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A questão racial: ações municipais

No documento PolíticaPúblicaAções (páginas 75-80)

CAPÍTULO II POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A POPULAÇÃO NEGRA: QUESTÕES

2.2 A questão racial: ações municipais

O primeiro governo do prefeito Zaire Rezende foi marcado pelo planejamento de suas ações, que estavam presentes “Proposta para a Ação do Governo Municipal” onde ele delimi- ta quais seriam os seus principais pilares. O então prefeito assume as tarefas junto com o seu partido, ou seja, ele fala em nome do partido e não das suas intenções próprias, dentre os prin- cípios e objetivos do PMDB era “o governo do município deve estar voltado para todos os uberlandenses, sem qualquer tipo de discriminação. Considerar-se-á, contudo, pela relativa escassez de recurso, as prioridades estabelecidas nos planos de governo” (PROPOSTA PARA A AÇÃO DO GOVERNO MUNICIPAL, 1983).

Uma das prioridades era justamente um governo sem qualquer tipo de discriminação, isso não significa igualdade, mas são intenções, mesmo que incipientes, que apresenta indí- cios de um combate a toda forma de exclusão. Um destes pode ser visto, com a assinatura da Lei Municipal nº 4.744, de 05 de julho de 198853, que institui o Código Municipal de Posturas

da cidade de Uberlândia, assinada pelo prefeito Zaire Rezende. Possui 240 artigos que estabe- lece um conjunto de normas municipais, de interesse local e referente à utilização do espaço público, do funcionamento de estabelecimentos, higiene e ao sossego público. Essa lei torna- se uma das primeiras a incluir o termo raça na esfera política. Ela ainda não é uma ação afir- mativa, mas existem indícios de uma reflexão por parte do governo municipal sobre a ques- tão. No capítulo IX, de Título Dos elevadores, artigo 171 consta

É vedada a restrição de acesso de pessoas às unidades de edifícios de qual- quer natureza mediante discriminação do uso de entradas, elevadores e esca-

53 Código de Posturas. Disponível em https://leismunicipais.com.br/codigo-de-posturas-uberlandia-mg Acesso

das dos prédios, em virtude de raça, cor ou condição social (CÓDIGO DE POSTURAS, 1988)

Entre os 240 artigos, somente em um deles aparece o termo raça e cor, onde se proíbe a discriminação nos espaços privados, ou seja, não poderia proibir a entrada de pessoas nesses lugares, independente da sua condição social ou racial, permitindo a circulação em qualquer ambiente. O Código de Posturas dá indícios de um combate à discriminação indireta, mas de forma muito incipiente, pois em todos os seus artigos, somente um aponta sobre a discrimina- ção, levando ao entendimento de que na cidade não havia exclusão racial, e que todos tinham o direito e ir e vir garantido.

Percebemos, pelo Código, que o ideal de democracia racial se fazia presente na esfera política institucional uberlandense, necessitado, então, de ações políticas do município para combater o preconceito e a discriminação racial. Em 1988 já existia a atuação do Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra e provavelmente a atua- ção deles proporcionou a inclusão desse artigo.

O historiador Júlio César de Oliveira (2012)54 aponta que Uberlândia é marcada por excluir negros e descendentes de alguns dos espaços físicos da cidade, algo que não ocorreu somente na região, mas no país como um todo. De acordo com ele, diversos estabelecimentos comerciais localizados na Avenida Afonso Pena, no centro, eram conhecidos por não atende- rem negros durante as décadas de 1940 a 1960, como bares, lojas e clubes. Nos depoimentos colhidos pelo autor, a narração do senhor Lotinho, evidencia a exclusão racial. O senhor Ar- lindo de Oliveira Filho, conhecido como mestre Lotinho foi entrevistado por Oliveira no ano de 1997, com então 64 anos. Ao receber o convite para animar as festas no clube na década de 1950, ele responde “Mas vocês não aceitam negro lá! Olha lá, hein? A gente vai sofrer desfei- ta lá!” (2012, p.80). O convite foi aceito e ele tornou-se o primeiro negro a cantar no clube. Ao mesmo tempo, isso se tornou uma conquista, Lotinho também reclama que foi hostilizado por outros companheiros da comunidade negra, ele diz que “[...] uma porção de crioulo ficou com raiva e diziam o seguinte: „ficou lá com aquele povo metido. Você vai continuar a cantar para aquele povo? Olha lá esse negro metido a cantor do Uberlândia Clube‟” (2012, p.81). Tanto o convite como o aceite de Lotinho, foram para a época importantes para a valorização do negro, quebra de paradigmas e diminuição do preconceito racial. Para o autor, esse precon- ceito era “como uma nódoa, saía dos clubes, bares, cinemas e lares e estendia-se pela avenida da cidade, Afonso Pena [...]” (2012, p.21).

