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3. TECER A IMPROVISAÇÃO

3.4. PROPOR

3.4.1. Leitura como discurso

O entendimento sobre a leitura na improvisação não sugere a sua definição no sentido tradicional, ao invés, o ato de ler apela a ser a “leitura do mundo” (FREIRE, 1989, p 9), como capacidade para compreender a realidade. Para o improvisador ler precisa que o seu corpo não esteja separado do seu contexto, pois envolve de modo relacional a apreciação analítica e abrangente das experiências como um todo.

A leitura na dança está associada à compreensão dos momentos e experiências dos corpos e do seu sentido de movimento. Ler é, assim, uma operação deveras complexa, porque implica percepção, disposição e capacidade de entender o mundo e estabelecer sua realidade.

199

No original: “Protocoreografias” para designar esses momentos de coreografias inadvertidas, essas

organizaciones espontâneas, essas verdadeiras composiciones situadas en lo limite de lo visível. Presentes, no obstante, vivas, activas a cada instante, a nuestro alrededor”.

Ao respeito, a diretora Xiomara Navarro (2012) expõe sua visão da leitura a partir da pedagogia:

Eu entendo a leitura como a compreensão que vem do observar, essa interpretação, e eu acho que existe algo muito importante e é como fazer uma leitura sem julgamento. Acredito que é fundamental para o ensino guardar a neutralidade [...] isso é realmente um dos grandes desafios que temos os professores que trabalhamos com o crescimento humano, então ela [a leitura] tem muito a ver com a neutralidade, com a história única de cada pessoa.200 (Informação verbal)201.

A relação entre a leitura e o princípio de propor está ancorado sobre o fato da leitura ser habilidade para descrever e apresentar esse mundo, ou seja, a leitura parte da observação e apreensão para que o corpo escreva e exponha as suas opiniões. Ambos, – leitura e escritura – resultam da prática de (re)conhecimento como parte de um processo criativo/compositivo para a improvisação com/em dança.

Nessa medida, a importância da leitura na improvisação centra-se em ser habilidade para reconhecer organizações, as quais convertem-se em elementos para a composição. Encontram-se leituras sobre fisicalidades, gestos, imaginação, atitudes, corporeidades, distâncias, tamanhos, alturas dos espaços, medição do tempo, ritmos internos e externos, informações que ajudam a resolver momentos criativos e tornar-se vínculos de comunicação e compartilhamento.

A elaboração de leituras sobre objetos, espaços, pessoas, situações, entre outras, está determinada pela percepção de cada indivíduo, pois a percepção como ação é a prolongação do conhecimento do corpo e suas possibilidades, o qual converte-se em capacidade para a composição. Assim, a leitura é identificar sentimentos, emoções e outras intensidades, as quais colaboram em se antecipar às decisões e escolhas, sendo ferramenta de composição a influenciar as formas de ver e criar na dança.

Para a coreógrafa Lisa Nelson (1997), a leitura está relaciona com uma questão de sobrevivência, pois constantemente se faz leitura dos detalhes que determinam as decisões para interagir no mundo. Na improvisação, Nelson descreve a leitura da seguinte maneira:

200

No original: “La lectura la entiendo como el entendimiento que nace de ese observar, la interpretación y creo

que hay algo super clave y es cómo hago una lectura sin juicio, creo que es clave en el hacer pedagógico, guardar la neutralidad [...] eso es como uno de los retos bien grandes que tenemos los docentes que trabajamos con ese crecimiento humano, entonces tiene mucho que ver con la neutralidad, con la historia única de cada persona.”

201

Informação fornecida por Xiomara Navarro, diretora da Escola Zajana Danza, em entrevista realizada em 7 de setembro, 2012.

[...] Quando você está lendo você está fazendo sentido das coisas. Se eu fizer uma ação, talvez eu possa ler linearmente, a partir do que foi previsto antes. Mas eu quero dizer linear na minha experiência de tempo, então a ação pode surgir como uma ação cenestésica pela primeira vez. Mas eu lembro da ação, então eu posso repetí-la mais tarde com uma qualidade diferente em relação a outro aspecto do ambiente - o espaço, o meu colega e etc. Essa mesma ação torna-se camadas de significado.202 (1997, p. 79).

