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3. DA CIRCULAÇÃO DAS CRIANÇAS KAIOWÁ PELA REDE DE PROTEÇÃO À

3.2. Vínculo Religioso e a Etnografia do IAME

Meu contato com o Instituto Agrícola do Menor precede o início dessa pesquisa. Desde o ano 2005 frequento o mesmo templo religioso. Desde meu nascimento fui levada para igrejas evangélicas, por opção da minha família materna que, em sua maioria, pertencem à denominação Batista. No entanto, por opção do meu pai, por sete anos frequentamos a “Igreja Assembleia de Deus”. Após completar 18 anos, quis retornar para a Igreja Batista, por me sentir mais à vontade com seus modos e costumes. Na ocasião, visitei alguns de seus templos e fiz a opção pela Igreja Batista Central, justamente pelo trabalho social desenvolvido no IAME. No meu imaginário, o desenvolvimento de trabalhos sociais era uma demonstração mínima de estar cumprindo com um mandamento de Jesus Cristo: “amar ao próximo”.

A Igreja Batista Central reúne poucas pessoas, aproximadamente cento e vinte pessoas nos dias mais festivos; a quantidade de famílias membros também é bastante reduzida, se comparada a outros templos da região de Dourados. Assim, há uma escassez de voluntários para os diversos cargos que esta possui. Após alguns meses de

membresia, fui convidada a ministrar aulas na Escola Bíblica Dominical (EBD) para as

crianças de um a seis anos. Após dois anos, passei a fazer o mesmo trabalho com as crianças maiores, de sete a dez anos.

Falar sobre o modo como se deu a aproximação com o IAME e sobre meu vínculo religioso pode despertar críticas dos meus pares na Antropologia. Estes podem questionar, inclusive, as observações aqui feitas, haja vista que, segundo a história ocidental, a religião foi e continua sendo, em alguns casos, importante instrumento do colonialismo. No entanto, omitir esse contato seria pouco correto ou desonesto. Além

fundamental para eu olhar as atividades propostas pela igreja com mais criticidade. Atuar como “professora de escola dominical” me possibilitou perceber o modo como a igreja contribui para criar nas crianças institucionalizadas um sentimento de gratidão. O bom comportamento, a obediência aos monitores e coordenadores é posto como um dever a ser retribuído, diante de toda bondade destes para com as crianças e adolescentes.

Em uma das aulas que dividi com a esposa do pastor dessa igreja, ela contou às crianças, em forma de história, o versículo João 3:16 “Porque Deus amou o mundo de tal maneira, que deu Seu único Filho para que todo aquele que nEle crê, não pereça, mas tenha a vida eterna.” De 2005 até 2011, diversas vezes ouvi essa história sendo contada, com figuras, para as crianças, por diferentes professoras. A história é contada da seguinte forma:

Numa noite fria e escura de inverno, próximo a uma esquina por onde passavam várias pessoas, um garotinho vendia balas a fim de conseguir alguns trocados. O frio estava intenso e as pessoas já não paravam mais quando ele as chamava.

Sem conseguir vender mais nenhuma bala, ele sentou na escada em frente a uma loja e ficou observando o movimento das pessoas. Sem que ele percebesse, um policial se aproximou: – Está perdido? O garoto meneou a cabeça: – Só estou pensando onde vou passar a noite hoje… Normalmente durmo em minha caixa de papelão, perto do correio, mas hoje o frio está terrível… O senhor sabe me dizer se há algum lugar onde eu possa passar esta noite? O policial mirou-o por uns instantes e

coçou a cabeça, pensativo: – Se você descer por esta rua, disse ele

apontando o polegar na direção de uma rua, à esquerda, lá embaixo vai encontrar um casarão branco; chegando lá, bata à porta e, quando atenderem, apenas diga “João 3:16”.

Assim fez o garoto. Desceu a rua estreita e, quando chegou em frente ao casarão branco, subiu os degraus da escada e bateu à porta. Quem

atendeu foi uma mulher idosa, de feição bondosa. – “João 3:16″, disse

ele, sem entender direito. Entre, meu filho. A voz era meiga e

agradável. Assim que ele entrou, foi conduzido por ela até a cozinha

onde o fogão à lenha estava aceso… – Sente-se, filho, e espere um

instante, tá? O garoto se sentou e, enquanto observava a bondosa

mulher se afastar, pensou consigo mesmo: -João 3:16… Eu não

entendo o que isso significa, mas sei que aquece a um garoto com frio.

Pouco tempo depois, a mulher voltou. – Você está com fome?,

perguntou ela. Estou um pouquinho, sim… há dois dias não como nada e meu estômago começa a roncar… A mulher, então, o levou até a sala de jantar, onde havia uma mesa repleta de comida. Rapidamente o garoto sentou-se à mesa e começou a comer; comeu de tudo, até não aguentar mais. Então ele pensou consigo mesmo:- João 3:16…Eu não entendo o que isso significa, mas sei que mata a fome de um garoto faminto.

