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CAPÍTULO 2: VARIÁVEIS QUE INFLUENCIAM NA ORIENTAÇÃO ESPACIAL

2.3 AQUISIÇÃO DO CONHECIMENTO ESPACIAL E MAPA COGNITIVO

2.3.2 Legibilidade urbana, desenho urbano tradicional e modernista

A orientação espacial é influenciada pelas características físico-espaciais do ambiente, o que está relacionado diretamente com o conceito de legibilidade urbana (LYNCH, 1960), compreendido como “a facilidade com que cada uma das partes [da cidade] podem ser reconhecidas e organizadas num padrão coerente. [...] uma cidade legível seria aquela cujos bairros, marcos ou vias fossem facilmente identificáveis e agrupados num modelo geral” (LYNCH, 1960, p.2-3). Segundo Passini (1992), a legibilidade corresponde à qualidade de um

ambiente em ser compreendido pelos indivíduos, vinculada a um conjunto de características físico-espaciais que facilitariam a obtenção e apreensão de informações.

Em estudo realizado em três cidades americanas (Boston, Jersey City e Los Angeles), Lynch (1960) identifica cinco elementos que contribuem para a maior legibilidade urbana e formação da imagem da cidade, são eles: caminhos, limites, distritos (regiões), pontos nodais e marcos referenciais (Figura 2.7). Dentre estes, os caminhos e os marcos referenciais apontam como elementos predominantes da imagem da cidade para a maioria das pessoas (LYNCH, 1960; BENTLEY et al., 1985; LANG, 1987; dentre outros). Os caminhos correspondem aos canais de circulação dos indivíduos, tais como ruas, calçadas, estradas, etc. É desejável que as cidades apresentem uma boa legibilidade quanto à estrutura de circulação, o que tende a facilitar a orientação espacial dos indivíduos, especialmente àqueles que possuem pouca familiaridade com o ambiente e que precisam compreender rapidamente a organização de determinado lugar (por exemplo, Cooper Marcus; Wischemann, 1998). Logo, a presença destes elementos é considerada um facilitador da legibilidade, e, consequentemente, da orientação espacial.

Figura 2.7: Elementos estruturadores da imagem da cidade

Fonte: adaptado pela autora de Lynch (1960)

Dentre as características que contribuem para a legibilidade urbana estão: o grau de visibilidade do espaço, a complexidade do layout e a diferenciação do ambiente (WEISMAN, 1981; GÄRLING et al., 1986; O’NEILL, 1992). Por diferenciação entende-se a distinção de um espaço em relação a outros, permitindo seu reconhecimento, ou seja, sua identidade (LYNCH, 1960). Espaços que não proporcionam uma clara organização, não são compreendidos com facilidade pelos usuários, logo quanto menor o grau de legibilidade do espaço, maior a dificuldade de orientação espacial (LYNCH, 1960; ARTHUR; PASSINI, 2002).

A maior legibilidade urbana e consequente maior facilidade de orientação espacial em áreas com implantações tradicionais em relação às modernistas tem sido mencionado (ALEXANDER et al., 1977; ELLIS, 1978; BENTLEY et al., 1985; TRANCIK, 1986; GEHL, 2013; REIS, 2014). No livro Paisagem Urbana (1971), Gordon Cullen critica os projetos urbanos modernistas construídos na Inglaterra em meados do século XX, nos quais predomina a

similaridade entre edifícios e a ausência de relação entre edifícios e as ruas. O autor ainda argumenta que as cidades modernistas são concebidas como negativo das cidades tradicionais, ou seja, as áreas edificadas na cidade tradicional (representadas em preto na Figura 2.8) são predominantes sobre os espaços abertos (representados em branco), situação oposta ocorre na cidade modernista (Figura 2.9). Ao observar o contraste entre tais ilustrações fundo-figura percebe-se a pertinência do questionamento levantado pelo autor, corroborado por vários estudos posteriores (ALEXANDER et al., 1977; HOLANDA, 1984; HILLIER, 1989; PEPONIS, 1989; HOLSTON, 1993; MARCHAND, 2000; HOLANDA, 2013).

Figura 2.8: Fundo-figura de Parma, 1830 Figura 2.9: Fundo-figura Asa Sul Brasília, 1960

Fonte: Holston (1993) Fonte: Holston (1993)

A Figura 2.10 ilustra os diferentes graus de legibilidade urbana em desenhos urbanos tradicionais em comparação com desenhos urbanos modernistas (BENTLEY et al., 1985).

maior legibilidade menor legibilidade Figura 2.10: Grau de legibilidade urbana em desenho urbano tradicional e modernista

Fonte: adaptado pela autora de BENTLEY et al. (1985)

