• Nenhum resultado encontrado

2. Percurso analítico: o discurso do/sobre o turismo

2.1 a leitura do arquivo

Hoje não me resta, em vésperas de viagem,

Com a mala aberta esperando a arrumação adiada (...)

Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar (...)

31 Discutimos mais adiante o fato de não considerarmos essas duas modalidades de textualização discursiva como meros suportes, justificando, assim, o uso de “suporte” nos termos em que definiremos.

Mas tenho que arrumar mala, Tenho por força que arrumar a mala, A mala. (...)

Fernando Pessoa.

Como alguém que se prepara para uma viagem sem saber exatamente o que lhe espera e quais objetos serão de fato necessários, percebemos assim nossa posição de analista no início da viagem tese adentro. Trazemos aqui apontamentos sobre o percurso teórico- analítico efetuado na constituição do corpus, sabendo-se que este já é resultado de gestos de interpretação, e considerando-se que “a construção do corpus e a análise estão intimamente ligadas: [e que] decidir o que faz parte do corpus já é decidir acerca de propriedades discursivas. ” (ORLANDI, 2007, p. 63). Iniciamos pelo arquivo, e, em sua relação institucional e com o acontecimento (GUILHAUMOU & MALDIDIER, 2010 [1979]), a partir do qual constituímos o corpus, e cuja leitura se deu por meio da constituição de um trajeto temático a partir da (i) seleção de textos sobre viagens turísticas ao Brasil (tema), (ii) em materiais impressos e digitais, (iii) considerando a sua circulação nos espaços de enunciação francês e português/brasileiro.

A respeito do arquivo, sabe-se que o mesmo não se constitui em um a priori analítico, e tampouco é “o reflexo passivo de uma realidade institucional, ele é, dentro de sua materialidade e diversidade, ordenado por sua abrangência social. O arquivo não é um simples documento no qual se encontram referências; ele permite uma leitura que traz à tona dispositivos e configurações significantes”. Desse modo, levamos em consideração a “multiplicidade de dispositivos textuais disponíveis” (Idem, pp. 162-163) para tratar dos processos de identificação do Brasil e dos brasileiros, numa perspectiva gendrada e racializada, e em sua relação com a memória. Na constituição do dispositivo de arquivo, percorremos tanto fontes impressas, quanto fontes digitais, e percebemos que tratar dessa questão mobiliza um arquivo vasto e diverso, que precisamos recortar, a partir de nossa pergunta. Deixamos de fora, por exemplo, discursos vinculados à militância feminista/antirracista referentes à questão do turismo sexual na sua relação com o trabalho sexual; as publicidades vinculadas ao turismo, em diversos meios, salvo as que entram na análise por meio de uma retomada no discurso do Ministério do Turismo; outros guias em francês que não pudemos inserir; blogs de viagens divulgados pelo Ministério do Turismo, dentre outros.

Na construção do objeto (discurso do/sobre o) turismo instala-se, “pela confrontação de séries arquivistas, regimes múltiplos de produção, circulação e leitura” (Idem) dos seguintes materiais:

• Guia Visual da Folha de São Paulo, 2014 (GFSP) • Guia 4 Rodas, 2014 (G4R)

• Fórum de discussão vinculado ao Guide du Routard • Página oficial do Ministério do Turismo, no Facebook

• Manual do Multiplicador, publicado no site oficial do ministério do

Turismo

Em relação aos guias, estes apresentam uma inscrição institucional e temporal – no que tange ao ano de publicação, selecionamos materiais publicados entre 2012-2014, período de realização de grandes eventos esportivos no país. Em relação ao fórum e ao Ministério do Turismo no digital, mesmo as inscrições institucionais (o símbolo de oficial na página

Facebook; o fato do fórum ser vinculado ao site do Routard) significam de outro modo por

estarem no ambiente digital32. Analiticamente, esse período de publicação dos guias, na relação com os eventos esportivos, constituiu no/pelo arquivo, parte do recorte relativo ao tema turismo sexual.

Um primeiro gesto analítico foi o de identificar e distinguir dois tipos de turismo, isto nos ajudou a formular dois dispositivos de arquivo, a eles associados. Esse efeito de classificação do turismo se deu em sua relação constitutiva com o espaço de produção e circulação dos discursos: o impresso e o digital, que não são, desse modo, considerados meros suportes, se usamos este termo, é restituindo-lhe (ou levando em conta) radicalmente sua materialidade.Identificamos então o turismo oficial, publicizado nos guias e pelo Ministério do turismo (digital); e o oficioso, relativo ao turismo sexual (que se produz e circula apenas no ambiente digital) – formulado no fórum de discussão e aludido (como negação do equívoco) no Facebook do Ministério do Turismo. Essa distinção a partir da qual constituímos as análises se vincula a um dos questionamentos inicialmente formulados, a respeito da constituição heterogênea e multissemiótica do corpus indicar diferentes processos de significação, no que tange à produção/circulação de discursos estereotipados sobre brasileiro.a.s. Pensamos ainda, essa distinção, junto com Pêcheux (1983a, p. 55) segundo o qual “’as coisas-a-saber’ coexistem com objetos a propósito dos quais ninguém pode estar seguro de ‘saber do que se fala’, porque esses objetos estão inscritos em uma filiação e não são o produto de uma aprendizagem; isto acontece tanto nos segredos da esfera familiar ‘privada’ quanto no nível ‘público’ das instituições e dos aparelhos do Estado”, nesse sentido, o turismo oficial diz da “ilusão de que