54 OLIVEIRA, Júlio César de. Ontem ao Luar: o cotidiano boêmio da cidade de Uberlândia (MG) nas déca-

O Código de Posturas, em 1988, propõe uma tentativa, de eliminar os resquícios dessa prática, tanto que somente o Capítulo com o Título Elevadores que aparece com essa restri- ção. Existe uma dubiedade no código ao mesmo tempo que restringe a discriminação, ele também afirma a existência dela; ele promove a presença do negro nesses espaços, mas não determina a obrigatoriedade do cumprimento desse ato; possuindo características diversas ao mesmo tempo.

Diferente do Código de Posturas, a Lei Orgânica Municipal de 05 de junho 1990, as- sinada no governo do Prefeito Virgílio Galassi (1989 e 1992) insere o debate racial e cria uma das primeiras estratégias de ações afirmativas no município. Não sabemos ao certo, se o Con- selho ainda permanecia atuante durante o governo do prefeito do PMDB, mas a aprovação do Artigo 165 na Lei Orgânica Municipal evidencia que a atuação dos grupos negros institucio- nalizados na cidade se fazia presente.

No capítulo IV de Título Educação, Artigo 165 apresenta

Os Poderes Públicos Municipais adotarão todas as medidas necessárias para coibir prática do racismo, crime imprescritível e inafiançável, sujeito a pena de reclusão, nos termos da Constituição da República, onde o combate às formas de discriminação racial pelos Poderes Públicos Municipais compre- enderá:

I - a proposta de revisão dos livros didáticos dos textos adotados e das práti- cas pedagógicas utilizadas na rede municipal, visando eliminação de estereó- tipos racistas;

II - o estudo da cultura afro-brasileira será contemplado no conteúdo pro- gramático das escolas municipais;

III - a formação e reciclagem dos professores de modo a habilitá-los para a remoção das ideias e práticas racistas nas escolas municipais e para a criação de uma nova imagem das crianças e dos adolescentes negros, bem como da mulher;

IV - os cursos de aperfeiçoamento do servidor público incluirão, nos seus programas, disciplinas que valorizem a participação dos negros na formação histórica e cultural da sociedade brasileira;

V - a liberdade de expressão e manifestação das religiões afro-brasileiras; VI - a criação e divulgação de programas educativos nos meios de comuni- cação de propriedade do Município ou em espaços por ele utilizados na ini- ciativa privada, visando o fim de todas as formas de discriminação racial. (LEI ORGÂNICA DO MUNICÍPIO DE UBERLÂNDIA, 1990)

O Artigo 165 determina não somente princípios punitivos para prática de crimes de ra- cismo, mas propõe ações para a desconstrução dele, objetivando gerar no futuro uma trans- formação ideológica e social. Em efeito a Lei Orgânica torna-se a primeira ação afirmativa local, com o viés de política pública para a eliminação do preconceito e discriminação racial, promovendo assim a igualdade. Fato que acontece antes mesmo da Lei 10.639/03 que obriga o ensino de História e Cultura africana e afro-brasileira em todos os estabelecimentos de ensi- no público e privado, gerando destaque para a cidade por incluir a questão racial em suas leis.

A proposta advinda do Estado (instância municipal) é incluir nas escolas municipais o estudo da cultura afro-brasileira, além de cursos de reciclagem aos professores, no intuito de prepará-los para o ensino desse conteúdo. Os professores ficariam responsáveis por descon- truir o conceito de racismo, discriminação e preconceito criando assim outra visão do negro na sociedade, valorizando os seus traços e características físicas, “visando o fim de todas as formas de discriminação racial”.

De importância significativa para a sociedade e para os movimentos negros, o Art.165 seria um compromisso assumido pelo Estado, representado pela sociedade política, e a toda a população uberlandense, em especial os afetados diretamente por ela. Contudo, nos questio- namos se essa determinação realmente se efetivou e como ela ocorreu nas escolas e qual foi a receptividade dos professores, diretores e alunos. Interessante é que durante nossas pesquisas nas fontes não encontramos nenhuma indicação do que mudou, e se realmente mudou. Pode- mos inferir que a lei pode ser chamada de “lei para inglês ver”, ou seja, acontece no papel, mas não se efetiva na sociedade, promovendo transformações sobre a representação do negro no social. Apesar de ser um marco para a cidade e de demonstrar a inserção do tema na agen- da pública local, ainda sim, encontramos problemas relacionados à sua aplicação, em ordem prática.

A criação do artigo demonstra também a atuação dos movimentos e grupos negros or- ganizados na cidade, pois a proposta advém do professor e vereador eleito Izaías Alves Ferrei- ra. Natural da cidade de São Gotardo em Minas Gerais. Ele como representante do movimen- to negro participou da elaboração da Lei Orgânica propondo a inclusão da temática na lei mu- nicipal. Subentende-se que sua formação docente poderia ter influenciado na criação do arti- go, além dos anseios dos grupos que ele representava.

