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1.1 A questão da legitimidade no direito internacional

1.1.1 Legitimidade no pensamento de José Guilherme Merquior

José Guilherme Merquior, no texto de 1978, ‘O problema da legitimidade em Política Internacional’, o qual apresentou como tese para o I Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco, procura situar o tema da legitimidade nas relações

internacionais. O texto, além da erudição e do valor literário possui a particularidade de ter sido escrito por um teórico considerado brilhante, envolvido diretamente na dinâmica da política internacional, na qualidade de diplomata. Mais do que todas estas características, o trabalho de Merquior é valoroso porque é resultado de estudos da tese de doutoramento na London School of Economics, sob a orientação de Ernst Gellner sobre a legitimidade em Weber e Rousseau. Enfim, uma introdução eficiente à questão da legitimidade nas relações internacionais de forma geral e à ‘forma mentis’ de Merquior no particular.

Fazendo suas as palavras de Merquior esta tese, particularmente no primeiro capítulo, também procura ‘projetar um punhado de conceitos com cidadania estabelecida na literatura dita científica em certas realidades da estrutura atual as relações internacionais’.29 Nesta projeção, Merquior parte da semântica histórica.

Esclarece que ‘legitimus’ no latim significava, legal, de acordo com a lei e o mesmo se dava quanto ao grego ‘nominon’. Disto conclui que a questão teórica da legitimidade só surgiria no caso helenístico da polis.30

O conceito de legitimidade com o qual Merquior articula seu pensamento pertence ao domínio da política, ou seja, legitimidade do poder. Sugere, então que a inteligência do poder legítimo se resume em duas concepções, a subjetivista e a objetivista. A subjetivista diz respeito à convicção de parte dos membros da comunidade de que é correto e próprio aceitar e obedecer às autoridades. A crítica

29

MERQUIOR, José Guilherme. O problema da Legitimidade em Política Internacional: Tese apresentada no I Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco. In: LAFER, et al,. Diplomata. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1993, p. 50.

30 “Aparentemente a aprensão da legitimidade como um problema intelectual se deveu, com efeito,

ao eclipse dos governos diretos: a democracia da ágora e a dominação dos tiranos locais. O fato é que a própria aplicação do adjetivo legitimus à pessoa do governante é uma inovação tardia, já medieva, que reflete a longa experiência do poder delegado a representantes do Império ou do papado. A dificuldade prática de justificar a autoridade baseada numa transferência de direitos forneceu, assim, o fundo do questionamento do caráter teórico.” (MERQUIOR, In: LAFER, Celso et al,. p. 53).

da concepção subjetivista indica que a legitimidade de um governo não depende somente de seus súditos mas também do reconhecimento por outros governos. A este respeito Merquior sugere que esta contraposição amplia a visão subjetivista já que estende a convicção a não-súditos. A objetivista leva em conta o papel dos valores como critério do legítimo; assim, um governo é legítimo se seus resultados são compatíveis com o padrão de valores da sociedade. Sobre estas sistematizações, conclui que tanto as concepções objetivista e subjetivista se articulam em torno da confiança ou crença.31

As duas concepções não são satisfatórias. A subjetivista é abstrata e trivializante e a objetivista enfatiza impalpáveis valores sociais. Frente a esta constatação, o autor pergunta: haveria uma terceira concepção? A resposta é afirmativa. Esta terceira sistematização seria uma abordagem ‘crática’ em contraposição com a ‘fiduciária que resume as duas anteriores: “Consiste em colocar a reflexão sobre a legitimidade no contexto de uma análise sociológica do poder.”32

A legitimidade neste contexto é uma força estabilizadora mas que para ser bem compreendida precisa ser matizada para não correr o perigo de manter-se muito perto da coerção. Distingue os atributos, modalidades, extensão, dimensões e configuração de poder para concluir que a coerção e influência não deixam margem para os ‘sentimentos’ legitimatórios, mas a autoridade, em termos de poder in actu, fundada no consentimento se desenha como modalidade isomórfica da legitimidade.

