• Nenhum resultado encontrado

Lei complementar e normas gerais de direito tributário: fixação da base de

III. BASE DE CÁLCULO CONFORME A REGRA DE COMPETÊNCIA

3.6 Lei complementar e normas gerais de direito tributário: fixação da base de

na medida em que se insiram na base de cálculo fatores outros não abrangidos pelo critério material, resultando numa deformação lógica da regra-matriz do tributo. Na medida em que a base de cálculo afasta-se do critério material disposto na regra de competência, em razão de sua preponderância na definição da natureza jurídica do tributo, termina por revelar espécie tributária distinta, o que leva à ofensa da repartição constitucional de competência estabelecida pelo Poder Constituinte originário, além de atingir direitos fundamentais do contribuinte previstos em regras que limitam o poder de tributar.

3.6 Lei complementar e normas gerais de direito tributário: fixação da base de cálculo

O desenho da regra-matriz de incidência tributária disposto nas regras constitucionais de competência não pode ser por lei complementar restringido, sob pena de afronta ao Princípio Federativo, nem pode ser ampliado, sob pena de violação

206

CARVALHO, Paulo de Barros: Curso de Direito Tributário. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 224.

207

BARRETO, Aires: Base de cálculo, alíquota e princípios constitucionais. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 52.

dos limites impostos na Carta Magna à imposição tributária. A lei complementar há de limitar-se a explicitar apenas o conteúdo daquilo que está delimitado na Constituição.

Dispõe a Constituição Federal no art. 146 que à lei complementar está reservada a competência para dispor sobre conflitos de competências, em matéria tributária, entre as entidades tributantes, regular as limitações constitucionais ao poder de tributar e estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária (incisos I, II e III). Aqui, abre o constituinte três alíneas no inciso III e, numa tentativa de esclarecimento, proclama que, além das normas gerais propriamente ditas, a lei complementar estaria habilitada a regular com especificidade: a) a definição dos tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados na Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; b) obrigação, crédito, prescrição e decadência tributários.

Tem-se demonstrado, diante da referida disposição constitucional, uma preocupação com o Princípio Federativo, o Princípio da Autonomia dos Municípios, bem como com o Princípio da Isonomia das pessoas políticas de direito constitucional interno. A questão está em saber se a interpretação literal do art. 146, na medida em que tal disposição confere ao legislador complementar um rol de competência aparentemente ilimitada em matéria de normas gerais de direito tributário, coaduna-se com os referidos princípios, pilares do ordenamento jurídico. Tal problemática tem sido constantemente discutida, havendo quem invoque uma interpretação sistemática da aludida disposição, o que, advirta-se, já se defendia quando da vigência da Constituição de 1967, a qual continha dispositivo de idêntico teor normativo.208

Efetivamente, uma interpretação literal, apegada que é à leitura pura e simples do arranjo textual do preceptivo, leva à inferência de que a lei complementar manifestaria três distintas funções: a) emitir normas gerais de direito tributário; b) dispor sobre conflitos de competência; e c) regular as limitações constitucionais ao poder de tributar.

Por outro lado, invoca-se, no caso, uma interpretação desapegada unicamente à feição gramatical do texto, privilegiando o trabalho exegético, que o

208

analise em confronto com as diretrizes pilares do ordenamento jurídico, levando a cabo, portanto, um exame sistemático que pretenda ser coerente e harmônico com o todo. Diante desse contexto sistemático, se poderia depreender o seguinte: 1º) à lei complementar cabe a única função de ser o veículo introdutório das normas gerais de direito tributário; 2º) as normas gerais, por sua vez, ficariam delimitadas a duas únicas destinações: a) dispor sobre conflitos de competência entre as entidades tributantes; e b) regular as limitações constitucionais ao poder de tributar; 3º) as normas gerais teriam um alcance jurídico determinado, elidindo uma abrangência prejudicial aos postulados constitucionais relativos ao Princípio Federativo e ao Princípio da Autonomia dos Municípios.

