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Corre a missa. De repente, uma troca de olhares, um rápido desvio do rosto, o coração aflito, a respiração arfante, o desejo abrasa o corpo. Que fazer? Acompanhada dos pais, cercada de irmãos e criadas, nada podia fazer, exceto esperar. Esperar que o belo rapaz fosse bem-intencionado, que tomasse a iniciativa da corte e se comportasse de acordo com as regras da moral e dos bons costumes, sob o indispensável consentimento paterno e aos olhos atento de uma tia ou de uma criada de confiança (de seu pai, naturalmente).342

Isso era o que se esperava de todas as moças, independente de classe social. No entanto, as coisas nem sempre aconteceram assim, o “desejo, da mocinha virgem à senhora casada era não raro difícil, de controlar.”343 A vigilância por parte da família, da Igreja e do Estado confluía para o mesmo objetivo:

abafar a sexualidade feminina que, ao rebentar as amarras, ameaçava o equilíbrio doméstico, a segurança do grupo social e a própria ordem das instituições civis e eclesiásticas.”344

O casamento, para a classe dominante, era a única via legítima de união entre um homem e uma mulher, constituindo-se para a mulher no ideal mais elevado de realização. Mesmo não podendo usufruir das regalias à disposição das mulheres abastadas as mulheres pobres deveriam viver de acordo com os padrões ditados por aquelas. Porém, normalmente, as mulheres pobres, trabalhando fora do ambiente doméstico, estabeleciam relações informais com os companheiros e não correspondiam

342

ARAUJO, E. A arte da sedução: Sexualidade feminina na colônia In: PRIORE, M. D. (Org.) História das mulheres no Brasil. São Paulo: UNESP/Contexto, 2002. p. 46.

343

ARAUJO. op. cit. p. 46. 344

aos ideais dominantes de conduta e recato. Chalhoub confirma essa reação da classe trabalhadora que deveria incorporar os valores impostos e os mecanismos de poder, que deveriam controlá-la afirmando que:

Os teóricos da patologia social deram uma contribuição importante ao constatarem que os padrões de comportamento amoroso praticados pela classe trabalhadora não se ajustavam àqueles propalados pela classe dominante. A constatação é essencial na medida em que surge limites claros à possível eficácia dos mecanismos de controle e repressão sexual ativados pelos detentores do poder [...].”345

Se nas camadas sociais mais altas predominava a união pelo casamento, com as bênçãos da Igreja, papéis assinados, mudança do nome da mulher, festejos para amigos e familiares, nas camadas de baixa renda a união formal era menos comum, ocorrendo principalmente a união consensual ou concubinato.346

Tal prática lembra as historiadoras Priore e Soihet, segundo elas “pessoas pobres não se casavam, viviam em concubinato.”

Ariès, ao fazer um estudo sobre as origens do casamento, disse que na antiguidade existiam somente casamentos reais e só para alguns filhos dos poderosos. Era interessante que nem todos os filhos se casassem para não haver a divisão da riqueza e a perda do poder. E também devido à grande mortalidade, havia o interesse de deixar algumas moças e rapazes solteiros que, através de alianças econômicas e para garantir o poder, eram oferecidos em casamento, em caso de necessidade. Ou também para substituir os casamentos estéreis, mantendo assim a aliança e o poder.347

Para a realização desses casamentos, os parentes eram reunidos no quarto do herdeiro, o pai do rapaz pedia a benção de Deus aos futuros nubentes, que já estavam despidos e deitados, sobre a cama. Era uma cerimônia pública e privada acompanhada pelos familiares e testemunhada pela comunidade. A benção realizada pelo pai do rapaz, mais tarde, foi substituída pela figura do padre que abençoava a cama do casal aspergindo água benta sobre ela.348

345

CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim. O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 115.

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Fato percebido nos 40 processos analisados para esta pesquisa e nos outros que foram lidos de décadas anteriores e posteriores. Nas certidões de nascimentos das vítimas/ofendidas, em sua grande maioria aparecem as mães como solteira e assim como a filha tinham pai ignorado. Fato também percebido nos autos de interrogatórios dos réus, muitos deles também declaram desconhecer o progenitor.

