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A Leitura e o desenvolvimento mental

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LER E ESCREVER: UM PROCESSO DE ASSENHORAMENTO DO MUNDO E DE SI MESMO

2. A Leitura e o desenvolvimento mental

Aprender a ler é um dos acontecimentos mais importantes na trajetória do desenvolvimento cognitivo humano. Entretanto, essa aprendizagem tem complicadores, advindos das relações próprias de uma sociedade, estratificada em classes sociais, que valoriza a língua própria da camada privilegiada, ao mesmo tempo em que estigmatiza a modalidade lingüística utilizada por aqueles alijados dos bens socioculturais e lingüísticos de prestígio.

A reversão da situação atual em que se encontra o ensino- aprendizagem passa, necessariamente, pela recuperação de um aprendizado de leitura que desencadeia o desenvolvimento de estruturas mentais facilitadoras da apreensão da complexa rede de fenômenos que envolvem o ato de ler.

Essa complexidade inicia-se na aquisição da própria língua materna, pois que a competência lingüística do aluno é resultante das inter-relações culturais, lingüísticas e sociais em que o processo de aquisição e uso da linguagem desenvolvem-se, pois como assegura Bakhtin (1990, p. 32), “o universo do signo é um universo ideológico”.

A assimilação dessa premissa, provavelmente, apontará novos elementos de avaliação e superação das dificuldades apresentadas pelos estudantes, provenientes das classes trabalhadoras em realizar uma leitura textual que lhes possibilite a compreensão do tema desenvolvido no texto, e ainda, as interpretações e relações nele contidas, que fluem no processo mesmo da leitura. Porém essa possibilidade só se concretiza quando o leitor reconhece a linguagem do texto, o conteúdo de que ele trata, aliados ao conhecimento de mundo e pré-conhecimentos acadêmicos que o levem além na apreensão textual.

O reconhecimento das diferenças sociolingüísticas dos alunos é, desse modo, o primeiro e importante passo para a programação de um ensino-

aprendizagem que alcance os objetivos propostos com vistas à aprendizagem, ou melhor, à reaprendizagem da leitura em universitários que começam o curso superior.

Esse reaprender significa que o sujeito deve tomar consciência da própria linguagem, cientificando-se de que é falante da língua portuguesa, todavia em uma expressão própria de seu ambiente lingüístico-cultural que, por isso, exige-lhe apropriar-se da língua oficial. A apropriação da modalidade padrão de sua língua materna é necessária para a apreensão dos saberes do mundo acadêmico.

A compreensão de que diferença não é deficiência muito contribui para elevar a auto-estima do aluno, despertar-lhe o desejo de participação, o que o situará no universo das atividades do ensino-aprendizagem da linguagem, pois como expõe Soares (1989, p. 16), essa “é, ao mesmo tempo, o principal

produto da cultura, e é o principal instrumento para sua transmissão” (grifos da

autora).

Outras questões a serem enfrentadas no aprendizado da leitura ligam- se ao desenvolvimento para e pelo aluno, dos fenômenos inerentes à própria organização lingüística. Como já largamente exposto neste trabalho, o desenvolvimento de competências e habilidades em leitura supõe transpor a mera decodificação, que paira na superfície textual, numa compreensão linear, que leva tão somente, e quando muito, à memorização.

O processo de leitura viabilizador da aprendizagem e, por isso, de desenvolvimento mental é aquele que desencadeia não apenas o significado formal do texto, mas avança nos vários possíveis sentidos, “essa fascinante cabeça de Medusa” como avalia Benveniste, citado por Morato (2002, p. 12).

E, ainda em Vygotsky, depara-se com promissores e sugestivos estudos impulsionadores de metodologias viabilizadoras da aprendizagem da leitura. Nesse sentido, em Kozulin encontra-se expressiva reflexão de Vygotsky, ao elucidar que: “O material de aprendizagem representa a experiência acumulada da humanidade que é condensada e transformada pela necessidade de transmiti-lo ao aluno” (KOZULIN, 1998, p. 1).

Então, assumindo essa assertiva, compreende-se ser no processo dialético entre o interno e o externo que ocorre a aprendizagem. Operação realizada na mediação dos signos lingüísticos, concretizada nas múltiplas inter- relações que se desenvolvem no ambiente escolar propício para os intercâmbios pessoais: alunos-professor; alunos-alunos, quando os conteúdos em estudo adquirem significado e sentido: a aprendizagem desenvolvida em espaço dialógico, para além da memorização e repetição da leitura realizada.