Aduziu Souto Maior Borges que à Lei Complementar competiria dispor sobre conflitos de competência e limitações constitucionais ao poder de tributar, funções estas fundamentais, porquanto são instrumentos de preservação da estrutura do sistema. No que tange ao estabelecimento de normas gerais, afirmou Souto Maior que tal função poderia causar sérios problemas de execução constitucional.209

Intenta-se, assim, afastar a interpretação que confere à lei complementar a produção indiscriminada de regras jurídicas que terminassem por invadir as competências outorgadas aos Estados-Membros, ainda que sob a forma de normas gerais, ofendendo-se o Princípio Federativo, constitucionalmente previsto, o qual se fundamenta na autonomia recíproca entre União e Estados. Ao mesmo tempo, busca-se a preservação das prerrogativas constitucionais de que gozam os Municípios, de modo a evitar o esvaziamento do princípio que lhes assegura autonomia. Prestigiar o entendimento de que a lei complementar abrangeria vasta matéria da legislação tributária, ao prevalecer uma interpretação estritamente literal, terminaria por subverter a ordem constitucional instaurada com a Carta Magna de 1988.

Cumpre, todavia, verificar que os questionamentos levantados em torno do disposto no art. 146 da Constituição limitam-se, unicamente, a reprimir uma provável ofensa aos princípios relativos à harmonia e igualdade entre os entes políticos. Há de se verificar, entretanto, as implicações advindas diretamente ao contribuinte, diante de uma

209

BORGES, José Souto Maior: “Competência Tributária dos Estados e Municípios”. In Revista de

atribuição ilimitada, em matéria tributária, ao legislador complementar, principalmente no que se tange à base de cálculo.

Parte-se, inicialmente, do entendimento de que o Poder Constituinte, pleno de cuidados, demorou-se ao explicitar as faixas de competência tributária da União, Estados e Municípios. Na medida em que estipulou as delimitações materiais, com o objetivo de estabelecer uma harmonia entre os entes políticos, previu o Poder Constituinte as balizas inafastáveis do poder de tributar de cada ente, ou seja, até que ponto se poderia ingressar na esfera particular atingindo o patrimônio do cidadão. Em outras palavras, a preocupação do Poder Constituinte não se restringiu, apenas, à entrega equilibrada de matérias tributáveis à União, Estados e Municípios. Intentou, também, com tais regras de competência, estabelecer limites ao poder tributário de cada político, individualmente considerado, de modo a evitar arbitrariedades sobre o patrimônio privado.

Diante do trato detalhista do Constituinte, resta averiguar se teria o mesmo laborado em vão ao conferir ao legislador complementar competência para estabelecer normas gerais em matéria tributária, especificamente, no que se refere à base de cálculo dos impostos discriminados na Lei Maior, conforme dispõe seu art. 146.

Poderia entender-se, partindo-se da já referida interpretação literal, que o legislador complementar estaria livre para fixar a base de cálculo dos impostos previstos na Constituição, de acordo com sua própria vontade, matéria esta que teria sido conferida pelo Poder Constituinte para ser exercitada em toda sua plenitude. Tal entendimento, contudo, não se coaduna com o teor das regras de competência, as quais, ainda que implicitamente, delimitam a base de cálculo praticável, restringindo a atuação do legislador complementar.

Diante do exposto, pergunta-se, então, qual seria o papel a ser cumprido pelas normas gerais de direito tributário, veiculadas por lei complementar? Pode ser invocada para solucionar tal questionamento a opinião que vislumbra na lei complementar unicamente a função de estabelecer normas gerais em matéria tributária que disponham sobre conflitos de competência entre as entidades tributantes, bem como

para regular as limitações constitucionais ao Poder de Tributar210, embora tal entendimento preocupe-se apenas com os Princípios Federativo e da Autonomia Municipal, não se referindo aos direitos individuais dos contribuintes.