A troca de prefeitos proporcionou mais uma vitória para os movimentos negros, no ano de 1993, na gestão do prefeito Paulo Ferolla, representante do Partido Trabalhista Brasi- leiro (PTB), foi criada a Seção Afro-brasileira (conhecida também como Pasta Afro), vincula- da a Secretaria Municipal de Cultura. Para o sociólogo Barbosa (2014) a criação de uma pasta voltada para as questões raciais na década de 1990 somente aconteceu após pressões dos par- ticipantes diretos do movimento negro que, após as eleições, se reuniram e elaboraram um documento a ser enviado ao futuro prefeito com reivindicações do grupo, além da indicação de “seis (06) nomes de lideranças do movimento negro para que o vitorioso prefeito nas elei- ções daquele ano escolhesse um deles e nomeasse como Direito” (2014, p.146).

A Pasta Afro surge de pressões externas ao governo municipal, advindas do próprio movimento negro que, na tentativa de se manter dentro da sociedade política, envia um do-

cumento pressionando o prefeito a nomear alguém previamente escolhido. Neste ponto nos questionamos sobre a escolha de candidatos para liderar a seção e as relações de força presen- tes nela. Os representantes do “povo” nomeados ou eleitos fazem parte do que Mendonça (1996) aponta como microcosmo burocrático, que são sujeitos que alternam de sociedade, ou seja, deixam a civil e adentram a política e se sentem dotados de poder superior passando a atuar como autoridades legítimas do estado “monopolizando a verdade coletiva” (1996, p.105), na promoção dos seus interesses, às vezes de cunho pessoal.

Ademais, há que levar em conta que, uma vez integrados ao Estado- aparelho, os funcionários encontram-se em posição de potenciais usurpado- res/deturpadores do poder originalmente a eles conferido pelo grupo por eles (supostamente) representado. Tenderão, assim, para além de “representa- rem”, a se auto-consagrarem, preservando um poder que é inerente ao cargo e não a relação de representação (MENDONÇA, 1996, p. 105 e 106).

É necessário perceber como a criação de pastas e coordenadorias afro-raciais estão in- seridas nesse contexto do microcosmo burocrático e político. A pressão exercida com a esco- lha pré-determinada de pessoas para a liderança da Pasta Afro aponta justamente para a manu- tenção do poder e “a relação de representação”. O nome escolhido para ocupar a posição pri- vilegiada foi um dos fundadores do MONUVA, Valter José Prata (Mestre Capela), que em sua posse, proclamou que

Pela primeira vez, de forma solene, o município de Uberlândia abre um es- paço, introduzindo em seus quadros, um departamento exclusivo para cultura afro-brasileira e suas formas de manifestação na sociedade. [...] Dentro de minhas limitações, terei pela frente duas metas, uma genérica que é, através da Secretaria Municipal de Cultura ser o elo de ligação entre os homens de cor e o poder público, outra específica que é unir todos os grupos culturais afro-brasileiros de Uberlândia, em torno de um melhor serviço à comunida- de, oferecendo bons espetáculos culturais e recapturando para a memória da cidade, toda a beleza de nosso folclore (apud SANTOS, 2010, p.120)55

Ao ser nomeado para a Pasta Afro, Valter José Prata, exibe um discurso projetista de uma ação conjunta com poder público municipal, prometendo ser uma ligação para a união de todos os movimentos negros da cidade trazendo uma perspectiva folclorista, baseando-se no senso comum de que o espaço onde o negro se fazia presente era somente o cultural. Sendo assim, compreendemos que a ação da Pasta estava voltada ao movimento cultural da cidade, talvez devido a liderança ter uma ligação direta com o carnaval. Mantem-se aqui a folcloriza- ção das práticas culturais do negro, faltando uma expansão para questões mais de ordem polí- tica, como a promoção da igualdade e a diminuição do preconceito racial.

55 SANTOS, FERNANDA. Luta e tensão social na imprensa uberlandense: Experiências do negro nas décadas

finais do século XX. Revista Fato&Versões. n° 3 v. 2, 2010. Disponível em: https://www.catolicaonline.com.br/fatoeversoes . Acesso em 01.03.2017

Concordamos com Barbosa (2014) ao dizer que esse órgão “não passou de espaço de cultura folclorista. Instalada numa mesinha dentro da Secretaria da Cultura, a Seção Afro- brasileira não teve sequer uma sala no prédio público e tampouco a adoção de orçamentária própria” (2014, p.146). A Pasta Afro não tinha poder político efetivo, tornando-se assim uma estratégia adotada pelo poder público municipal para ludibriar os movimentos negros presen- tes na cidade.

Muitas mudanças na sociedade política municipal não interferiram no modo de vida dos atores sociais participantes da sociedade civil. Ao ler as fontes percebemos que havia um jogo político onde os envolvidos, em especial lideranças, tinha conhecimento das ações, mas os outros não participantes ignoravam completamente a questão. Continuavam criando estra- tégias de sobrevivências no seu cotidiano. A discriminação, o preconceito racial e o racismo ainda se faziam presentes e atingiam com intensidade aqueles que desconheciam as leis e normatizações definidas pelo Estado. Tais políticas somente irão interferir na vida desses su- jeitos anos posteriores com as ações afirmativas propriamente ditas, de caráter reparatório e compensativo.

No documento PolíticaPúblicaAções (páginas 75-80)