32 Deixamos para o capítulo 4, a devida apresentação da noção de ambiente digital e da discussão sobre o uso do termo “suporte”.

sempre se pode saber do que se fala”, e o turismo sexual como efeito contraditório daquilo que não faz parte das coisas-a-saber sobre o Brasil, ou ainda coisas-a-saber continuamente postas para um fora imaginário.

Desse modo, o que estamos chamando de suporte relaciona-se ao mesmo tempo às produções discursivas impressas quanto às produções que circulam no ambiente digital, acima elencadas; trata-se de discursos de procedência e tipologias diversas: por um lado guias impressos, página de redes sociais, website, imagens, campanha do Ministério do Turismo, etc, diversidade da qual se faz necessário dar conta na constituição dos diferentes recortes. A construção de um recorte como a análise realizada em torno da formulação do “mas”, no capítulo 5, é um exemplo do modo como discursos de procedência e tipologias diversas foram organizados (de modo delinear) na análise. Ou ainda, o gesto interpretativo na identificação de um funcionamento do “como se”, em imagens (da Internet) ou em produções discursivas do Ministério do Turismo (no Facebook e no site oficial), também são exemplos da importância de se considerar o espaço de produção e circulação discursiva.

Identificamos, desse modo, que o corpus constituído para este trabalho de pesquisa é heterogêneo em dois níveis, a partir do que formula Zoppi-Fontana (2003, p.2). O primeiro nível, é aquele da “materialidade simbólica”, que se mostra duplamente: nos diferentes suportes (impresso/digital) e na multisemioticidade dos discursos analisados (icônicos, verbais, tecno- linguageiros, etc.). O segundo nível é o da “inscrição institucional e da circulação social”. Esta característica toma a forma nas diferentes materialidades tomadas na constituição do arquivo: o site oficial do ministério do turismo, com seus documentos digitais ou digitalizados (numériques e numériqués33); as páginas das redes sociais; e os blogs de viagens ligados a esse organismo, com entrevistas, resoluções, campanhas socioeducativas, instruções e sugestões de viagens – diversas formas discursivas tendo um ar/semelhança de família, por exemplo, com os guias de turismo.

A respeito de uma heterogeneidade dessa natureza, como a que se percebe nessa enumeração, Pêcheux (2011[1983a], p. 146), refletindo sobre a construção dos objetos de estudo para a análise do discurso, afirma que:

A língua natural não é uma ferramenta lógica mais ou menos falha, mas sim o espaço privilegiado de inscrição de traços linguageiros discursivos, que formam uma memória sócio-histórica. É esse corpo de traço que análise de discurso se dá como objeto. Através do víeis “técnico” da construção de corpora heterogêneos e estratificados, em reconfiguração constante, coextensivos a sua leitura.

33 Esta distinção é efetuada por Paveau, 2013, em francês: numérique, numériqué e numérisé, para identificar enunciados nativos da web (numériques) e diferenciá-los daqueles que são transpostos para a web (numériqués) ou, ainda, daqueles que são digitalizados (numérisés). Falamos desta distinção no VI SEAD, 2013, publicado em França 2015 e França, 2017.

A reconfiguração permanente, evocada por Pêcheux, implica não se limitar de maneira rígida ou estável a uma memória institucional, implica não se limitar a um gênero predefinido, mas sim analisar na/pela memória sócio-histórica esse “corpo de traço” em relação aos aspectos discursivos que podem interessar à análise, numa perspectiva dinâmica de possibilidades abertas pelos movimentos de vai-e-vem entre a pergunta de pesquisa e os diferentes momentos do corpus (descrição, análise e interpretação). Além disso, para trabalhar com a dimensão heterogênea na constituição do corpus, em sua relação com o arquivo34,

identificamos um tema (ou trajeto temático) na análise. Segundo Zoppi-Fontana (2003, pp. 3- 4):

uma concepção dinâmica do corpus é solidária a uma teoria do discurso que se auto- define enquanto disciplina interpretativa, isso quer dizer que ela assume o lugar constitutivo da interpretação nos processos de descrição [e considera] tanto as determinações históricas sobre os processos discursivos quanto os efeitos do gesto analítico do pesquisador na seleção, coleta, organização e exploração dos materiais estudados.