A socialização da leitura, ao despertar nos alunos o desejo de participar na atividade grupal, abre-lhes perspectivas de assimilação das propostas que os textos contêm. Nesse intercâmbio, evidencia-se a importância das mediações propulsoras da apreensão do conteúdo e, em conseqüência, do avanço na aprendizagem, promotora da ascensão dos conceitos cotidianos em conceitos científicos, ou seja, como assegura Libâneo:

Os alunos aprendem a internalizar conceitos, competências, habilidades do pensar, modos de ação que se constituam em instrumentalidades para lidar praticamente com a realidade: resolver problemas, enfrentar dilemas, tomar decisões formular estratégias de ação (grifo do autor) (2004b, p. 6 e 7).

Dessa forma, o ensino e aprendizagem da leitura, para alunos que iniciam o curso superior, só atingirá seu objetivo se propiciar ao aluno a competência lingüística que lhe permita a participação ativa na construção de saberes, que o situem no mundo real, onde deve atuar como sujeito construtor de uma história coletiva e pessoal.

Entretanto, é preciso atentar-se para imprescindíveis processos internos constitutivos da própria linguagem, que atuam no seu contexto psicológico, sem os quais não há como apreender as propostas do texto lido. Mais uma vez, recorre-se aos estudos realizados por Vygotsky, quando desenvolve três aspectos relativos ao texto, que definirão, no processo de leitura, a compreensão e interpretação textual; são eles: a inflexão, o contexto e o subtexto.

A inflexão, nem sempre observada pelo leitor, conforme assegura Vygotsky (1989, p. 123), “revela o contexto psicológico dentro do qual uma palavra deve ser compreendida”. Não raras vezes, em atividades de leitura constata-se como leitores que lêem sem considerar os sinais diacríticos,

portanto não fazendo a entoação adequada ao término dessa atividade, demonstram a não compreensão do que foi lido.

No cotidiano, quando o aluno lê, é comum a não observância da inflexão na leitura. Exemplos desse fato multiplicam-se, produzindo não só a incompreensão do significado, como leva à interpretação contraditória de seu sentido. Por exemplo, na leitura da frase “Não! Vá ao cinema hoje”, se não se obedece ao sinal de pontuação, a afirmativa transformar-se-á em uma ordem negativa: “Não vá ao cinema hoje”.

O segundo aspecto desenvolvido por Vygotsky, no trabalho com o texto, é o contexto, que contempla a palavra demarcadora da diferença entre o seu significado e os possíveis sentidos que ele pode apresentar. O exemplo que ilustra essa diferenciação, encontramo-lo em Vygotsky (1989, p. 125), ao citar a adaptação russa à fábula A Cigarra e a Formiga, quando esta diz à cigarra: “Vá cantar!” que no contexto específico, diz ele, alcança “um sentido intelectual e afetivo muito mais amplo”, podendo significar tanto “Divirta-se” quanto “Morra”.

O subtexto é o terceiro aspecto, referente ao texto, que determina, no ato de ler, a capacidade de compreensão e a habilidade de interpretação textual. Do exposto sobre a inflexão - que estabelece a compreensão dos aspectos psicológicos do texto -, e do contexto - que, por seu turno, entende-se psicossocial, por suas características advindas das relações socioculturais assimiladas pelo sujeito, em um processo dialético, entre o externo e o interno - , no subtexto, o leitor, ao apreender o significado do texto, expande seu entendimento, descobrindo os vários sentidos que o texto lhe permite.

Essas possibilidades de penetrar o texto em suas múltiplas dimensões: lingüística, cultural, social, psicológica, emocional, afetiva, racional, será mais ou menos completa, mais ou menos captada pelo leitor, dependendo do desenvolvimento das competências e habilidades, por ele alcançadas no processo de leitura. Logo, o subtexto, como concebido por Vygotsky (1989, p. 128), é o pensamento por trás das palavras, e, “todos os pensamentos criam uma conexão, preenchem uma função, resolvem um problema”.