Depois, a bondosa senhora o levou ao andar superior, onde se encontrava um quartinho com uma banheira cheia de água quente. O garoto só esperou que a mulher se afastasse e então rapidamente se despiu e tomou um belo banho, como há muito tempo não fazia. Enquanto esfregava a bucha pelo corpo, pensou consigo mesmo: -João 3:16… Eu não entendo o que isso significa, mas sei que torna limpo um garoto que há muito tempo estava sujo.

Cerca de meia hora depois, a bondosa mulher voltou e levou o garoto até um quarto onde havia uma cama de madeira, antiga, grande e confortável. Ela o abraçou, deu-lhe um beijo na testa e, após deitá-lo na cama, desligou a luz e saiu. Ele se virou para o canto e ficou imóvel, observando a garoa que caía do outro lado do vidro da janela. E, ali, confortável como nunca, ele pensou consigo mesmo: – João 3:16… Eu não entendo o que isso significa, mas sei que dá repouso a um garoto cansado.

No outro dia de manhã, a bondosa senhora preparou uma bela e farta mesa e o convidou para o café da manhã. Quando o garoto terminou de comer, ela o levou até a cadeira de balanço, próximo ao fogão de lenha. Depois seguiu até uma prateleira e apanhou um livro grande, de capa escura. Era uma Bíblia. Ela voltou, sentou-se numa outra cadeira, próximo ao garoto e olhou dentro dos olhos dele, de maneira doce e amigável: -Você entende João 3:16, filho? Não, senhora… eu não entendo… A primeira vez que ouvi isso foi ontem à noite… um policial que falou…. Ela concordou com a cabeça, abriu a Bíblia em João 3:16 e começou a explicar sobre Jesus. E, ali, aquecido junto ao velho fogão de lenha, o garoto entregou o coração e a vida a Jesus.

Enquanto lágrimas de felicidade deixavam seus olhos e rolavam face à

baixo, ele pensou consigo mesmo: – João 3:16… Ainda não entendo

muito bem o que isso significa, mas agora sei que isso faz um garoto perdido se sentir realmente seguro.

As professoras são treinadas para contar as histórias para as crianças de um modo que vá além da linguagem oral, esforçando-se para criar efeitos, aumentando e baixando o tom de voz e utilizando o corpo, em uma espécie de interpretação gestual que transmita sensações para as crianças. Portanto, uma história como essa tem muitos elementos que permitem boas interpretações, capazes de reter a atenção de quem a ouve. Em todas as vezes que essa história foi contada, notava a concentração das crianças, através dos olhares fixos e das queixas quando a história era interrompida para ser continuada na próxima aula. A moral óbvia desse texto é levar quem a ouve a crer no amor de Deus. Mas, nesse caso, a história era concluída incentivando as crianças abrigadas a serem gratas por estarem no IAME, dizendo a ela: “o IAME é o João 3:16 de vocês. Lá eles sabem, “aquece a um garoto com frio, mata a fome de um garoto faminto, torna limpo um garoto que há muito tempo estava sujo e dá repouso a um garoto cansado”. Acrescentava ainda, “os monitores, “o tio”, “a tia” não precisam cuidar

de vocês, aguentar desaforo, mas eles fazem como se fossem seus pais e precisam ser respeitadas, porque ali vocês têm tudo”.

Por outro lado, esse mesmo texto lembra as formas de trabalhos missionários, criticados pela Antropologia. Normalmente, os missionários vão a lugares como aldeias ou outros locais que se encontrem em situação de pobreza, com falta de alimento, em condições precárias de saúde e com outras necessidades básicas insatisfeitas, e levam recursos econômicos, que acabam soando como objetos de barganha para convencer os índios a aceitar a religião cristã e negar suas próprias crenças.

Retomando as impressões sobre a história do menino que encontrou João 3:16, por vezes percebi que as crianças se colocavam no lugar do personagem - o garotinho que vendia balas – como o Marcus que, quando ouviu a interrogação da professora que contou a história, sobre qual era o local em que o menino morava e dormia, ele respondeu imediatamente, em tom alto: “em um barraco tia”. Seguido da resposta de Marcus vieram os risos dos outros meninos e um deles disse: “tia, ele é índio, mora na Jaguapiru”. Naquele momento entendi, assim como parece ter sido compreendido pela criança que fez o comentário, que o Marcus havia se posto no lugar do personagem, fazendo alusão à sua antiga moradia na reserva. Em outra ocasião, ele já havia me contado que morava “em um barraco na Jaguapiru”.

Por esses casos etnográficos e outros, percebo que a condição de professora da EBD foi um espaço privilegiado para compreender as relações entre as crianças institucionalizadas e os profissionais dessa instituição, bem como o papel da igreja nesse processo de abrigamento das crianças. Assim, consigo entender que mesmo indivíduos repletos de boas intenções estão embrenhados em estruturas de significação que não, necessariamente, são positivas ou benéficas, porque suas ações estão carregadas de sua própria cultura, de símbolos e de relações políticas.

A seguir continuo a análise dos abrigos, descrevendo o Lar Ebenézer, instituição que também possui referência religiosa marcante.