Portanto, essa afirmação da leitura como aspecto compositivo, deriva em pensá-la também como aspecto propositivo, pois a leitura na improvisação está marcada pela destreza que cada improvisador possui para decifrar e intuir às situações em atender, estabelecendo rapidamente a compreensão de signos a relacionar, transformando-os e entregando-os como arranjo na criação.

Com relação a isso, nas improvisações da Escola Zajana Danza, algumas leituras tornam-se previsíveis porque procedem de regras pré-estabelecidas, mas também essa predição resulta do convívio entre os improvisadores nos treinamentos, o que lhes permitem conhecer e identificar no corpo dos outros improvisadores, atitudes, movimentos e relações frequentes ao criar/compor em improvisação. Assim como há prognóstico sobre a ação também há indeterminação, o qual ativa uma resposta rápida para a sobrevivência. Tanto a leitura quanto a antecipação da ação e a reação agenciam ser possibilidade criativa/compositiva, baseada nas relações imediatas a se estabelecerem.

Na improvisação, o ler não hesita em provocar ações de ressonância, de cópia, de contágio, de oposição e de contraponto do movimento como formas compositivas que se associam para dar sentidos. Aliás, o improvisador precisa de momentos de silêncio, de pausas e de condensações para não sacrificar o valor e aporte da sua leitura, para transformar em propostas sobre as condições do aparecer e do perceber. Por isso, é relevante considerar a leitura na improvisação como forma de treinamento no ofício de ampliar e afinar a percepção, sintonizar a atenção através do desenvolvimento de habilidades da inteireza de todos os sentidos para estabelecer um diálogo constante entre as atividades sensoriais e as compositivas.

202

No original: “[...] when you´re Reading you´re making sense of things. If i make an action i may read it is a

linear, from what has been laid out before. But I mean linear in my experience of time, so the action might arise as a kinesthetic action the first time. But I remeber that action so I can repeat it later with a different quality in relation to another aspect of the enviorement – the space, my parthner etc. That same action becomes layered with meaning”.

Do mesmo modo que o improvisador é leitor de corpos e seus contextos, o professor desenvolve essa habilidade, a fim de conduzir os estudantes a identificar e reconhecer seus próprios momentos e as situações coletivas. Isto quer dizer que a leitura tem uma dupla função; por um lado, é metodologia de ensino na improvisação, e por outro, converte-se em ferramenta compositiva. Como mencionei acima, para a diretora da Escola Zajana Danza, Xiomara Navarro (2012), a pedagogia da improvisação procura estimular as leituras nos corpos dos estudantes sem julgamentos, guardando a neutralidade, à media que formula e permite a esses corpos desenvolver habilidades e possibilidades. Assim, cada corpo vai se descobrindo e vai criando o seu próprio mundo. Porém, a leitura na improvisação possui um movimento de projeção exponencial, pois, o espectador também adota esta habilidade para acompanhar, interpretar estas peças improvisadas através de sua relação com o mundo.

No contexto desse princípio, a leitura nasce do ato de observar em totalidade, ou seja, da observação global e ampla, que leva à interpretação, que dá sentido, que constrói o que se olha, procurando criar relações para a comunicação dos corpos por meio do espaço/tempo. É assim como o improvisador trabalha, a partir da leitura da sua realidade oferece material adequado, fazendo com que as intersubjetividades discorram e exponham suas leituras, ao mesmo tempo em que a proposta pode ser vista, compartilhada e oferecida ao público.

Figura 32: “Criação com Espaço”. Atividade de Improvisação, 2011. Shopping Avenida Chile. Fotografias: Jamie Howard.

