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Leitura de Músicas com Assuntos do Cotidiano do Aluno (24/10/2003)

4.3 DIÁRIO DA PARTICIPAÇÃO ATIVA

4.3.6 Leitura de Músicas com Assuntos do Cotidiano do Aluno (24/10/2003)

A aula seguinte começou, de certa forma, tumultuada: um aluno fora detido no final da aula anterior, por envolver-se numa briga entre gangues de bairro da cidade, que havia

ocorrido nos portões do colégio. O tumulto na sala de aula foi gerado no momento em que a diretora da escola retirou esse aluno da sala, levando-o à sala dela, para que se decidisse o seu futuro na escola. Os alunos resolveram discutir o assunto, uns defendiam o colega e outros acusavam-no de geralmente promover tumultos daquela natureza:

A1: O colega ‘A’ é assim mesmo, professor, acha bonito arrumar confusão, ficar brigando por aí. Tem mais é que expulsar um cara desses!

A2: Mas também não dá pra se acovardar... você fala isso por que não foi contigo!

A1: Briga não leva a nada!

A3: É o que dá se meter com essas gangues. Se eu sou da polícia, começo a dar tiro em todo mundo... Tem que acabar com esses “vagabundo”!

Com o retorno do aluno ‘brigão’ para a sala de aula, os ânimos acalmaram-se e a aula prosseguiu quase normalmente.

Mais uma vez, em virtude de necessidades vinculadas à realidade da sala de aula, elegeu-se uma música que tivesse algum vínculo temático (assunto) com a ocorrência que se presenciara na sala de aula. Assim, aproveitou-se aquele momento para sugerir a música

Retrato de um Playboy, do rapper Gabriel, o Pensador. Essa música do gênero rap debate, de

forma bem-humorada, a violência urbana gratuita dos famosos playboys ou pittboys brigões, que se divertem provocando as pessoas e impondo a sua masculinidade, em brigas sem motivo aparente.

Salienta-se a importância e viabilidade do gênerorap como objeto de leitura, em razão de ser constituído por músicas que tratam dos mais diversos temas sociais, sempre atualizados, como a violência, o trabalho, a juventude, as drogas, além, é claro, de ser um dos gêneros musicais de maior sucesso nos últimos anos, em todas as rádios do Brasil e do mundo. As letras das músicas desse gênero geralmente têm linguagem coloquial. A

letras não têm melodia, nem divisão precisas, e a rima não é necessidade absoluta. O ritmo é imposto, em boa parte, pela divisão e marcação da voz do rapper, o que faz com que o rap possa ser composto por qualquer pessoa, sem necessidade de muito conhecimento musical. Essas são outras características desse gênero que o tornam viável como objeto de ensino- aprendizagem de leitura.

Após ouvir a música, alguns alunos, escolhidos aleatoriamente, fizeram uma leitura em voz alta da letra dela. Em seguida, os colegas comentaram o tema e a letra da música:

A1: É como eu disse antes... esse tipo de coisa não leva a nada, brigá pra quê?... Não leva a nada!

A2: E digo mais... isso não acontece só com os filhinho de papai... os pobre brigam pra tentá se superar, não sei como.

A3: E mais... não é só homem... mulher também fica brigando de bobeira... Olha o que acontece nas boate.

A4: É... mas não se compara... homem briga por qualquer coisa... Tem gente que mata porque alguém buzinou na traseira do seu carro.

Um detalhe que chamou a atenção foi que tanto o aluno envolvido na briga entre gangues quanto os colegas que se posicionaram a seu favor permaneceram em silêncio durante a discussão. Eles ficaram cabisbaixos, como se refletissem sobre o que estava acontecendo.

A professora de Língua Portuguesa, que até então havia permanecido em silêncio nas aulas, resolveu aproveitar o rendimento da discussão para solicitar aos alunos que escrevessem uma redação sobre o tema ‘A violência entre os jovens’, que, segundo ela, serviria para constituir a nota que faltava para a avaliação do último semestre de aula.

Notou-se que, devido à música Retrato de um Playboy conter um tema altamente discutido pela mídia atual e percebido no cotidiano dos alunos, a tarefa de produção textual proposta pela professora despertou grande interesse em todos os alunos. Pelo menos dessa vez, os alunos não se queixaram por terem de escrever a redação solicitada. Apesar de a

professora de Língua Portuguesa usar a leitura da música e o momento de interação entre os alunos como pretexto para sugerir uma produção textual, a situação mostrou-se propícia para tal finalidade. Observou-se que os alunos demonstravam que havia muito ainda para ser dito sobre o assunto em debate, e como muitos não haviam se pronunciado por timidez ou pelo domínio excessivo de uns poucos mais ‘falantes’ na sala de aula, aquela hora era oportuna para que todos os alunos mostrassem a sua opinião por meio da escrita.

Avaliando posteriormente a proposta da pesquisa, notou-se que houve uma falha no planejamento e desenvolvimento didático das aulas, que poderiam ter sido melhor sucedidas, do ponto de vista pedagógico, se houvesse mais tempo de trabalho com os alunos. Os debates sobre a compreensão das leituras ficaram restritos a um pequeno grupo de alunos. Em contrapartida, pela produção textual escrita dos alunos, observou-se que outros alunos dominavam os assuntos debatidos e tinham boa fluência na modalidade escrita, mas não costumavam se manifestar oralmente em sala de aula. Poderiam esses alunos ser talvez mais tímidos ou mais reservados, por isso, entende-se que se pecou, em muitos momentos, em sala de aula, ao não se perceber que as contribuições se restringiam a apenas um grupo pequeno de alunos. Além disso, alguns alunos não se manifestaram oralmente na aula por falta de oportunidade, afinal, é comum que, em sala de aula, haja um grupo de alunos que costuma se adiantar nas discussões. Essa falha metodológica pode servir de alerta para qualquer disciplina e professor, pois essa situação parece ser constante na interação professor e alunos.

Nesse sentido:

O professor deve ainda propiciar a participação de todos os estudantes, evitando que os mais “expansivos” tomem conta da discussão. É bom que os docentes estejam alertas para o fato de que nem sempre os alunos mais participantes na sala de aula são aqueles que melhor dominam o assunto ou têm as mais interessantes contribuições. (MOREIRA, 1997, p.90).

Apesar dessa falha didática, acredita-se que, mais do que uma leitura compreensiva, por meio do debate e do ambiente de ‘troca de leituras’ entre os alunos, não se negou a eles a oportunidade de utilizar a sala de aula como espaço propício ao uso da língua como interação. Sobre isso, concorda-se com Geraldi (1997), que afirma que a linguagem como interação é uma forma de uso da fala que propicia muito mais do que uma simples transmissão de informações de um emissor a um receptor. É mediante a linguagem proporcionada sob a forma de interação que o falante age sobre o ouvinte, constituindo compromissos e vínculos que não preexistiam à fala.

Articulando essas proposições com a metodologia de ‘troca de leituras’, cabe afirmar que, para ocorrer certo clima de troca de idéias e a colaboração entre os sujeitos envolvidos nesse processo de interação, é necessário que os alunos apresentem não apenas boa fluência na modalidade oral, mas maturidade e independência intelectual, além, é claro, de razoável domínio dos temas debatidos.

Assim, percebe-se que a leitura, na sua completude, não merece ser apenas conhecimento adquirido e internalizado pelo sujeito, mas riqueza sócio-histórica, a ser dividida entre os parceiros desse processo. A sala de aula é lugar propício para essa troca, basta o professor encontrar meios (como foi, neste caso, o trabalho com a leitura de músicas) que o possibilitem ser mediador do processo de interlocução.