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Leitura socioespacial de inserção no campo para a construção dos dados: em enfoque

4. E M BUSCA DE UM D ESENHO M ETODOLÓGICO PARA A PESQUISA EM SITUAÇÃO DE RUA

4.3 Leitura socioespacial de inserção no campo para a construção dos dados: em enfoque

A definição da região exata onde seriam realizadas as observações de campo iniciou pela indicação de remanescentes da equipe com quem trabalhei no Consultório de Rua, e que continuava realizando ações de campo em algumas regiões da cidade, inclusive no entorno da Praia de Iracema, até o final do ano de 2015. Esse ponto está indicado na Figura 1 por um círculo azul. A partir dessa localização, foi realizada a sondagem do seu entorno para tentar identificar os locais onde seria encontrada a população em situação de rua. Essa fase foi realizada nos meses de janeiro e fevereiro de 2016.

No primeiro momento, a observação de campo foi realizada a pé, saindo da Rua Antonio Augusto, na esquina com Avenida Historiador Raimundo Girão, seguindo as ruas próximas à praia em direção leste (seta laranja da Figura 1), chegando até Avenida Desembargador Moreira, um trecho de aproximadamente dois quilômetros. A escolha desse

limite deveu-se à maior distância do mar a partir desse local, mudando também a organização turística, que passa a exercer menor influência. É importante destacar que esse trajeto está a poucos metros do mar, havendo grande fluxo turístico em toda a região.

Essa caminhada inicial foi importante para percebermos as configurações da estrutura urbana da região, com objetivo de identificar a ocupação por parte de Moradores de rua ou vestígios da sua presença. Observou-se que quanto mais afastado do ponto inicial, mais se percebe uma configuração urbana voltada para as classes sociais mais elitizadas da cidade. Trata-se de uma das áreas mais nobre de Fortaleza, onde percebemos uma intensa verticalização da cidade, são vários edifícios residenciais e comerciais, disputando a vista do mar e a brisa da praia, quase não há casas, não foram vistos terrenos baldios ou abandonados e poucas pessoas caminhavam na rua. Os estabelecimentos comerciais da região parecem voltados para o mesmo público que mora nesses prédios ou para turistas que estão dispostos a investir muito na viagem. Ou seja, não se observou configuração socioespacial na qual a população em situação de rua encontra lugar.

Figura 1: Locais onde foram realizadas as ações de campo.

No sentido contrário, ou seja, quanto mais próximo do ponto de partida, a configuração urbana mostrou-se menos homogênea, havia grandes arranha-céus e estabelecimentos comerciais elitizados, mas também casas grandes e pequenas, terrenos ainda sem construções, estabelecimentos comerciais com produtos e valores mais populares e diferentes pessoas andando nas ruas (conforme exemplo na Figura 2). Posto que suas configurações mostram-se mais habitáveis para o modo de vida na rua, foi nesse território onde encontramos nosso público, seja caminhando, estabelecendo estadia fixa, trabalhando, tomando banho, dormindo, almoçando, interagindo com moradores das casas e comerciantes.

Figura 2: Configuração socioespacial

Fonte: fotografado pelo autor

Assim, foi delimitada uma área geográfica para investir na leitura socioespacial, essa região foi formada inicialmente por um trecho composto por três ruas paralelas, delimitadas por duas outras, formando uma área retangular, conforme indicado pelas linhas vermelhas da Figura 1.

Na Rua Antonio Augusto, foi identificado um grupo de homens em situação de rua, fazendo uso de drogas próximo a dois grandes terrenos que na época estavam abandonados, agora, cinco meses depois, um deles foi transformado em estacionamento, mudando a ocupação das pessoas em situação de rua na região. Na Rua Deputado Moreira da Rocha, foram vistos alguns recicladores andando com suas carroças, mas sem fixar-se em

nenhum ponto específico. Um deles estava em frente a uma casa, recebendo de uma mulher idosa um copo com caldo. Na Rua Ildefonso Albano, foram vistas duas pessoas dormindo na área externa de um estabelecimento comercial abandonado, também foram percebidos vestígios de preparo de alimento em outro ponto da mesma rua (verificar nas figuras 3 e 4). Na Rua Barão de Aracati, foi visto um grupo de aproximadamente doze pessoas em situação de rua, o qual foi o público com quem foi estabelecido o primeiro contato direto.

Figuras 3 e 4: Configuração socioespacial.

Fonte: Fotografado pelo autor

Essa foi nossa percepção inicial do cenário de ocupação da região por Moradores de rua. Entretanto, essa configuração foi mudando ao longo do tempo, pois o tecido urbano está em constante transformação e as pessoas que vivem na rua precisam adaptar-se a essa dinâmica.

Como fruto dessas mudanças socioespaciais, depois de algumas visitas a campo, principalmente em fevereiro de 2016, outras três referências foram incorporadas a essa sondagem, são as ruas Francisco Virgílio Vasconcelos e Camocim, e a Travessa Jacinto, conforme indicado na Figura 1. Trata-se de ruas muito parecidas em sua estrutura, mas

também na dinâmica social. Há pouco movimento de pedestres e carros, são silenciosas, apresentam pontos de sombra, as calçadas são largas, quase não há casas, predominando prédios e muros.

