, graças a isso, uma releitura de Freud. Lacan não empreendeu um percurso em busca de uma verdade, mas de uma ressignificação de conceitos que lhe importavam16. No próximo item, vamos refazer este percurso.

16

Gostaríamos de notar que Freud, ao abandonar a busca pela cena primária e privilegiar o relato, descartou a investigação de uma “origem”, uma “verdade”. Do mesmo modo, para nós, neste trabalho, não interessa qual é o “verdadeiro” Saussure, mas como ele propiciou a Lacan uma nova leitura da psicanálise de Freud.