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3. Os direitos humanos em África

3.6 Lacunas da CADHP

A Carta Africana traz algumas inovações em relação a textos congéneres no contexto das Nações Unidas, do Conselho da Europa e da Organização de Estados Americanos, como a inclusão dos deveres individuais e dos direitos dos povos, conforme referido acima, mas apresenta também algumas lacunas de natureza técnico-jurídica do seu articulado, conforme assinalam alguns autores, que importa assinalar.

(Morais Pires, 1999: 337), considera que a definição imprecisa dos direitos e a sua enunciação de forma ambígua e insuficiente, bem como a ausência de limitações específicas, ou melhor, a formulação de limitações que protegem o Estado, em detrimento do indivíduo, reduzem o conteúdo dos direitos, por vezes abaixo do nível mínimo exigido pelo direito internacional dos direitos humanos. Apesar de incluir no artigo 27.º, n.º 2, no capítulo dos deveres, uma “cláusula geral de limitação”, aplicável genericamente a todos os direitos, referindo que “os direitos e liberdades exercem-se no

respeito dos direitos de outrem, da segurança colectiva, da moral e do interesse comum”, a imprecisão dos conceitos deixa ao Estado uma larguíssima margem de

apreciação, dado que será sempre possível encontrar um fim legítimo para justificar uma ingerência nos direitos e liberdades dos indivíduos. Cabe à Comissão delimitar com rigor a aplicação desta norma.

Ao contrário das Convenções europeia e americana, a Carta de Banjul omite uma cláusula derrogatória de certos direitos em situações de excepção, facto que pode levantar problemas de ordem prática. Mas pode também ser interpretado no sentido de um reforço de protecção dos direitos, que serão todos inderrogáveis, mesmo em casos excepcionais, o que será improvável de ser reconhecido por um Estado autoritário. A ausência de uma cláusula de reservas constituiu também uma deficiência técnica da Carta Africana. Assim, ao aceitar implicitamente o regime das reservas previsto na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, ou seja ao deixar ao critério dos Estados, através de objecções às reservas, a apreciação da sua compatibilidade com o objecto e o fim da Carta, os seus autores optaram implicitamente por uma solução que nos parece pouco compatível com a efectiva protecção dos direitos nela enunciados. A questão da garantia dos direitos e deveres enunciados na Carta afigura-se um problema juridicamente complexo. O órgão de tutela, a Comissão Africana, entre outras

competências, aprecia “comunicações” apresentadas por um Estado parte contra outro Estado parte, e “outras comunicações”, que podem ser apresentadas por outras entidades que não os Estados partes, de acordo com o artigo 55.º e seguintes. Esta indefinição da competência rationae personae relativa ao requerente, não torna clara a aceitação de petições individuais, remetendo-se para a Comissão a decisão sobre o preenchimento dessa lacuna que alguns autores consideram não estar prevista no seu articulado.

José Andrade (Andrade, 2001: 12) também faz notar que a Carta de Banjul não faz recurso às cláusulas de derrogação, que se encontram presentes em diversos outros instrumentos. Estas visam definir, meticulosamente, os limites da acção estatal em situações de emergência, ou seja, quando o Estado está mais apto a violar os direitos humanos. Desta forma, as cláusulas derrogatórias têm uma aplicação ratione temporis e

situationis determinada pelo próprio instrumento de protecção, além de possibilitarem o

controlo externo quanto à pertinência da violação ou suspensão dos direitos. Este controlo deve ser exercido, normalmente, pelos órgãos de implementação, no caso da Carta de Banjul, a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos.

Os artigos relativos aos direitos dos povos, constantes na Carta de Banjul, são deveras vagos, caracterizados pela retórica, o que enseja muito mais a confusão do que a boa interpretação, não ajudando muito, como fora desejado, para a conceituação de povo. São estabelecidas duas amplas categorias dos deveres enunciados na Carta Africana: uma que engloba os deveres que podem ser considerados como correlativos de direitos, e outra que restringe o gozo de alguns direitos, são dispositivos limitadores, disfarçados de deveres. Esta segunda categoria padece de uma falta de definição, posto que a extensão dos deveres não é estabelecida, ficando pois à disposição da livre discrição dos Estados partes.

A Comissão tem de exercer as suas competências dentro de uma margem muito estreita de flexibilidade, além de ter que usar como parâmetros, disposições caracterizadas pela retórica. Quanto ao Tribunal Africano, poderá ser um instrumento importante para a protecção e promoção dos direitos humanos e dos povos na África. Contudo, a sua existência não garantirá per se a observância destes direitos se não houver vontade política e se o senso de tolerância e de acomodação continuar a prevalecer.

Arthur Monteiro (In Alexandrino, 2011a: 65) considera que a matéria da CADHP é extremamente controversa e suscita discussões severas na doutrina e na jurisprudência. Aponta uma série de falhas à CADHP, de que se apresentam de seguida as que consideramos mais relevantes:

“A unidade pretendida entre os regimes aplicáveis aos direitos de liberdade e aos direitos sociais é falha, porque ignora a diferença ontológica entre os direitos de liberdade (de cunho preponderantemente negativo) e os direitos sociais (de cunho preponderantemente positivo) ”;

“A prevalecer o sistema unitário, estar-se-ia negando a reserva de conformação do legislador soberano, a reserva do possível e aplicar-se-ia a cláusula de vedação de retrocesso”;

“A admitir-se a prevalência do regime unitário na Carta Africana, estar-se-ia admitindo, por conseguinte, a transferência dos poderes de definição das políticas orçamentais dos governos e/ou parlamentos democraticamente legitimados para as mãos da Comissão Africana ou do Tribunal Africano”;

“Em geral, os direitos económicos, sociais e culturais da Carta Africana: 1) não possuem aplicabilidade imediata; 2) sua concretização depende de uma opção política do legislador; 3) encontra-se sob reserva do possível; e 4) não se encontram protegidos por uma cláusula de vedação de retrocesso”;

“No caso do artigo 15º da Carta, há uma protecção somente do trabalhador, e não de toda a pessoa. Ela não garante o direito ao trabalho, mas estabelece um dever do Estado de zelar para que as condições de trabalho não sejam degradantes”; “A despeito de a Comissão Africana e parte da doutrina quererem conferir um lugar de destaque para os direitos económicos, sociais e culturais no sistema da CADHP, a partir da construção de uma doutrina de violação de conteúdo, e não simplesmente de não cumprimento, tal construção é de difícil justificação teórica”.

Arthur Monteiro, tal como Alexandrino, defende o sistema dicotómico de direitos, de aplicabilidade imediata para os direitos de liberdade e de aplicação progressiva para os direitos sociais, o que é dissonante com a filosofia da CADHP. A maioria das falhas apontadas decorre dessa diferença de concepção. Também aponta outras falhas da CADHP como insuficiências, ao não garantir o direito ao trabalho, por exemplo, ou falha de legitimidade, ao transferir para órgãos regionais poderes que normalmente são da competência de órgãos nacionais, embora de forma pouco explícita.