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PARTE I. ENQUADRAMENTO CONCEPTUAL

4. Promoção da leitura: o papel da BE

4.3. Ler na escola

“A escolaridade, pela sua filosofia e enraizamento, tem configurado a leitura como uma obrigação institucional” (Cadório, 2001, p. 28). Na verdade, as pessoas aprendem a ler, porque têm de saber ler, mas não têm o hábito de ler, nem leem porque querem e por prazer. Ler é uma obrigação, instituída pela escolarização da leitura. A nossa sociedade, como diz Cadório, dissocia dever de prazer, assim, o que se faz por obrigação não pode ser usufruído ou despertar o prazer.

Logo, cabe à escola reequilibrar estes dois pratos da balança, pois para se ler é preciso aprender, mas também é preciso ter-se prazer, pois, como dizia Bachelard, “Nada se faz bem contra a vontade, isto é, contra o sonho”.

Temos ainda que ter em atenção que a aprendizagem da leitura, dita literal, a mais básica, faz-se certamente nos primeiros anos de escolaridade, mas não termina aí, outros níveis, outras exigências de leitura ser-nos-ão colocadas ao longo da nossa vida. A leitura é um processo de aprendizagem que nunca termina e que só se fomenta com o hábito.

Qual o papel do professor neste processo de aprendizagem? Deverá ser sempre o de mediador, o de alguém que apoia, que está a aprender, facultando ambientes variados e ricos de leitura. Como defende Isabel Nina no seu estudo, “a escolarização da leitura

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“mata” o prazer de ler, pois a criança é obrigada a fazer atividades de leitura que, por vezes, não lhe são aprazíveis. No entanto, parece-nos importante referir que a escola tem como função principal o desenvolvimento de competências que permitam ao aluno adquirir conhecimento e aprender a aprender ao longo da vida. Para desenvolver as competências leitoras é necessário treino e trabalho, tal como já foi mencionado (Nina, 2008, p. 20).

Assim, poderemos, citando José António Gomes, que recorre num seu artigo sobre promoção de leitura às palavras do grupo Peonza, afirmar que “o acto de ler, longe de ser mecânico, é uma operação que implica a pessoa no seu todo: inteligência e vontade, fantasia e sentimentos, passado e presente” (2012, p. 4). Podemos ainda acrescentar que a leitura, para além de favorecer a integração sociocultural dos indivíduos, permite o reforço do “processo de maturidade através da autonomia intelectual, sendo garantia também da liberdade pessoal do leitor” (Gomes, 2012, p. 4). Se a leitura depende claramente da vontade do leitor e é garantia da liberdade pessoal do leitor, a leitura autónoma pode ser mais profícua do que a leitura escolarizada. A leitura autónoma depende da escolha livre do leitor e a segunda, a escolarizada, é, desde o início, determinada por alguém que impõe a sua escolha ou a escolha de um sistema educativo ao leitor, o que se pode tornar um entrave à motivação para a leitura.

Assim, para se desenvolver a leitura escolarizada, cabe ao professor, no início de cada ano escolar diagnosticar os conhecimentos, as capacidades, os hábitos, interesses e expectativas – objeto do nosso estudo –, para além de diagnosticar as dificuldades. Traçado o perfil inicial do aluno, o professor delineia as estratégias adequadas ao grupo turma e a cada aluno.

Charmeux (1985), referenciada por Cadório, alerta para aspetos primordiais a que o professor deve dedicar a sua observação, nomeadamente a tipologia de dificuldades de leitura (2001, p. 45). As dificuldades de leitura são diferenciadas em três tipos: as afetivas, as cognitivas e as pragmáticas. As afetivas prendem-se com a “rejeição de ler”, pela ausência de contato com situações de leitura, pela recusa dos conteúdos e pela associação da leitura a uma situação escolar (Cadório, 2001, p. 44). No que diz respeito às dificuldades cognitivas, derivam do desconhecimento das “regras de funcionamento dos textos” (ibidem) e de construção de sentido. As dificuldades pragmáticas acabam por derivar das anteriores e têm a ver com o comportamento perante a leitura. Primeiro, a ausência de exercício de capacidades de raciocínio e

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consequentemente um fraco desenvolvimento das capacidades de perceção, o que, em conjunto, conduz a comportamentos repetidos de insucesso face à atividade de leitura.