347

ARIÈS, P. O casamento indissolúvel. In: ARIÈS, P. & BÉJIN, A. (Orgs.). Sexualidades ocidentais. São Paulo: Brasiliense, 1985.

348 Idem.

Foi a partir do século XII que o casamento deixou de ser um ato doméstico e privado e tornou-se um ato público, diante das Igrejas. A partir dos séculos XIII e XIV é que os padres passaram a ter participação nos casamentos. Nessa época, os pais entregavam a moça ao padre que entregava ao futuro esposo. E entre os séculos XIV e XVI houve a doação mútua entre os nubentes, uma vez que eles passaram a participar da cerimônia comprometendo-se um com o outro “Eu, Fulano, dou a ti, Fulana, meu corpo como esposo e marido.”349 Esse compromisso, para Ariès, era um sinal de mudança da mentalidade da civilização.

A última etapa do casamento, apresentada por Ariès ocorreu no século XVII. Deixou de ser realizado na escadaria das Igrejas, passando para o seu interior. Para a Igreja não era muito importante a cerimônia religiosa. O que interessava era a publicidade do casamento e o registro escrito, numa “concepção de poder e controle.”350 Primeiro a Igreja e depois, a partir do século XVIII, o Estado fizeram com que o casamento entrasse no campo das instituições fundamentais da cultura escrita e do espaço público.351 O que era um costume doméstico passou a ser público, quando a Igreja apropriou-se da cultura da coletividade, normatizando o casamento, tornando-o sagrado e indissolúvel.

Apesar de ser uma exigência do Estado, na região de Guarapuava as pessoas pobres não faziam o registro de nascimento dos filhos. A criança só era batizada, e em alguns casos, bastante tempo após o nascimento, bem como os casamentos no civil. Alguns casais viviam juntos durante muito tempo, para depois se casarem e muitos não chegaram ao casamento legal e religioso.352

Por falta de documentação é que muitos casais, sem recursos financeiros para arcar com as despesas matrimonias, antecipavam a união pelo ato sexual, para que, apropriando-se do Estado, pudessem regularizar a situação conjugal. Eram os chamados casamentos na Delegacia de Polícia. Vale lembrar que os casamentos não eram realizados na Delegacia, contudo o delegado, depois de comprovado o defloramento, expedia um documento aos futuros nubentes para que pudessem fazer o registro de nascimento, caso não o tivessem, e o casamento sem custas cartorárias, sem o pagamento dos selos.

349

ARIÈS. & BÉJIN. op. cit. p. 179. 350

ARIÈS. op. cit. p. 180. 351

ARIÈS. Op. cit. 352

É interessante observar, nestes casos, que a mulher era conhecida na comunidade pelo nome de família dela, não assumindo o nome do marido, apesar de viverem uma vida toda em comum.

Pode ser observado neste capítulo que seis casais, sem a documentação necessária, para poderem ficar juntos, se viram obrigados a antecipar a conjunção carnal. E mesmo quando as ofendidas e os acusados confessaram a relação sexual, elas tiveram que passar pelo auto de exame de defloramento para a comprovação da veracidade do crime.

Apaixonadas, querendo casar-se, elas se deixaram raptar e deflorar pelos namorados, o que originou seis processos de crimes sexuais que foram catalogados no período de 1940 a 1944, e resultaram em casamento. As ofendidas em sua honra querendo casar-se e não conseguindo resolver privadamente conversando com o causador da desonra, certamente tiveram auxílio dos responsáveis que fizeram o registro de queixa-crime para que o casamento fosse realizado. Muitas vezes os envolvidos sem a documentação necessária para regularizar a situação civil e nem meios financeiros buscaram na justiça a solução. Para o registro de queixa-crime na Delegacia de Polícia, havia a exigência de apresentação da certidão de nascimento das ofendidas. Também para fazer o casamento no civil. O documento era obrigatório após a Proclamação da República.

Em alguns casos, quando o cônjuge escolhido não era do agrado dos pais, os namorados antecipavam a conjunção carnal para que a união fosse aceita por eles. Para que tal prática não acontecesse com muita freqüência, houve a necessidade de a justiça ajudar os pais, ou seja, legislando uma idade mínima a ser obedecida para realizar o