Por um lado, no princípio de propor a leitura é atividade compositiva, que implica possibilidades criativas e, por outro lado, quando essas leituras tornam-se propositivas discorrem em ser posições enunciativas em torno ao próprio fazer. Posto que, o princípio de propor no processo da improvisação acarreta em entender, “o que” e “o como” o improvisador propõe sua ação, sendo tais aspectos suas formas discursivas.

As formas, nascem das relações entre como se percebe, se atende, se pesquisa e se apresentam as ações e a relação com seus contextos. Por exemplo, eu considero que a forma de organizar essas ações frente a certos aspectos de espaço/tempo leva a desvendar ideias sobre como o corpo se organiza, escolhe e relaciona, funções das lógicas utilizadas para a criação em improvisação, das quais se desprendem ideias, pensamentos e posturas de visões sobre o mundo.

Esses aspectos adquirem a posição de elaborar implicações políticas na forma de atitudes frente a certa situação criativa. Neste caso, enuncia-se o próprio discurso, na maneira como propõe e o que se propõe. Sob esta perspectiva, desenha-se um discurso, que se faz presente no momento de propor do improvisador, assumindo uma posição em relação ao que se cria.

A questão do discurso visa integrar a produção de ações, como produções discursivas, as quais colaboram em considerar os processos de subjetivação, modos de abordar e indicar a percepção como ponto de vista de cada improvisador. E, ao mesmo tempo, aponta para a construção de subjetividades móveis, que trasladam os estados e os momentos particulares para os coletivos, a partir da compreensão de suas afinidades e diferenças. Desta maneira, criam-se discursos divergentes para assumir contextos artísticos, por meio da exploração, criação, e composição de ações que se confundem com o fato de viver. Assim, como afirma Nachmanovitch:

A tarefa do improvisador é por tanto esticar esses momentos, prolongá-los até que eles se misturem à atividade do dia-a- dia, Então começamos a vivenciar a criatividade e a improvisação como uma atividade normal em nossa vida. (1993, p 28).

Cabe ressaltar que os discursos e também as ações propositivas obedecem a sistemas complexos de relações, que se criam, a partir de um pensamento estruturado do passado (memórias, vivências, conhecimentos) e o seu embate com outros contextos, obrigando a transformar esses pensamentos em formas adaptativas e criativas de dançar.

configurar em cada escolha, mas em seu conjunto engloba ser enunciado e demarcado pelas características e a prática de improvisar com/em dança. A visão do discurso é exposta pelo filósofo Michel Foucault na sua palestra proferida no Collège de France, em 1970, intitulada “A Ordem do Discurso”, compreendendo e apresentando os mecanismos do discurso como a função do desejo. Além de arriscar-se a apresentar as instituições como regimes discursivos, cujas práticas de poder destacam ser formas sistêmicas dos objetos que falam.

Para Foucault, “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual e com o qual se luta, o poder que queremos nos apoderar” (1983, p. 9). Nesse sentido, a improvisação é suscetível de ser dirigida pelo desejo exacerbado e cego, a disciplina, o domínio, as regras pré-estabelecidas e fixas e as ideias tradicionalistas, as quais se enquadram à linguagem artística. Apesar disso, Foucault adverte que os discursos podem ser tratados como práticas sociais para subverter as regras, eles podem ser ignorados e repensados.

É o caso das experiências artísticas da Escola Zajana Danza, pois elas permitem um exercício artístico desde a perspectiva do compartilhamento e da participação, criando espaços de ressignificação (corpo, cidade, criação coletiva, etecetera) que alteram formas discursivas de apresentar e ver a dança. Como aponta a professora Carolina Van Eps, “Para mim, dançar nesses espaços tão abertamente – ou seja, sem plataforma, sem alguém para anunciar um show, um espetáculo, sem batom, sem salto alto – é em si um ato revolucionário e um privilégio”203. (Informação verbal)204.