Leonor Cadório defende que uma das estratégias que mais envolve os alunos com a leitura consiste na dinamização de aulas que liguem “a escola e o mundo real”, de forma autodirigida e implicando uma aprendizagem cooperativa (2001, p. 45). A mesma autora, citando o estudo de Stewart et al. (1996), que questionava os alunos, após um programa de leitura, sobre os fatores que os levaram a mudar comportamentos em relação à leitura, enumera quatro causas: o fato de poderem escolher as obras e o interesse que consequentemente lhes despertaram, para além do “tempo dado para a leitura e a prática que se adquire” (Cadório, 2001, p. 45).

Esta mesma perspetiva é defendida por Glória Bastos, quando questiona e dá resposta à questão: “De que forma, então, é que a escola em particular a leitura pode constituir um precioso auxílio na criação de actividades estruturantes e disciplinadoras do potencial criativo dos nossos alunos?” (1999, p. 288) Prossegue, começando a responder à questão, que o primeiro passo deve ser a apresentação à turma de um “itinerário fundamental” que será percorrido ao longo do ano e que é desenhado de acordo com as capacidades dos alunos, demonstrando como os diferentes momentos e etapas se articulam com esse “eixo principal”, dotando as aprendizagens e as atividades escolares de um sentido. É neste divórcio entre a escola e a vida real que reside uma das principais razões do insucesso escolar. Na maioria das vezes, o aluno não é capaz de transferir o que aprende para a sua vida, como se escola e vida fizessem parte de compartimentos estanques. Há que dotar as aprendizagens e atividades escolares de sentido, bastando para tal ajustá-las à vida do aluno e da sociedade, e explicitar esse sentido ao aluno.

Por isso, o segundo pressuposto que serve de resposta à questão formulada por Glória Bastos, é que a “leitura, ela deverá estar intimamente relacionada com a vida e a actualidade” (1999, p. 288). Uma das formas de concretizar esta ligação é trazer para a escola os autores do nosso tempo, pois, segundo a autora, durante muitos anos, a “literatura era algo feito pelos “mortos”, que a escola “desenterrava”, mas inevitavelmente afastado da vida” (ibidem).

Neste ponto, devemos concordar com a autora, é vital, nos dias de hoje e para os mais jovens, aproximar o lido do mundo vivido, mas relembrar também que ao ter-se caído no extremo oposto, ao ter-se banido dos primeiros anos de escolaridade os

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“mortos”, os alunos perderam as referências culturais e de identidade coletiva. Por algum motivo, esses “mortos” são aqueles que o cânone denomina como Clássicos. Retomando a etimologia da palavra, em latim, clássico deriva de classis, aula, sala de aula e tudo quanto é clássico é aquilo que se torna pelo valor estético, ideológico, estrutural, digno de ser ensinado numa sala de aula. Sem querermos ser exaustivos nesta questão, que já foi abordada em ponto anterior, relembramos que Calvino responde a esta questão em “Porquê ler os Clássicos?”, texto cuja pertinência e relevância se assume como um “clássico” nesta matéria.

Recordemos, apenas que:

Os clássicos são livros de que se costuma ouvir dizer: «Estou a reler…» e nunca «Estou a ler…»"; "Um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer"; "Os clássicos são livros que quanto mais se julga conhecê-los por ouvir falar, mais se descobrem como novos, inesperados e inéditos ao lê-los de facto"; "É clássico o que tiver tendência para relegar a actualidade para a categoria de ruído de fundo, mas ao mesmo tempo não puder passar sem esse ruído de fundo. (Calvino, 1994, pp. 7-12)

Neste ponto, recorrendo aos clássicos, mas aos filósofos gregos, diríamos, quer aos que defendem que os “mortos” devem ser afastados da escola, quer àqueles que defendem que apenas os “clássicos” é que devem entrar na “classe”, μηδὲν ἄγαν (mêden agan), nada em excesso, o justo equilíbrio de ambas as coisas. E, no fundo, é isto que quer estudiosos, quer grupos com responsabilidades político-educativas, têm vindo a defender e a formalizar.