Estudos desenvolvidos na área Ambiente-Comportamento foram impulsionados pelo impacto negativo gerado pela implantação de projetos modernistas (REIS; LAY, 2005). A falta de adequação às necessidades dos usuários culminou com a demolição de dois conjuntos habitacionais com características modernistas, nomeadamente Pruitt-Igoe, nos Estados Unidos, e Killingworth Towers, na Inglaterra (REIS, 2010). Kellet (1987) afirma que a decisão de demolir tal conjunto habitacional na Inglaterra “representa uma clara rejeição aos ideais

visionários do modernismo em favor da cidade tradicional” (KELLET, 1987, p.10). Estudos apontam que o desenho urbano modernista apresenta um desempenho negativo quanto à orientação espacial (HOLSTON, 1993; KOHLSDORF, 1996b; MARCHAND, 2000). Sobre os aspectos configuracionais da cidade de Brasília-DF, Holston (1993) apresenta trechos de entrevistas com moradores do Plano Piloto de Brasília que revelam esta dificuldade de orientação espacial:

Quando se pergunta onde fica determinado lugar, os brasilienses invariavelmente começam pela imagem do todo, descrevendo primeiro o cruzamento dos eixos e, em seguida, localizando o ponto desejado dentro dele. Ou então irão simplesmente dar o endereço, o que mais uma vez depende do conhecimento do todo. Os dois modos de informação são inteiramente abstratos. Na verdade, é quase impossível dar indicações práticas, uma vez que há poucos pontos de referência dignos de nota. Mais ainda, não se pode dizer “vá até aquela esquina e vire no farol”. Em tal situação, mesmo pessoas que vivem em Brasília há muito tempo em geral têm dificuldade para localizar um ponto da cidade, mesmo se podem situá-lo no seu mapa mental e se já estiveram lá várias vezes (HOLSTON, 1993, p. 154).

A citação mostra como a ausência de esquinas na cidade e a desorientação espacial levou os moradores a reaprenderem os códigos da locomoção urbana. Sobre a orientação espacial em Brasília-DF, Kohlsdorf (1996b) realiza uma análise do desempenho topoceptivo de cinco malhas urbanas no Distrito Federal: Setor Comercial Sul no Plano Piloto, Superquadras (102 e 302), núcleo histórico de Planaltina, cidade-satélite Taguatinga e Vila Paranoá, um assentamento espontâneo (Figura 2.11). Kohlsdorf e Kohlsdorf (2008) trabalham com o conceito de dimensão “topoceptiva” do espaço arquitetônico, ou seja, como a forma física dos lugares pode orientar os indivíduos e permitir sua identificação sem a necessidade de outros elementos, como dispositivos de sinalização ou mapas. O termo “topocepção”, cunhado por estes autores, corresponde à composição de dois radicais: “topo”, significando lugar, e “cepção”, que indica receber, apreender (KOHLSDORF; KOHLSDORF, 2008). Embora o desempenho topoceptivo do espaço não seja explorado nesta investigação, destaca-se que evidências provenientes deste estudo indicam que desenhos urbanos tradicionais apresentam melhor desempenho quanto à orientação espacial em comparação com os desenhos urbanos modernistas, cujas configurações espaciais apresentam menor grau de legibilidade urbana.

(1) Superquadras 102/302 (2) Setor Comercial Sul (3) Taguatinga (4) Planaltina (5) Vila Paranoá

Figura 2.11: Tecidos urbanos em Brasília-DF

Nota: Desenhos urbanos modernistas (1 a 3) e desenhos urbanos tradicionais (4 e 5). Fonte: Kohlsdorf (1996b)

Marchand (2000) verifica que os moradores de Rennes (cidade tradicional) na França, conseguiram desenhar com facilidade o mapa cognitivo do centro da cidade. Isto demonstra que a organização espacial contribui para uma imagem mental mais coerente. Em outras palavras, observa-se uma boa legibilidade urbana dos elementos que compõem a cidade. Por outro lado, os moradores de Le Havre (cidade modernista) na França, reconstruída nos anos 50 pós-Segunda Guerra Mundial, apresentaram dificuldade de realizar os mapas cognitivos. Estes moradores atribuíram a dificuldade à ausência de marcos referenciais maior, além de referirem-se à configuração urbana do centro de Le Havre como “tudo é muito grande, muito amplo [...] nos sentimos perdidos em espaços grandes demais” (MARCHAND, 2000, p.23). Outro exemplo de como os atributos físico-espaciais de desenho urbano modernista podem dificultar a orientação espacial pode ser observado no Barbican Centre em Londres (Figura 2.12). Desde sua inauguração em 1982, o complexo apresentava dificuldades quanto à navegação apontadas de forma recorrente pelos usuários, tanto que uma das estratégias implementadas nos anos 90 foi a colocação de uma faixa amarela no piso para direcionar os usuários aos espaços internos do complexo cultural (INGERSOLL, 2006). Esta marcação no piso ainda é utilizada como referência para guiar visitantes, tanto que dentre as orientações para chegar a pé ao complexo consta a instrução de seguir a ‘linha amarela’ (Figura 2.12 - 4).

