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Limites constitucionais à alteração da base de cálculo

I. DIREITOS FUNDAMENTAIS E TRIBUTAÇÃO

1.4 Base de cálculo e os limites ao Poder de Reforma Constitucional

1.4.2 Limites constitucionais à alteração da base de cálculo

Sustenta-se que os limites impostos ao exercício do Poder de Tributar se dirigem exclusivamente aos sujeitos ativos desse poder, nos respectivos âmbitos de competência: União, Estados, Distrito Federal e Municípios, não se destinando ao Poder de Reforma Constitucional, que se caracterizaria por ser um poder extraordinário.103

O Poder Constituinte derivado, contudo, deve sempre agir com cautela no manejo das emendas constitucionais, só podendo laborar no espaço permitido pelo Constituinte originário. Tal margem de liberdade não abrange matérias reputadas decisões fundamentais do Poder Constituinte originário, entre elas, a carga tributária que previu.

A Assembléia Constituinte em 1988 optou por tratar a matéria tributária com extrema minúcia, na medida em que desenhou uma estrutura detalhada, informando quais as características do sistema constitucional tributário, entre elas os princípios gerais e os específicos, além das regras-matrizes dos tributos. Observa Marcelo Viana Salomão que o detalhamento constitucional do sistema tributário só se justifica por uma razão: aumentar a segurança do cidadão, no sentido de deixar cristalinas suas garantias enquanto contribuinte, evidenciando que é o sistema constitucional que estruturará toda a tributação no Brasil, razão pela qual não pode ser alterado por nenhuma lei, nem por emenda constitucional, no que pertine aos princípios e regras-matrizes.104

Os direitos fundamentais, decorrentes do Princípio da Segurança Jurídica e do Princípio da Capacidade Contributiva, encontrados no sistema tributário constitucional estão incluídos no âmbito de proteção das “cláusulas pétreas”. A carga tributária fixada pelo Poder Constituinte originário não pode ser agravada, ainda que reflexamente, por meio de emenda constitucional que altere irrazoavelmente os aspectos da regra-matriz constitucional fixados nas regras constitucionais de competência tributária, exacerbando a carga tributária.

103

NOVELLI, Flávio Bauer: “Norma constitucional inconstitucional?”. In Revista de direito

administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, v. 1, n. 199, jan-mar, 1995, p. 42.

104

SALOMÃO, Marcelo Viana: “O ICMS na importação após a Emenda Constitucional nº 33/2001”. In ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.): O ICMS e a EC 33. São Paulo: Dialética, 2002, p. 157.

Assinala Clélio Chiesa que as regras de competência tributária, incluída a norma estabelecida no art. 154 da Constituição, que fixa as normas para o exercício da competência residual da União, encerram o sistema constitucional tributário brasileiro, constituindo, pois, diretriz fundamental para todo o sistema, não podendo ser eliminada ou restringida por emenda à Constituição, diretriz esta que confere maior eficácia aos princípios da Capacidade Contributiva, ao que assegura o direito de propriedade e ao que veda a instituição de tributos com efeito de confisco. Integra, assim, o conjunto de direitos e garantias asseguradas ao cidadão em matéria tributária e, como tal, não pode ser amesquinhada nem mesmo por emenda.105

Saliente-se, contudo, que não está vedada a alteração dos aspectos constitucionais da regra-matriz de incidência a serem observados pelo legislador tributário. Esta é permitida, desde que não torne mais pesada ou desproporcional a carga imposta pelo Constituinte originário.

Os limites do poder de emenda não são em absoluto transgredidos tão somente porque se dá às matérias postas ao abrigo daqueles limites uma disciplina diversa. Tais limites propriamente não se transgridem, senão quando a modificação ou a restrição trazida pela emenda terminar por atingir o cerne, o conteúdo essencial dos interesses, valores ou princípios tutelados. Foi isso o que o Poder Constituinte quis dizer ao utilizar no art. 60, § 4º, a expressão “tendente a abolir”. Em suma, a inviolabilidade dos direitos fundamentais não significa, desenganadamente, pura e simples imodificabilidade ou uma “imendabilidade”.