Seguindo essa definição, o procedimento que realizamos interroga constantemente o corpus, que está, nesse sentido, em permanente construção, guiado pelo desenvolvimento da análise e por redes de sentidos, que tomam a forma de trajetos temáticos (através de diferentes materiais e condições de produção), como dispositivo de leitura de arquivo. Esta noção, como se sabe, foi estabelecida por Guilhaumou & Maldidier (1989) e Guilhaumou, Maldidier & Robin (1994):

A noção de tema não reenvia aqui nem à análise temática tal qual praticada pelos literários, nem aos empregos que dela são feitos na linguística. Ela supõe a distinção entre “horizonte de expectativa” – conjunto de possíveis atestados em uma situação histórica - e o acontecimento discursivo que realiza um desses possíveis, inscrito o tema em posição referencial. (Guilhaumou & Maldidier, 1997 [1994], p. 165).

Courtine (2009[1981], p. 158) menciona igualmente o tema como “um elemento que figura no interdiscurso de uma sequência cuja importância é acentuada, marcada na cadeia”, o autor menciona que pode se tratar de uma “marca de ênfase”, “de identificação”, ou de “um elemento que pode ser objeto de uma pergunta” (efetivamente formulada ou uma pergunta “virtual”).

34 Apresentamos esta reflexão em nossa participação no colóquio internacional ICODOC 2015, da École Normale Supérieure e da Université Lyon 2, em maio de 2015, que se concentrou em torno do tema « Corpus complexes et enjeux méthodologiques: de la collecte de données à leur analyse ». (FRANÇA, 2015b).

A partir do que dizem estes autores, podemos afirmar queidentificamos que viagens

turísticas ao Brasil é o tema (geral), a partir do qual iniciamos a constituição do arquivo.

Perguntas como “o que é o Brasil?”, “o que é o indígena?”, “o que é o negro”, “o que é a mulata35” permitem que, sem nos ater à “ilusão de uma transparência”, diferentes estruturas se dêem à análise pelo interdiscurso. O trajeto temático, nesse sentido, identifica o tema das viagens ao Brasil em discursos turísticos, a partir do qual identificamos, em específico, produções discursivas que interessam para nossa investigação, que são as proposições gendradas, racializadas, sexistas, estereotipadas e que se sustentam numa concepção de

memória da colonização. Dito de outro modo, o trajeto temático neste trabalho, guiado pela

busca de uma construção, formulação, circulação de uma doxa do Brasil e do.a brasileiro.a, é o conjunto das configurações linguístico-discursivas em torno de questões ligadas a estereótipos de gênero, de raça, pós-coloniais, situadas no contexto dos discursos sobre viagens turísticas ao Brasil, na atualidade. Podemos pensar ainda que, no duplo dispositivo de arquivo, há um jogo de possíveis relativos ao “horizonte de expectativa” e à sua atualização no discurso, veremos que, em relação ao turismo sexual ou aos discursos que dizem da raça/etnia, ou ainda sobre o racismo36 no Brasil, há possíveis que não são realizados, em função do espaço de produção/circulação em questão.

O trajeto temático contribui, desse modo, para a construção do corpus, demarcando especificamente os efeitos do acontecimento discursivo no interior do arquivo. O fato de tomar essas diferentes materialidades segundo um continuum vai no mesmo sentido da concepção dinâmica do corpus, como definido anteriormente. Essa permanente construção do corpus possibilita, conforme Zoppi-Fontana (2003, p. 3), “descrever os regimes de enunciabilidade em sua dispersão, tanto nas regularidades de funcionamento quanto nas rupturas provocadas pelo acontecimento”. Logo, a análise efetua movimentos em espiral (PÊCHEUX, 1983c, p. 312) que vão desde os processos de descrição até os processos de interpretação.

No interior do arquivo, enquanto efeito de um gesto de leitura, recortamos o corpus em sua materialidade linguístico-discursiva. Dentre tantos possíveis, decidimos nos ater ao recorte direcionado aos sentidos de Brasil e de brasileiro.a.s, que dizem de raça/etnia (e, por vezes, gendrados/sexualizados), em sua relação com a memória da colonização. Conforme já apontamos, acreditávamos de início que a questão de gênero/sexualidade atravessaria o arquivo,

35 Courtine trata das configurações de paráfrase discursiva nesses moldes, na obra supracitada (p. 213, e seguintes)

36 Podemos mencionar toda a ausência do tema do racismo no Guia 4 Rodas, ou do tema turismo sexual, nos meios oficiais (guias e espaços do Ministério do Turismo), ou ainda da vinculação da população indígena e africana como brasileira, dentre outros.

