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Leis e decretos pós-consolidação da Constituinte

No documento PolíticaPúblicaAções (páginas 89-93)

CAPÍTULO II POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A POPULAÇÃO NEGRA: QUESTÕES

2.4 Leis e decretos pós-consolidação da Constituinte

A CF/88 inaugura um novo momento histórico no Brasil, as leis aprovadas após tor- nam-se marcos democráticos e têm como função a organização social. Anteriormente, tam- bém existia essa definição, contudo as leis adotadas após a constituinte estão presentes no período democrático e de certa forma representam os anseios de diversas frações da socieda- de. Até o momento, ainda não se considera a existência de ações afirmativas para a população negra, mas ao contrário, a punição se faz presente no legislativo. A punição é vista aqui como forma de dominação, controle e criação de um novo ideal por parte do Estado.

O método de punição adotada pelo Estado está organizado e delimitado no Código Pe- nal Brasileiro, datado de 1940. É através desse aparelho de repressão que o Estado pune quem não age de acordo com os padrões e normas morais estabelecidas pelo grupo hegemônico dominante. Para Antônio Gramsci (2011, p.28) “o direito será o instrumento para esta finali- dade (ao lado da escola e de outras instituições e atividades) e deve ser elaborado para ficar conforme a tal finalidade, ser maximamente eficaz e produtor de resultados positivos”. Se visualizarmos o Direito e o Código Penal, exclusivamente com punição perdemos a noção do controle e criação, o “Estado deve ser concebido como „educador‟ na medida em que tende precisamente a criar um novo tipo nível de civilização” (2011, p.28).

O direito, as leis, o Código Penal, a Constituição fazem parte do que Mendonça (1996) chama de “rede de agências e agentes especializados” (p.105) na dominação, controle e punição que são portadores da autoridade máxima, assumindo a posição do Estado. Tais agentes promovem a ordem, as “conquistas” obtidas pelos movimentos e grupos sociais e raciais, como a criminalização do racismo, se inserem nessa rede que deverá atuar no com- primento dessas leis. Assim, o Estado “educa”, disciplinando comportamentos. O Direito e o Código Penal possuem uma diversidade de significados, entre eles a punição e também a im- posição para a criação de novos valores, legitimando uma nova visão do social. O Direito é uma forma de educação e o ato de criminalizar o racismo indica uma destas formas.

Um dos passos importante é a alteração no Artigo 140 do Código Penal66, que define

os crimes de injúria, com a inclusão do § (parágrafo) 3 onde se lê “Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem. Pena: reclusão de um a três anos e multa” (BRASIL, 1997). A nova redação do Código Penal datada por meio da lei 9.459, de 13 de maio de 1997 determina no que consiste a injúria racial e outras, além de es- pecificar a pena a ser cumprida em caso de condenação. Interessante perceber que o Código data de 1940, mas a nova redação é de 1997, sendo que a CF/88 já havia indicações da crimi- nalização do racismo, conforme Art. 5º Inciso XLII – “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei” (BRASIL, 1988). Nesse meio foi criado e aprovado a lei n° 7.716 de 05 de janeiro de 1989 ratificando o que havia sido determinado pela CF/88. A lei de autoria do Deputado Carlos Alberto Caó Oliveira dos Santos67 intelectual orgânico representante dos movimentos negros previa os crimes resul-

tantes de preconceito de raça ou cor e torna-se uma das principais leis de criminalização do racismo após aprovação da Constituinte.

Pelo direito, torna-se então, delito passível de penalização os atos motivados pela injú- ria racial e também pelo racismo. Cabe fazer uma breve reflexão sobre a diferença entre am-

66 Lei 9.459, de 13 de maio de 1997. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9459.htm .

Acesso em 11.04.2017.

67 Carlos Alberto Caó Oliveira dos Santos, sua trajetória política é marcada para participação de movimentos

sociais e estudantis. Formado em direito e exercendo a profissão de jornalista. Filiado ao Partido Democrático Brasileiro (PDT) candidatou-se a eleições em 1982, tornando-se suplemente na Câmara dos Deputados. Foi um dos poucos parlamentares negros a participar da ANC e da elaboração da nova Constituição. Consagrou-se com a provação e regulamentação da Lei Caó que tornou a prática do racismo como crime inafiançável e imprescrití- vel, além de sujeição a pena de reclusão. SANTOS, Carlos Alberto Caó Oliveira dos. Biográfico. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. Disponível em http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete- biografico/carlos-alberto-cao-oliveira-dos-santos Acesso em 11.04.2017.

bas. A injúria, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)68 é o ato de ofensa à honra de

alguém utilizando-se de características próprias e individuais como raça, cor, etnia, religião ou origem, sendo associada em especifico a palavras de baixo calão, associativas ou depreciati- vas, ofendendo diretamente a honra da pessoa. Diferente do racismo, onde o crime está vincu- lado a uma coletividade depreciando a integralidade de toda uma raça, não sendo especifico a um individuo. Assim, a injúria se relaciona com o indivíduo e o racismo à coletividade. Am- bas possuem penas, entretanto o racismo é inafiançável e imprescritível, fazendo com que o crime de injúria seja mais brando e mais fácil de ser identificável e aplicado.

Entre o Código Penal e a Criminalização do racismo, aproximadamente 50 anos se passaram. Durante esse período somente a Lei Afonso Arinos (1951) propunha enfrentar o problema da discriminação racial no Brasil, e como refletimos no capítulo anterior, ela não teve o efeito esperado, pois os valores sociais e políticos da época não se alteraram substanci- almente. Mesmo que as ações dos movimentos negros persistissem, ainda assim as transfor- mações no modo de vida desses atores sociais eram mínimas, permanecendo os valores do grupo dominante.