(1) Vista interna do complexo cultural

(3) Detalhe no piso

(2) Linha amarela no piso para orientar os visitantes

(4) “Siga a linha amarela pintada no piso e as placas laranjas e brancas para chegar ao Barbican Centre”.

Figura 2.12: Barbican Center, Londres

Fonte: (1) e (2) http://migre.me/tmDWU, (3) Northcote (2014), (4) barbican.org.uk

Também foram encontradas dificuldades de orientação espacial em campi universitários de implantação modernista, embora não tenham sido encontradas investigações detalhadas acerca dos atributos arquitetônicos e de implantação que contribuem para a desorientação dos usuários. Por exemplo, a maioria expressiva dos respondentes, distribuídos entre discentes (87,76% - 337 de 384), docentes (4,43% - 17 de 384) e técnicos administrativos (7,81% - 30 de 384), consideram a orientação espacial no campus da UnB (Universidade de Brasília/DF; Figura 2.13) como péssima a regular (89,06% - 342 de 384) (RODRIGUEZ, 2007). Embora não exista uma categorização do grau de familiaridade destes grupos, é relevante o fato de que, mesmo entre docentes e técnicos administrativos, a princípio mais familiarizados com o local, predomina a avaliação negativa da orientação espacial. Ainda, a maioria expressiva dos respondentes, distribuídos entre discentes (82,36% - 313 de 380), docentes (6,57% - 25 de 380) e técnicos administrativos (11,07% - 42 de 380), consideram como péssima a regular (90,52% - 344 de 380) a orientação de pedestres no interior do Campus I da Universidade Federal da Paraíba/PB, com implantação modernista (Figura 2.13) (SARMENTO, 2012)

UNB – Brasília/DF UFPB – Paraíba/RN Figura 2.13: Exemplos de campi universitários com desenho urbano modernista no Brasil

Fonte: Google Earth (2015)

Por outro lado, Locatelli (2007), em estudo sobre orientação espacial no campus da Universidade Federal de Santa Maria/RS de implantação modernista, identificou que a maioria dos respondentes (universitários) consideram o deslocamento interno do campus fácil ou muito fácil (76% - 133 de 175). Contudo, os universitários que participaram da pesquisa são aqueles que possuem maior familiaridade com o campus, o que pode justificar o fato de terem considerado a orientação espacial uma tarefa fácil. Desta forma, verifica-se a contradição de resultados e a necessidade de aprofundamento através de um estudo comparativo detalhado que considere tanto as características físico-espaciais que interferem na orientação como o grau de familiaridade dos usuários com o espaço. Ainda, a partir da síntese dos estudos realizados no Brasil (Tabela 2.1) observa-se que ainda há espaço para discussão e aprofundamento acerca dos aspectos que influenciam na navegação, especialmente no contexto brasileiro e em campi universitários.

Ademais, argumentações favoráveis ao desenho urbano modernista carecem de evidências que justifiquem sua implantação; muitas vezes recorre-se ao argumento das vantagens estéticas e espaços verdes amplos. Por exemplo, Bonduki (2004) comenta sobre o Conjunto Residencial da Baixada do Carmo, em São Paulo, o qual não foi construído em sua totalidade, que “trata-se de um projeto marcado pela austeridade na ornamentação, pureza das formas, racionalidade da implantação e, por outro lado, riqueza nos espaços públicos. Lamentavelmente, apenas os blocos de quatro andares foram edificados” (BONDUKI, 2004, p.185). No entanto, nada é mencionado sobre o desempenho do conjunto habitacional para seus usuários quanto à orientação espacial, dentre outros aspectos importantes como uso dos espaços e segurança. García (2009) elabora uma análise dos conjuntos habitacionais modernos construídos na América Latina entre 1950 e 1965, cujos critérios de projeto adotados rementem ao urbanismo moderno. Porém, não são considerados os impactos de tais conjuntos quanto à percepção dos seus usuários, especificamente quanto ao acesso às edificações.

Ainda são encontrados projetos urbanísticos que reproduzem a lógica espacial preconizada pelo urbanismo moderno, e que, a princípio, tendem a dificultar a orientação espacial dos usuários, por exemplo: conjuntos habitacionais, campi universitários, e áreas com alojamentos para atletas em eventos esportivos internacionais tais como Jogos Pan-Americanos e Olimpíadas. Logo, são necessários novos estudos que reforcem o impacto gerado pelo desenho urbano modernista, em comparação ao desenho urbano tradicional, na orientação espacial dos usuários de tais áreas. Assim, para medir tal impacto, o presente trabalho trata da avaliação dos níveis de facilidade de orientação espacial para acesso aos prédios no Campus do Vale (desenho urbano modernista) e no Campus Centro (desenho urbano tradicional) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em Porto Alegre. A seguir, serão abordadas as variáveis contextuais (atributos arquitetônicos e de implantação) e composicionais (características dos indivíduos) que influenciam na orientação espacial e especificadas aquelas que farão parte desta investigação.