Entretanto, a ação do improvisador está inserida na prática de estudar “o fazer”, ou seja, reconhecer as escolhas, as relações e as corporeidades, através das quais ele crie seus modos próprios de olhar para o mundo. E a partir de “o que”, “o como” e “o para onde se olha” esse corpo, o que determina sua ação, portanto, ele assume um lugar, demarcando ser uma posição política. Neste sentido, a visão de cada corpo encontra a pluralidade de outras visões, o que lhe serve para reconhecer a diferença e instaurar maneiras equilibradas para produzir diálogos e possibilidades de encontro na improvisação.

Pensar a ação do improvisador enquanto discurso, revela posturas ideológicas, políticas e reflexivas que comprometem revisar se as maneiras de propor essa improvisação

203

No original: “Para mi bailar en estos espacios de una manera tan abierta , - es decir sin tarima, sin alguien

que anuncie un show, un espectáculo, sin labial, sin tacón,- es en si un acto revolucionario y un privilegio”.

204

com/em dança correspondem a formas próprias ou impostas; se elas obedecem aos propósitos, que nascem da necessidade criativa e artística ou estão confusas com a natureza de outras atividades; além de examinar se suas maneiras de investigar estão condicionadas pelas exigências do mercado artístico e acadêmico. Tais pensamentos levam a tomar uma posição crítica diante do que se faz e se produz individualmente, coletivamente e à correlação com o seu público. Pois, na prática da improvisação, o processo criativo pode-se tornar conhecido e ser repetitivo frente às escolhas, a qualidade corporal, as formas de se relacionar e de se criar pistas, que assinalam em regular as ações e as modalidades de fazer e produzir improvisação com/em dança.

Entretanto, o discurso na dança aparece no momento em que se realiza, configurando- se entre lógicas organizativas, táticas compositivas, produções de subjetividades e estruturas de pensamento que atendem à criação de diversas experiências. Desta forma, a improvisação torna-se campo de produção de ideias, movimentos, ações, pensamentos e reflexões, onde o “fazer-dizer do corpo” (SETENTA, 2008), implica reconhecer a construção de discursos, de subjetividades, de relações e de possibilidades, as quais visam pensar a prática artística da improvisação como forma de produção de conhecimento.

Finalmente, o propor na improvisação se serve de formas de leitura que desenham posições discursivas, o qual exige do improvisador, segundo Mundim:

Um domínio de seu próprio corpo, uma potencialização das relações coletivas e de ferramentas de composição, uma atitude de realizar escolhas e a confiança nas decisões tomadas. Conectar-se com o entorno, dialogar com as propostas por ele oferecidas (sons, gestos, lugares, situações etc.) e perceber o outro (artista ou espectador) com a inteireza de um corpo que sabe posicionar-se mediante as ocorrências da vida tornam o intérprete-criador uma escritura poética em movimento.” (2011, p. 105).

Para concluir, o processo criativo na improvisação implica em: perceber, atender, investigar e propor. Princípios relacionados entre si, e que obrigam o improvisador a se desdobrar em dois planos, ou seja, ele tem que perceber e ser percebido, olhar e ser olhado, ler e ser lido, escutar e ser escutado, pesquisar e ser pesquisado, propor e ser proposto. Essa situação específica cria acordos, diálogos e composições, como formas de comunicação para o improvisador, o qual lhe causa estar continuamente em processo.

Em consequência, o processo criativo na improvisação é realizado na simultaneidade e interação de todos os princípios detalhados anteriormente, os quais desvendam temas que concernem aos aspectos pedagógicos como a afinação dos sentidos, do corpo e a eficácia do

seu treinamento. Além de perspectivas artísticas com habilidades que colaboram na criação/composição para a improvisação.

Contudo, há que se destacar como esses princípios expõem dimensões filosóficas, tanto no desenvolvimento de autonomia que se desloca em subjetividades e intersubjetividades, quanto em termos de ética, responsabilidade e produção de verdade. E todavia, atinge abordagens das ciências cognitivas como processos de enfoque enactive (cognição pelas características estruturais e fundamentais do corpo) e embodied (cognição corporificada), sendo formas de compreender e explicar condições que entram na configuração dos processos da improvisação em/com dança.