Permitem-se, portanto, modificações nas regras de competência tributária e, conseqüentemente, na base de cálculo nelas subentendidas, desde que atendidos dois pressupostos: (a) que não se configure uma sobrecarga tributária, arbitrária, dissonante daquela na redação originária da Constituição, privilegiando-se, assim, a segurança jurídica e (b) que tais alterações se atenham aos fatos-signos presuntivos de riqueza eleitos pelo Poder Constituinte originário, de modo a respeitar a capacidade contributiva do cidadão já projetada quando da elaboração da Constituição.

105

CHIESA, Clélio: “ICMS incidente na aquisição de bens ou mercadorias importadas do exterior e contratação de serviços no exterior – inovações introduzidas pela EC 33/2001”. In ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.): O ICMS e a EC 33. São Paulo: Dialética, 2002, p. 17.

A base de cálculo do ICMS, por sua vez, apenas poderá corresponder a uma medida das “operações de circulação de mercadorias e serviços”, que, como já observado, não poderia ser outra senão seu valor. Qualquer elemento estranho a tal valor, se onerar ainda mais a carga tributária ou destoar da referida materialidade, não denotando capacidade contributiva, será considerado inconstitucional, passível de ser afastado em sede de controle de constitucionalidade.

A possibilidade de alcance pelas “cláusulas pétreas” do Princípio da Segurança Jurídica e do Princípio da Capacidade Contributiva que, conforme foi defendido, encerram direitos fundamentais, a abrangência destas cláusulas de rigidez absoluta previstas no art. 60, § 4º da Carta Magna, depende de atividade interpretativa. É, pois, matéria deixada à tarefa de concretização.106

A discussão ora levantada sobre a impossibilidade de alteração da carga tributária prevista pelo Poder Constituinte originário suscita a questão de saber se o Poder Constituinte derivado poderia, através de emenda, ampliar as competências dos Estados e Municípios estabelecendo novos impostos além daqueles já fixados pelo constituinte de 1988. A questão merece ser comentada, uma vez que o aumento da carga tributária pode decorrer não apenas da ampliação da base de cálculo ou do aumento das alíquotas, mas, também, da criação de novos impostos.

Ficaram estabelecidas pelo Poder Constituinte originário as competências tributárias de cada ente político, havendo sido atribuído unicamente à União uma competência residual para instituir impostos outros, desde que não tenham fato gerador e base de cálculo próprios dos impostos constitucionalmente discriminados. No que tange à competência dos Estados e Municípios, não há abertura na Constituição Federal para a instituição de novos impostos além daqueles cuja competência lhes foi outorgada pelo Constituinte originário. Não poderia, pois, o Poder Constituinte derivado alargar a outorga de competência constitucional dos Estados e Municípios aumentando ainda mais a carga tributária imposta ao contribuinte.

Assinala Clélio Chiesa que o art. 155 da Constituição assegura ao contribuinte o direito subjetivo de somente ser tributado pelos Estados-membros e

106

MARTINS NETO, João dos Passos: Direitos fundamentais. Conceito, função e tipos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 93.

Distrito Federal por meio de impostos nele enumerados. A competência para a instituição de novos impostos é apenas da União.

Ao Poder Constituinte derivado é conferida apenas a faculdade de alterar as normas constitucionais de tributação desde que reste intacta a carga tributária prevista pelo constituinte originário, como se deu na Emenda 42/2003, que permitiu a transferência da capacidade tributária da União para os Municípios, no que tange à cobrança do Imposto Territorial Rural, conforme nova redação do art. 153, § 4º, da Constituição, sem com isso aumentar o ônus tributário imposto ao contribuinte.

A intangibilidade das matérias protegidas pelas “cláusulas pétreas” decorre da própria natureza da Constituição que possui vocação de permanência e estabilidade, em contraste com a mutabilidade da legislação ordinária.107

Na medida em que a Constituição configura um sistema inteiro que nela se baseia, possui uma pretensão de durabilidade que lhe assegura uma superioridade sobre as normas ordinárias carentes de uma intenção tão relevante.108

A estabilidade e a razoabilidade são pressupostos fundamentais para que o direito seja certo e justo. Embora se admita uma mutabilidade na Constituição, deve-se privilegiar a segurança jurídica, a justiça e a igualdade. Tal resguardo encontra-se disposto nas “cláusulas pétreas”.

107

BARROSO, Luís Roberto: Interpretação e aplicação da Constituição. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 161.

108

GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo: La Constitucion como norma y el Trbunal Constitucional. 7ª ed. Madrid: Civitas, 1991, p. 50.