Os pontos verdes representam os locais onde ocorreu a aplicação do instrumental utilizado para a pesquisa. Destacamos que na Travessa Jacinto foi como realizada uma aplicação experimental, que nos orientou quanto a treinar o uso do IGMA, por isso os resultados não foram inclusos na análise.

Toda essa região parece fazer parte de um conjunto de opções de ocupação das pessoas na rua, pois ali estabelecem relações sociais e de sobrevivência. Provavelmente, de alguma forma, passaram a fazer parte do modo de vida da região, não apenas imprimindo sua forma de viver na Praia de Iracema, mas tornando-se também necessários para a dinâmica de funcionamento do lugar.

Quando, por algum motivo, precisam abandonar um ponto específico onde estejam instalados em uma dessas ruas, tendem a procurar outros pontos dentro desses limites geográficos ou bem próximos a eles. Um exemplo disso foi visto logo durante as primeiras visitas a campo.

O grupo da Rua Barão de Aracati, cuja localização está indicada pelo círculo azul da Figura 1, foi inicialmente pensado como uma referência para encontrar participantes para a pesquisa, porém, foi alvo de uma ação de “despejo” logo depois das primeiras visitas. O proprietário da casa em cuja calçada estavam acionou a polícia para tirá-los de lá, e os policiais assim o fizeram. Esse grupo mostrava um grande potencial para a compreensão da dinâmica da vida nas ruas, era composto por aproximadamente doze pessoas, entre as quais, duas mulheres, duas crianças e alguns homens. Eles estavam instalados numa larga calçada de uma das maiores residências da região. Esse padrão de moradia não é mais comumente encontrado na região, dada a forte especulação imobiliária para a verticalização dessa área.

O grupo tinha alguns pertences, tais como: colchões, fogareiro, bolsas e sacolas, panelas, além dos materiais da reciclagem, atividade econômica predominantemente dos homens. Ali ficavam estacionados os carrinhos usados para a reciclagem, bem como alguns materiais coletados para, depois de juntar um volume maior, serem levados para o local de venda. Entre essas pessoas, havia algumas que eram familiares a mim por causa do período de trabalho na rua, outros, porém, não me conheciam.

Os motivos para o desmonte desse acampamento foram as brigas entre alguns de seus membros, o uso de drogas e a presença de pessoas que, depois de praticarem furtos,

procuravam se esconder ali. Com isso, ninguém mais permaneceu no local, todos se dispersaram para outros lugares e a maioria não foi vista novamente. Três remanescentes foram encontramos vagando pela região, segundo eles mesmos, em busca de outro lugar para juntar novamente a todos. Esses são os que informaram da ação policial, porém mesmo eles depois de algum tempo, não foram mais avistados. Quando isso ocorreu, foram realizadas algumas buscas nas áreas próximas, inclusive saindo do território de sondagem, mas somente duas outras pessoas foram encontradas no extremo oposto, quase na areia da praia. Eles formaram um novo acampamento, bem menor que o primeiro.

Fonte: Fotografado pelo autor.

Esse novo ajuntamento era localizado na Rua Camocim e estava sendo composto por quatro homens e uma mulher, que se agregou depois. Eles afirmaram manter algum controle sobre a ocupação ali, definindo que o local suportava apenas eles, caso contrário, iria juntar muitas pessoas, chamando a atenção dos proprietários dos imóveis próximos. As figuras 5 e 6 mostram as fotografias desse lugar, a primeira (acima) apresenta como os materiais são organizados, a segunda (abaixo) mostra como fica o lugar depois de um período de chuvas.

No comparativo entre as fotos, podemos observar como as chuvas causam grande impacto para a organização do espaço e a guarda de pertences, incluindo os produtos da reciclagem. O lugar escolhido por eles mostra-se contraditório em comparação ao que é esperado da estrutura urbana da região, pois apesar de estar a poucos metros de uma das regiões que mais passou por investimentos urbanísticos recentes, tanto em relação à malha viária, como na estrutura para o turismo no calçadão da Praia de Iracema. Segundo o relato de Teco, esse é um lugar referência para vários Moradores de rua em outros tempos. Ele falou ainda, que conhece a região há aproximadamente doze anos, quando ainda não tinham sido construídos a maioria dos muito prédios da região e muitas famílias ficavam ali. Seu relato mostra certo saudosismo de sua adolescência, quando tinha acesso a vários terrenos abertos, onde usufruíam das árvores frutíferas e dos poços.

O muro apresentado nas fotografias é de um terreno particular, alvo do interesse da especulação imobiliária, conforme relatou Canindé. Esse terreno faz claro contraste com os

vários prédios do entorno, alguns deles se veem facilmente na fotografia. Embora não haja impedimentos para que Teco e os outros permaneçam ali, esse lugar não se parece com os que relatou do período da sua adolescência.