Desse modo, ao legislador complementar seria lícito dispor sobre a base de cálculo, unicamente, no pressuposto de que o faça para dispor sobre conflitos de competência ou para regular as limitações constitucionais do poder de tributar. Fora desses casos, apenas poderá a lei complementar explicitar o que na Constituição encontra-se subentendido, sem nada acrescer ou retirar. Como assevera Sacha Calmon Navarro Coelho, o fundamento de validez das normas gerais de Direito Tributário é a própria Constituição Federal.211

Contrariando o entendimento acima exposto, entende-se que a tese restritiva da lei complementar, relativamente às normas gerais em matéria tributária, não prosperou.212 No mesmo sentido, Ives Gandra Martins salienta que a Constituição de 1988 eliminou, de vez, as dúvidas que pairavam sobre o espectro de atuação da lei complementar, já que a concepção da tríplice função da lei complementar foi expressamente contemplada em seu artigo 146.213

É possível a terceira função da lei complementar, relacionada ao estabelecimento de normas gerais, desde que se atenha à exata previsão constitucional. Na lição de Luciano Amaro, como a disciplina do “geral” já consta na Constituição, o que faz a lei complementar é, obedecido o quadro constitucional, aumentar o grau de detalhamento dos modelos de tributação criados na Constituição Federal. Assim, a Constituição desenha o perfil dos tributos e a lei complementar adensa os traços gerais.214

Cabe, pois, ao legislador complementar, a singela função de estabelecer a base de cálculo já delimitada na Constituição e, se ousar ser original, poderá acabar

210

CARVALHO, Paulo de Barros: Curso de Direito Tributário. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 208.

211

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro: Curso de Direito Tributário brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 107.

212

DENARI, Zelmo: Curso de Direito Tributário. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 144.

213

MARTINS, Ives Gandra: Sistema Tributário na Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 82.

214

ultrapassando as barreiras constitucionais, terminando por assistir inerte à derrocada do ato produzido, fulminado pelo vício de inconstitucionalidade.

A cláusula que estabelece normas gerais, voltadas à definição dos tributos, suas espécies, bem como, em relação aos impostos próprios, à definição dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes, por si, não abriga o entendimento de que a legislação complementar poderá interferir em previsões constitucionais especificamente voltadas para a regulação dessas matérias, alterando-as, indiscriminadamente, quanto ao seu conteúdo.215

Nesse contexto, não há como se aceitar a exegese meramente literal do art. 146 da Constituição Federal para se admitir que o Congresso Nacional possa, a título de dispor sobre normas gerais de direito tributário, redefinir o que foi exaustivamente delimitado pelo Constituinte no próprio texto constitucional como é o caso da definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados na Constituição, da definição dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes.

Assevera Clélio Chiesa que o art. 146 da Constituição não pode ser interpretado literalmente, para que o exegeta não venha a se deparar com um obstáculo intransponível, consistente na impossibilidade de compatibilizá-lo com as demais diretrizes tributárias contempladas pelo texto constitucional. Não haveria, assim, como compatibilizar a faculdade concedida ao Congresso Nacional no art. 146 da Constituição, para a definição por lei complementar dos fatos geradores e as bases de cálculo dos impostos com as próprias normas contidas no texto constitucional que já definem expressamente os fatos geradores dos impostos e os limites das bases de cálculo, vedando-se ao legislador infraconstitucional redefini-los.216

O constituinte não criou preceitos antagônicos que se anulariam. Não se pode conceber, desse modo, que o constituinte tenha preocupado-se tanto em estruturar, de forma detalhada, as balizas fundamentais do sistema tributário para, depois, colocar

215

BATALHA, Célio de Freitas: “Lei complementar em matéria tributária” In Revista de Direito

Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, a. 13, n. 49, jul-set, 1989, p. 126.

216

CHIESA, Clélio: “ICMS incidente na aquisição de bens ou mercadorias importadas do exterior e contratação de serviços no exterior – inovações introduzidas pela EC 33/2001” In ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.): O ICMS e a EC 33. São Paulo: Dialética, 2002, p. 26.

tudo por terra, conferindo ao legislador infraconstitucional a possibilidade de refazer tudo aquilo que cuidadosamente disciplinou no próprio texto constitucional, como a definição dos fatos geradores e a possível configuração das bases de cálculo.