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3. DA CIRCULAÇÃO DAS CRIANÇAS KAIOWÁ PELA REDE DE PROTEÇÃO À

3.5. Lar Renascer

O terceiro abrigo que visitei foi o Lar Renascer. Em Agosto de 2011, após uma visita ao Lar Santa Rita, fui incentivada, pela coordenadora desse abrigo, a conhecer os outros “lares” de Dourados. Aceitei prontamente e ela se encarregou de ligar para o Lar Renascer, para solicitar o endereço e fazer minha pré-apresentação. Como já havia conhecido o CEMA, o IAME e o Lar Santa Rita, no mesmo dia fui ao Lar Renascer e me surpreendi com a estrutura deste último.

Segui por uma avenida no centro da cidade de Dourados e, em uma das esquinas, vi uma casa de alvenaria verde claro, murada dos lados e com grade na frente. Como fiquei em dúvida, pois não havia placa na casa e o local era bem diferente das outras instituições, que tinham espaços amplos, perguntei pelo Lar Renascer.

O portão estava encostado e uma mulher jovem e simpática disse para eu entrar. Ela estava em uma sala pequena, a cerca de dois metros de distância do portão de entrada. Na sala tinha duas cadeiras na cor preta, uma mesa do tipo escrivaninha na cor azul e havia um homem jovem desmanchando algumas caixas, onde estavam os novos computadores. Entrei e a jovem - logo percebi que era a secretária - confirmou ser o lugar que eu procurava. Apresentei-me e também o meu trabalho. Ela imediatamente lembrou-se do telefonema da coordenadora do Lar Santa Rita. Então contou que, naquele momento, não havia adolescentes indígenas institucionalizadas, mas que o Lar recebia adolescentes do sexo feminino de todas as raças e etnias.

A partir dos 13 anos de idade, as meninas encontradas em situação de violência sexual e física, de prostituição, de maus tratos, de abandono familiar, fazendo uso de substâncias entorpecentes, filhas de pais envolvidos com álcool ou sem lugar para morar, são encaminhadas pelo Conselho Tutelar junto com a Vara e a Promotoria da Infância e Juventude para essa instituição. Ali as meninas permanecem até a maioridade penal.

Nessa visita, a secretária se ofereceu para mostrar o Lar. Aceitei a oferta e ela abriu uma porta de madeira que fica de frente para o portão e para a porta de entrada na sala de recepção. Saímos deste espaço e entramos para a sala de estar, onde estavam duas adolescentes internas do abrigo: uma se encontrava deitada em um dos sofás vermelhos e a outra sentada no chão com um aparelho celular nas mãos.

A secretária disse-lhes que eu estava conhecendo o Lar porque era estudante e estava fazendo um trabalho sobre os abrigos; as meninas me cumprimentaram e eu me sentei no outro sofá, de frente para a televisão. O espaço da sala é bastante pequeno e dele é possível ver a cozinha que fica de frente para a televisão. Do lado direito ficam os quartos, que eu não cheguei a ver.

A secretária voltou ao seu posto para continuar com os atendimentos e me deixou com as meninas. Perguntei a elas quantas pessoas trabalhavam no Lar. Uma delas falou: trabalham dois plantonistas em cada período, de manhã e de noite, mais a secretária, a coordenadora, a assistente social e uma psicóloga do CREAS.

O Lar Renascer tem capacidade para receber até 12 adolescentes, no entanto, naquele momento, havia apenas duas meninas institucionalizadas. Minha visita foi feita no período da manhã; coincidentemente, naquele dia as meninas não tiveram aula, por isso encontravam-se ali.

Uma das meninas era negra, 16 anos, com um olhar meigo, semblante sofrido e seu corpo estava bastante magro; ela comentou que tinha diabetes e dependia de injeções de insulina frequentemente; na escola estava cursando a sétima série do ensino fundamental em uma unidade pública de Dourados. Perguntei há quanto tempo estava abrigada e por que veio morar ali. Ela respondeu: “no Renascer faz pouco tempo que eu estou, mas antes eu morava no Lar Ebenézer, fiquei lá bastante tempo, mas por causa da minha idade vim pra cá”. A mesma compartilhou também que possui primos e dois irmãos em outras instituições de abrigamento da cidade de Dourados. Depois eu soube por uma psicóloga, ex-estagiária do Lar Ebenézer, que essa adolescente foi institucionalizada com oito anos de idade, vítima de abusos sexuais por parte de vários familiares e precisou de muitas cirurgias para reconstruir seus órgãos genitais e, na ocasião, teve perda do útero e ovários.

Mesmo diante de tanto sofrimento, ela mantinha um ar sereno e, quanto ao futuro, disse: “quero ser advogada, já ganhei a bolsa na Unigran, só preciso terminar o

ensino fundamental e médio”. Perguntei se ela desejaria sair do Lar Renascer e ela respondeu: “só Deus sabe quanto tempo mais irei permanecer aqui”. A expressão me soou como resignação diante das situações vividas.

A outra adolescente que estava no Lar nesse momento, tinha 17 anos, branca e bem mais arredia e até agressiva; foi dela que ouvi a maior parte das manifestações de descontentamento com o local. Conforme ela: “já fugi uma vez e eles me prenderam e me trouxeram pra cá, mas eu vou fugir de novo, porque aqui é muito chato. As tias são muito chatas”. Seguido desse desabafo, ela me questionou: “tia, que tipo de trabalho você tá fazendo? Pra que que é? O que você quer saber?” Procurei explicar que eu estava interessada em conhecer o modo como elas vivem no abrigo, do que gostam, do que não gostam, se têm amigos e, também, eu queria saber se elas têm amigas indígenas no Lar. De imediato, ela respondeu:

Tia, eu não gosto de índio. Eu odeio índio. [Mas por quê?]

Porque eu tenho medo, se eu vejo um, eu me escondo. Tia, porque eles não trazem os índios pra cá, em vez de me trazer? Sei lá... Eles precisam mais (Adolescente abrigada no Lar Renascer, 2011).

A ênfase dessa adolescente em não gostar de indígena me remete ao já referido sentimento anti-indígena e à percepção das violências sofridas pelos indígenas abrigados. Esse sentimento quase generalizado certamente pode interferir nas relações entre os abrigados. Essa adolescente foi internada pela primeira vez, após ser pega consumindo substâncias entorpecentes. Fugiu do abrigo para ir a uma festa na cidade de Fátima do Sul. Dois dias depois, ela foi dormir na casa da irmã, as duas brigaram pela manhã e a irmã a denunciou para o Conselho Tutelar. Três dias após a fuga, ela voltou para o abrigo.

A facilidade com que a fuga é tratada por essa adolescente pode estar ligada à diminuição do controle das mesmas nesse abrigo. Enquanto nas outras instituições, as crianças só saem acompanhadas pelos adultos responsáveis ou todas juntas de ônibus ou van, no Lar Renascer, conforme elas disseram, costumam ir a pé para a escola e sem o acompanhamento de um adulto responsável. Nesse trajeto, a fuga torna-se uma escolha.

Diferente das outras instituições que foram criadas e sustentadas por doações, sobretudo de igrejas, o Lar Renascer é uma instituição do município, sustentado por verbas públicas. Acredito que a essa relação também se deva o fato de a opção religiosa

das adolescentes internas não ser questionada, dando maior liberdade de escolha nesse quesito. Segundo as adolescentes, elas podem escolher qual igreja querem frequentar.