A lacuna presente no processo histórico nos permite inferir sobre a realidade da popu- lação negra no Brasil, que durante esse período não foi objeto da criação de políticas e leis que garantissem seus direitos como cidadãos, ou que mudasse os valores vinculados a eles, sendo, portanto, deixados à margem pelo poder político nacional. Jaccoud (2009) utiliza-se das análises de Barbosa (2001) para refletir sobre como a legislação existente até meados da década de 1990 que pune os resultados da discriminação, afetando minimamente as suas cau- sas, portanto ela não gera ações afirmativas, pois não descontrói os conceitos e ideais hege- mônicos presentes na sociedade como preconceito, intolerância e desigualdade racial. Assim, as leis instituídas nesse processo acabam por deixar

[...] intocada a forma mais eficaz e difundida de discriminação: aquela que opera não por injúria ou atos expressos de exclusão, mas por mecanismos su- tis e dissimulados de tratamento desigual. A chamada discriminação indireta largamente exercida sob o manto de práticas institucionais, atua também nas políticas públicas por meio da distribuição desigual de benefícios e serviços. (BARBOSA, 2001, apud JACCOUD, 2009, p.31)

A discriminação e desigualdade racial podem ser em parte combatidas pelas leis que punem e controlam a sociedade, entretanto não conseguem diretamente eliminar todas as for- mas de preconceito racial, pois existe socialmente uma imagem inferiorizada da raça negra,

68 Conheça a diferença entre racismo e injúria racial. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em

http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/79571-conheca-a-diferenca-entre-racismo-e-injuria-racial Acesso em 11.04.2017.

construída historicamente por ideologias e práticas excludentes; é preciso uma (re)construção dos valores sociais e culturais para que essa prática seja eliminada. Historicamente, se cons- truiu uma noção de que a raça negra possui baixa intelectualidade, além de características degenerativas. Tal ideologia foi difundida pelos estudiosos e cientistas69 do inicio do século

XX, e legitimada pelo Estado, criando estruturas ideológicas que demarcaram o espaço, o conceito e também a trajetória destes na sociedade brasileira, levando a permanência de práti- cas excludentes e contínuas, ruidosas, naturalizadas e arraigadas, que acontecem no cotidiano da sociedade, o que Barbosa (2001) aponta como sendo sutis e dissimuladas.

Outro ponto importante é sobre a discriminação indireta apontada pelo autor, difícil de ser identificada por ser aparentemente neutra e inofensiva, estando presente tanto na socieda- de política quanto na sociedade civil, levando a exclusão de direitos e desigualdade racial. Tais práticas acontecem no interior das instituições governamentais promovendo desvantagem que acaba por trazer consequências nefastas afetando os direitos das pessoas.

Uma das formas adotadas pelo Estado para combater a discriminação indireta nas ins- tituições foi o estabelecimento da Lei nº 9.029, de 1995, assinada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, proibindo as práticas discriminatórias nos processos de admissão no traba- lho. Conforme o Artigo 1 atesta

É proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilita- ção profissional, idade, entre outros, ressalvadas, nesse caso, as hipóteses de proteção à criança e ao adolescente previstas no inciso XXXIII do art. 7o da

Constituição Federal 70.

Essa lei, adotada no ano de 1995 proíbe qualquer forma de discriminação nas relações de trabalho por uma diversidade de motivos, inclusive a raça. Tais práticas são consideradas crimes e possuem pena de detenção à pagamento de multa. A aprovação e assinatura da lei está nos processos de punição adotados pelo Estado, ainda não constitui ações afirmativas, ou seja, melhoria da qualidade de vida e promoção no trabalho para a população negra. Ela é um passo em favor de mudanças na estrutura da política nacional por meio do reconhecimento de que existe uma discriminação por racial nos processos de admissão nas empresas publicas e privadas.

69 Ver: DIWAN, Pietra. Raça Pura. Uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto, 2014.

SANTOS, Ricardo Augusto dos. Os intelectuais e a eugenia. I Seminário nacional sociologia & política: Uni- versidade Federal do Paraná, 2009. Disponível em:

http://www.humanas.ufpr.br/site/evento/SociologiaPolitica/GTs-ONLINE/GT6%20online/EixoI/intelectuais- eugenia-RicardoSantos.pdf Acesso em 05.11.2017.

70 Lei n°9.029 de 13 de abril de 1995. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9029.HTM

A aprovação da lei aconteceu meses antes da organização da Marcha Contra o Racis- mo pela Igualdade e a Vida, em novembro de 1995, no mesmo ano foi assinado o Decreto presidencial71que alterava a CF/88. No “Artigo 1: Fica instituído Grupo de Trabalho Intermi- nisterial com a finalidade de desenvolver políticas para a valorização da População Negra”72.

Esse decreto é a primeira ação afirmativa que tinha como objetivo desenvolver políticas pú- blicas de valorização da população negra. O conceito “valor” aparece pela primeira vez em uma lei advinda do Estado, indicando a necessidade de descontruir as estruturas ideológicas presentes até o momento. Percebemos a indicação, mas não a efetivação dessa desconstrução.

Durante a década de 1990, várias ações levaram à assinatura desse decreto, entre elas duas em âmbito nacional, como o Seminário “Multiculturalismo e Racismo: o papel da ação afirmativa nos estados democráticos contemporâneos” promovido pelo governo federal em 1996 e a Marcha Zumbi em 1995. Com a CF/88 temos a inclusão das questões raciais, mesmo que de forma incipiente, mas não menos importante para que ocorra, no futuro, a realização e implementação de ações afirmativas no país.

No documento PolíticaPúblicaAções (páginas 89-93)