A estrutura do pensamento não é coincidente com a da fala. Esses processos possuem estruturas específicas, por isso a transição do pensamento para a fala não é fácil e nem imediata. Nesse sentido, Vygotsky (1989, p. 128) argumenta que “o teatro se deparou com o problema do pensamento por trás das palavras antes que a psicologia o fizesse”, ao que se acrescenta antes da lingüística. Vygotsky ilustra sua argumentação, ao afirmar que Stanislavsky, teatrólogo de seu tempo, exigia que os atores descobrissem os subtextos relativos as suas falas na peça. Com a comédia de Griboedov, intitulada A Infelicidade de Ser Inteligente, a heroína garante a Chatsky, ator principal da peça, que não o esqueceu, ele responde: “Três vezes louvado aquele que acreditar” (VYGOTSKY, 1989, p. 28). Stanislavsky interpretou o sentido por trás dessas palavras, portanto o subtexto, que flui em todas as frases, como “vamos acabar com esta conversa” (VYGOTSKY, 1989, p. 128).

A apreensão do subtexto, como se pode depreender, ganha importância na compreensão do conteúdo desenvolvido pelo texto, visto que a estrutura textual objetiva, nem sempre deixa perceber as intenções reais do autor, se o leitor não penetra as intenções por trás da linguagem, pois como assegura Vygotsky (1989, p. 129): “um pensamento não tem um equivalente imediato em palavras, a transição do pensamento para a palavra passa pelo significado. Na nossa fala há sempre um pensamento oculto, o subtexto”.

O subtexto, portanto, como explicitado por Vygotsky, apresenta-se como mais um elemento no processo de desenvolvimento do ato de ler, que contribui para situar o aluno não somente no conteúdo em estudo, mas também em sua vida acadêmica.

Assim entendido, avança-se mais um passo para a compreensão do que é de fato o ato de ler, que envolve processos psíquicos e sociais de complexidades inimagináveis, pela maioria dos leitores, e que apenas se inicia de forma incipiente no começo do aprendizado da leitura. Por isso mesmo, ler é uma competência que ao ser iniciada necessita de continuidade, para o desenvolvimento das muitas habilidades que contribuem para o aprofundamento do processo de leitura que, como tal, não pode se cristalizar, pois é a sua dinamicidade, processualidade e atividade que garantem o desenvolvimento intelectual do aluno/leitor.

É no exercício contínuo do ato de ler que se vislumbra o horizonte que a utopia permite pensar alcançável. É claro que esse exercício da leitura, todavia, exige um posicionamento crítico e metodológico, quanto ao ensino- aprendizagem da leitura, que ultrapasse, em muito, a simples constatação de que o aluno chega à universidade sem a devida competência lingüística. É a competência lingüística que lhe favorecerá a compreensão do texto em estudo e apontar-lhe-á perspectivas de realização das intertextualizações fundamentais para as reflexões mais globais que promovam a interdisciplinaridade. Pode-se pontuar que a interdisciplinaridade torna-se fator primordial para o aprendizado e para a conquista do processo de pensar, de fazer relações e de o aluno situar-se como sujeito no processo pedagógico- científico que se desenvolve na academia, mediada pela atividade, nas inter- relações socioculturais e psicolingüísticas.

Seguindo este raciocínio, que se enraíza na psicologia histórico- cultural, admite-se que os entraves que impedem o desenvolvimento das competências e das habilidades em leitura, precisam ser enfrentados, já que se não superados continuar-se-á a caminhar em círculo vicioso de lamúrias e incompetências intransponíveis, o que traz conseqüências irremediáveis para a formação dos alunos.

Em Garnier et al. (2003, p. 12-13) depara-se com uma reflexão sobre o social, a atividade e a interiorização fundadas em Elkonin e Davydov, os quais, prosseguindo as propostas de Vygotsky, enfatizam a importância do social como fonte do desenvolvimento, ou seja, a atividade vinculada ao social, permitindo a apropriação do ambiente cultural. E, por fim, argumenta sobre a atividade comum entre os sujeitos do processo de aprendizagem que se constitui em universo indispensável o qual, mediante a interiorização, viabilizará, conforme Vygotsky, o domínio individual do próprio pensamento. Dominar o próprio pensamento é assenhorar-se do mundo, por isso de si mesmo pelo domínio e aprofundamento contínuo da leitura.

Quando apresenta a perspectiva histórica de Vygotsky, na compreensão de como o pensamento se desenvolve e do que é, na verdade, o pensamento, Bruner (1989, p. XI) comenta que “o interessante é que ele propôs um mecanismo por meio do qual a pessoa se torna livre de sua própria

história”. A essa idéia acrescenta-se que a conquista da leitura, complementada com o aprendizado da escrita, ao promover o desenvolvimento de novas funções mentais, permite ao leitor/escritor construir a sua história individual e social de forma livre, participativa e consciente.

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