além disso, não encontramos no nível da formulação discursos que dizem do brasileiro, por exemplo “o brasileiro é X”, relativos ao nosso recorte, percebemos, por outro lado, que seria produtivo investir no recorte relativo à raça/etnia, que por vezes, tampouco, se mostra no nível da formulação, mas que é possível analisar no eixo do interdiscurso, em sua relação com o silenciamento. Nosso objeto discursivo se constitui em pensarmos de que modo o arquivo, que textualiza as viagens turísticas ao Brasil, significa os sentidos racializantes sobre Brasil e sobre brasileiros. Chegamos desse modo ao discurso turístico sobre o Brasil e sobre brasileiros, em sua relação com a memória da colonização e com sentidos que dizem da raça/etnia (e em alguns momentos também do gênero/sexualidade). Dedicamos o subcapítulo 2.3 para desenvolver a reflexão sobre o nosso objeto.

Consideramos que os diferentes funcionamentos discursivos participam de processos de identificação, produzem identidades, tanto do país quanto de sua população, para tanto sustentamos essa concepção seguindo o que afirma Zoppi-Fontana (1999, p. 11), conforme já citamos (cf. nota 22) como "efeito de fixação provisória", afirmando tanto a "provisoriedade das identidades" quanto "a heterogeneidade constitutiva das identidades". Desse modo, veremos que não se produz a “identidade do brasileiro”, ou do “Brasil”, são diferentes processos que, em sua especificidade discursiva e conjuntural fixam provisoriamente os diferentes processos de identificação.

A respeito da construção de um objeto discursivo, talvez possamos, ainda, identificar que, no nível da formulação, o enunciado definidor, ou efeito definicional37 “O Brasil é X” seja um tipo de matriz de nosso objeto de análise. Ainda que não seja uma formulação tão recorrente, como muitas outras, podemos ali entrever um certo “prólogo”, dado que a partir dessa regularidade analisamos diferentes tipos de discursividades no discurso turístico, e dela se formulam os eixos temáticos ou de sentidos que fomos percebendo e recortando nas análises. Já no nível de um funcionamento discursivo, formulado por nosso gesto de interpretação, identificamos na expressão “como se” aquilo que abriu no corpus uma possibilidade de análise que se apresenta em diferentes momentos. Esses elementos (e os demais funcionamentos linguísticos-discursivos identificados/analisados) nos permitiram “obter um objeto tão

37 Courtine ([1981] 2009, p. 233), define o efeito definicional como aquele “em que um pré- construído em posição X está idenfiticado mediante uma nominalização ou uma enumeração funcionando como sua definição. Os pré-construídos figuram nela como

conceitos e o discurso como dicionário, assegurando na definição de suas palavras o

encerramento de seu saber”. Assim como analisaremos no capítulo 3 esse enunciado, no capítulo 5, e ao longo da tese, tratamos de enumerações com efeito de identificação para as cidades, povos e sentidos de cultura.

importante do ponto de vista linguístico quanto do ponto de vista histórico” (Guilhaumou, p. 168), nos permitindo analisar aquilo que está no horizonte de expectativas nas discursividade turística e que, ao mesmo tempo, manifesta uma série de divisões e clivagens, importantes enquanto produtoras de sentido.

Dado que o corpus é esse “momento privilegiado [...] da relação com a materialidade da língua, com a história, com o real” (GUILHAUMOU & MALDIDIER, 2010 [1979], p. 169), sua análise não se restringe apenas às ocorrências de determinadas estruturas, trata-se de um “corpus ampliado”, pela emergência de regularidades, efetuamos a decupagem do arquivo em corpus - e ao mesmo tempo, em sequências discursivas (SD), trazendo à tona os confrontos que giram em torno das seguintes regularidades: os enunciados definidores, (O Brasil é X); os nomes próprios e o funcionamento da antonomásia, enquanto denominação; as imagens lidas a partir do funcionamento do “como se”; os processos de identificação de raça/etnia de partes da população; o funcionamento do “mas” e do “como se” em discursos sobre turismo sexual ou sobre viagens com finalidades de encontros sexuais; as regularidades no léxico – colonial, o patrimônio, preservar/perpetuar, dos sentidos de herança (influência X

contribuição) relacionados aos povos, discurso sobre a mestiçagem, etc. Ao longo das análises

das sequências discursivas nos interessou discutir, ao mesmo tempo, os efeitos de legitimidade e de silenciamentos dos diferentes discursos e discursividades (turísticos) postos em circulação, dado que pelo arquivo podemos ler o que se estabelece enquanto limite entre o possível e o formulado, enquanto lugar de silêncios, entre ditos e não-ditos.

Documentos relacionados