A noção de legitimidade como configuração aberta de poder, trocando a ênfase no consenso pela tônica no consentimento, parece bem mais adequada a dar conta da problemática empírica do legítimo/ilegítimo no mundo contemporâneo. (...) A legitimidade internacional, em suma, constitui uma instância ótima do conceito de legitimidade como configuração de poder.33

31 MERQUIOR, op. cit., In: LAFER, et al, op. cit., p. 54-56. 32

Ibidem, p. 57.

33

A opção teórica do Merquior pode ser tida como um diálogo com as anotações de Weber. Reproduz o registro do ‘Economia e Sociedade’ nas duas primeiras concepções que reúnem crença e valor. Distancia-se de Weber quando distancia a noção de legitimidade de coerção. Só que isto não acontece por dissenso teórico e sim porque o elemento coerção faz mais sentido no plano estatal do que nas relações internacionais. A coerção não participa do conceito de legitimidade em política internacional em pelo menos dois sentidos: porque a imposição é contrária ao consentimento e porque não há que se falar em coerção numa sociedade internacional descentralizada. Merquior, contudo não inclui este segundo constrangimento em suas reflexões.

A caracterização que Merquior faz de legitimidade sob o viés político é baseada claramente na contribuição de Weber (elemento fiduciário) e contratualista (consentimento) e desta forma não consegue sair do círculo dos elementos normativos, pois o consentimento não é um elemento puramente psicológico e sim manifesto, revestido de formalidade. O consentimento é a formalização do consenso em torno de idéias, valores, etc. Merquior procura conferir densidade empírica distanciando-se dos elementos consensuais e axiológicos para matizar legitimidade em torno da autoridade consentida.

A opção pela concepção relativa à análise sociológica do poder surge porque a noção subjetivista não proporciona critérios discriminatórios e que toda a concepção de legitimidade como simbólica de valores endossados pelos membros da comunidade internacional teria contra si para começar a evidente ausência de consenso axiológico entre os atores.34 A respeito destas últimas críticas algumas

confrontações empíricas são necessárias. A concepção subjetivista levanta o

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desafio do consenso que deságua atualmente nos debates sobre governança global e constitucionalização do direito internacional. A dificuldade em estabelecer critérios de consenso não impede que a legitimidade possa ter esta acepção. O mesmo se aplica à questão dos valores tão cara aos estudos sobre direitos humanos. A este respeito, se a sociedade internacional ou determinado país não compartilha valores mínimos acerca da dignidade humana, isto deveria ou não ser um obstáculo ao avanço da legitimidade em torno de padrões mínimos da sociedade internacional como um todo? Estes são alguns dos questionamentos possíveis do ‘regressum ad absurdum’ da noção de legitimidade em Merquior já que a terceira acepção sugere que legitimidade como dependente do consentimento.

Distanciar o elemento coerção do apanhado teórico acerca de legitimidade e trazer à tona o consenso/consentimento como elementos não contingentes são os momentos de maior força no esforço intelectual de Merquior em perspectiva com o quadro teórico que será desenvolvido neste capítulo. Já que prefere consentimento a consenso reveste a atribuição ou percepção de legitimidade aos elementos formais ou pelo menos expressos. Difícil é então isolar o consentimento à ordem de elementos contratualistas, ou seja, a legitimidade da legalidade.

Partindo-se da aceitação da hipótese levantada por Merquior - legitimidade enquanto consentimento - seria possível isolar os elementos políticos da noção de legitimidade? Não. Por outro lado, é possível falar de legitimidade relativa ao direito internacional? Sim. Para tal, é pressuposto que direito e política não pertençam à mesma ordem de fenômenos. Legitimidade no campo do direito internacional encontra-se na intersecção entre os ‘conjuntos’ da política e do direito.

A partir desta ótica seria mais acertado estudar o que é legitimidade sob a perspectiva jurídica e não a legitimidade jurídica. Para conseguir responder a estas perguntas com menor margem de erro é necessário ir em busca do que seria legitimidade no direito internacional.

1.1.2 Legitimidade e direito internacional: as lições de Ahmed Mahiou na