Outra forma da “leitura constituir um precioso auxílio na criação de actividades estruturantes e disciplinadoras” (Bastos, 1999, p. 288) é a organização por temas ou projetos. Esta atividade é estruturante, permite a evolução por etapas, o relacionamento, a comparação e o surgimento de livros e textos de diferentes tipologias com um elo de ligação. Tem ainda a potencialidade de facultar o trabalho interdisciplinar, através de projetos “literature-based-programs” (Bastos, 1999, p. 289), populares nos Estados Unidos, que organizam, em torno de uma temática comum e projeto de leitura, atividades escolares de diferentes áreas do saber.

A derradeira proposta de Bastos, baseada em Renée Léon, consiste na criação de espaços de “leitura para si” e de “leitura para os outros” ou partilhada. No primeiro tempo de leitura, desenvolve-se a leitura individual, livre e silenciosa, por prazer e liberta dos constrangimentos de uma avaliação. No segundo tempo de leitura, a leitura

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orientada toma lugar para estabelecer a “circulação de informação”. Nesta leitura orientada entra a leitura em voz alta, uma apresentação de um livro, uma apreciação crítica, entre outras atividades devidamente antecedidas de uma preparação.

A avaliação da leitura, do ponto de vista curricular, pode tornar-se num constrangimento à aproximação do aluno da mesma, se quisermos desenvolver o gosto e o hábito. Mesmo em situação de leitura analítica, crítica e funcional, há que ponderar sobre os critérios e instrumentos de modo a não se obter “consequências pervertedoras” (Cadório, 2001, p. 45). Em primeiro lugar, é preciso que sejam traçados objetivos significativos de aprendizagem, estratégias adequadas, com atividades e recursos bem selecionados que demonstrem o valor e interesse da leitura.

Sequeira termina o seu artigo, “A literacia em leitura” (2002), dizendo que: A bem de uma política de rigor no acompanhamento dos nossos jovens para uma vida de sucesso através de cultura, que é proibido:

– Que cada escola não tenha uma biblioteca;

– Que os professores não saibam como ensinar uma criança a ler; – Que o professor não leia;

– Que o professor não estimule o gosto pela leitura; – Que a criança não goste da escola;

– Que a educação não seja a prioridade financeira no nosso país. (p. 59)

Devemos salientar, à semelhança do que faz Lino Moreira da Silva (2002), que o ensino aprendizagem da leitura, não é função apenas do professor de língua materna, mas de todos os professores. Ao professor de português cabe, sem dúvida, a mediação da leitura literária, mas, no que diz respeito à leitura funcional ou dos “textos utilitários” – aqueles que são constituídos, segundo I. Lotman (1978) por um “mecanismo organizado de um modo particular, possuindo a faculdade de conter uma informação com uma concentração excepcionalmente elevada” (Silva, 2002, p. 143) – deve igualmente ser objeto de atividades de leitura nas restantes disciplinas curriculares.

Lino Moreira da Silva diz ainda que o “texto literário, esse “companheiro de viagem da humanidade, ao longo da sua existência histórica” (Lotman, 1978, p. 25), terá mais oportunidade na aula de línguas” (2002, p. 144), sublinhando, porém, que a sua abordagem deve ser feita na interligação com textos de outras tipologias, numa perspetiva interativa, “tendo como objetivo aprender a ler e aproveitar com essa aprendizagem” (Silva, 2002, p. 144).

Mais uma vez, a formação dos professores, sobretudo os da área científica, é deficitária no âmbito do ensino aprendizagem da leitura e mesmo o trabalho dos “textos

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utilitários” ou científicos é feito de forma muito incipiente, pois sistematicamente se desresponsabilizam de ensinar os alunos a lerem. Como frisa Lino Moreira da Silva, “a realidade da leitura, a que se pratica e a que se omite, é muitas vezes objecto de reparos por parte dos professores, em lugar da acção que esperávamos e a que eles se encontram obrigados” (2002, pp. 144-145).

Terminamos este capítulo com as palavras de Lino Moreira da Silva sobre leitura na escola, pois traduzem tudo o que defendemos: “Uma escola sem fundamentação dos saberes da leitura perderá muita da sua razão de ser, e dela os nossos jovens não poderão prescindir. Também nesse sentido se deverá desenvolver o esforço de todos os professores da escola, não sendo a prática da leitura pelouro de nenhuma área disciplinar em especial, mas de todas” (Silva, 2002, p. 143).