Teco disse ser o que anda naquela região há mais tempo, afirmou que há mais ou menos 12 anos não tinham tantos prédios ali, havia terrenos abertos, com poços e árvores frutíferas. Apontou para um local onde hoje há um moderno arranha-céu perto de onde estávamos, disse que ali mesmo ficavam várias pessoas da rua dormindo debaixo de um tamarindeiro que fazia grande sombra (DC 14/04/2016, linhas 693-698).

Para Teco e outros que habitam a região há mais tempo, as memórias fazem parte dos aspectos afetivos que os liga a esse lugar.

Em outro local próximo dali, na Rua Francisco Virgílio Vasconcelos, detrás da Rua Camocim, também foi observada a presença de pessoas em situação de rua. Essa região passou pelas mesmas transformações imobiliárias citadas, porém, não “sobrou” nenhum terreno, havendo vários prédios, conforme mostram as fotografias das figuras 6 e 7, a seguir.

Conforme pode ser observado na Figura 1, que mostrou o mapa da região, essas duas ruas estão bem próximas uma da outra, apresentam apenas um quarteirão e parecem corresponder à mesma área. Entretanto, há diferenças estruturais, que podem ser percebidas pelas fotografias, e de uso da população de rua, observadas nas visitas de campo.

Figuras 7 e 8: Comparativo entre as ruas Francisco Virgilio Vasconcelos (esquerda) e Camocim (direita)

Fonte: Fotografado pelo autor.

Na Rua Camocim, poucas pessoas e carros transitavam, senão aqueles que tinham alguma ligação com o luxuoso hotel localizado na esquina, em frente ao mar. Com relação à população em situação de rua, somente foram observados os responsáveis pelo acampamento relatado anteriormente.

Já a Rua Francisco Virgílio Vasconcelos mostrou aspectos diversos, pois quase não havia trânsito de pessoas ou carros e várias pessoas em situação de rua foram vistas, porém não se constituiu ocupação permanente. Foram vistas várias pessoas dormindo aí, principalmente debaixo da árvore à esquerda, conforme mostra a Figura 8.

É uma rua de muita sombra e vento agradável que vem da praia, parece favorecer o sono da tarde, como o casal está mostrando. Em outro dia, foi visto um homem em situação de rua dormindo no mesmo local. Já em outra ocasião, outro homem estava também dormindo debaixo da mesma árvore, porém não estava em situação de rua parecia trabalhar como entregador, pois estava usando um fardamento e tinha um carro de entregas estacionado ao lado. Talvez apenas estivesse descansando no final de um dia de trabalho.

Nessa mesma rua, encontrei-me com Adão, que estava almoçando e dividindo sua comida com alguns pombos. Essa parte da Praia de Iracema parece mostrar uma configuração bem peculiar, que talvez favoreça à necessidade de pausa na cidade. Mesmo entre as pessoas que vivem na rua, que vivem talvez as mais extremas situações de exclusão, é necessário haver lugares como este, onde as sutilezas humanas encontrem lugar.

Figura 9: Casal dormindo na Rua Francisco Virgílio Vasconcelos

Fonte: Fotografado pelo autor.

Finalizamos com a hipótese de que as pessoas em situação de rua procuram as regiões de maior circulação de pessoas e bens na cidade, que estão entre as áreas mais nobres, para fugir das situações de instabilidade e abandono das suas comunidades de origem, e assim imprimem um modo próprio de existir na cidade. Estando nas áreas nobres, apesar de não enfrentarem os problemas comuns das grandes periferias das cidades brasileiras, como má pavimentação das ruas, falta de saneamento e esgoto, problemas com acesso a energia elétrica e água encanada, entretanto, o que lhes resta nesses lugares é uma ocupação excludente, na qual somente lhes é possível apropriar-se dos espaços mais degradados e esquecidos, pelo menos até que esses lugares despertem os interesses do capital, quando novamente irão perder essa referência espacial.

Além disso, as poucas e frágeis oportunidades de trabalho na periferia contrastam com as diversas formas de geração de renda das áreas nobres, como apontaram alguns participantes, que na rua não é difícil formas de sobrevivência, em contraponto, a mesma atividade na periferia não gera o necessário para subsistência. Um exemplo foi o trabalho de reciclagem, pois o lixo produzido pelos mais ricos é mais lucrativo que o produzido pelos mais pobres, foi o que mostrou um dos respondentes. Ou seja, os Moradores (da Praia de Iracema em situação) de rua estão em uma região símbolo dos avanços urbanísticos e estruturais da cidade, porém não podem gozar dessas “conquistas”, eles ficam com o que

resta, mesmo que para isso ocupe os lugares menos estruturados e os postos de trabalho mais desgastantes. Entretanto, a relação dessas pessoas com a rua mostra que também há aspectos potencializadores na rua, caso contrário não seria um lugar de presença constante de pessoas em situação de rua. Para entender melhor esses aspectos, a afetividade do lugar foi analisada segundo o Instrumento Gerador dos Mapas Afetivos (IGMA).