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LETRAMENTO: DIMENSÃO SOCIAL E COGNITIVA

2.1 O LETRAMENTO COMO PRÁTICA SOCIAL

A palavra letramento tem tido ampla aceitação nos últimos anos nos meios acadêmicos. Talvez a incorporação de seu uso ainda não seja tão intensa em uma esfera onde ela deveria ser mais debatida e pensada: a escola.

Apesar de seu ingresso no nosso repertório lexical ser relativamente

recente , não causa estranheza, nem incompreensão sua ocorrência em

contextos discursivos orais ou escritos, até mesmo para pessoas que não estejam diretamente envolvidas com esse objeto de estudo. Ora, nada mais previsível, porque o sentido de seu radical letra-mento já remete a letras, leitura, escrita e à condição de ser proficiente em leitura e escrita.

Por outro lado, a distinção entre letramento e alfabetização ainda não é tão bem compreendida por todos, levando algumas pessoas a usarem um termo por outro como se fossem sinônimos. É nesse ponto que reside o equívoco. Inicialmente ________________________

5 - Ângela Kleiman atribui a Mary Kato o pioneirismo do uso do termo em 1986, com seu livro

No mundo da Escrita: uma perspectiva psicolingüística, Editora Àtica. Magda Soares lembra

também que dois anos mais tarde, Leda Verdiani Tfouni distingue alfabetização de letramento, em seu livro Adultos não alfabetizados:o avesso do avesso, Editora Pontes. Soares, salienta ainda,ter sido esse o momento em que letramento ganha estatuto de termo técnico no léxico dos campos da Educação e das Ciências Lingüísticas.

porque o termo que poderia ter sido usado como correlato seria alfabetismo, mas isso não ocorreu porque a palavra alfabetismo não teve seu uso difundido e incorporado com o sentido que lhe era devido.

Alfabetização tem o sentido mais restrito. É a ação de alfabetizar, de tornar o indivíduo capaz de ler e escrever. Trata-se de um processo mais específico, que diz respeito à aquisição e à apropriação do sistema da escrita, alfabético e ortográfico. Letramento, por sua vez, tem uma acepção bem mais ampla. Admite-se que seja bastante difícil definir com precisão o termo, uma vez que se trata de um fenômeno que envolve uma gama de conhecimentos, habilidades, capacidades, valores, usos e funções sociais da leitura e da escrita.

Segundo Soares (1998, p.39), um indivíduo alfabetizado não é necessariamente um indivíduo letrado; alfabetizado é aquele indivíduo que sabe ler e escrever; já o indivíduo letrado, o indivíduo que vive em estado de letramento, é não só aquele que sabe ler e escrever, mas aquele que usa socialmente a leitura e a escrita, pratica a leitura e a escrita, responde adequadamente às demandas sociais de leitura e de escrita.

Ainda assim, essa distinção é mais complexa do que aparenta ser. Um sujeito pode ser alfabetizado, saber ler e escrever, mas não ser letrado, por não utilizar socialmente suas habilidades de leitura e de escrita.

É nesse ponto que o problema da distinção entre essas duas condições se torna mais dramático. Para Soares (1998, p.48) o letramento envolve dois fenômenos diferentes: a leitura e a escrita, cada um deles muito complexo, por serem constituídos de uma multiplicidade de habilidades, comportamentos, conhecimentos. Os dois processos são representados por um longo e complexo

continuum que se inicia quando alguém é capaz de ler e escrever um bilhete e

se prolonga até um nível mais evoluído onde já lhe é possível ler e compreender um ensaio crítico, bem como escrever um artigo científico.

Há, portanto, diferentes tipos e níveis de letramento, que serão determinados pelas necessidades do indivíduo e do seu meio, do contexto social e cultural. Por essa razão, não se pode apontar com precisão o ponto exato do continuum que indica quando o sujeito deixa de ser apenas alfabetizado e passa a ser letrado.

Para Barton e Hamilton (2000, p.9), em um sentido mais restrito, define-se o nível de letramento das pessoas em função dos usos que elas fazem da escrita. Letramento então, “é melhor entendido como um conjunto de práticas sociais observáveis em eventos mediados por textos escritos.”

Segundo os autores, “os usos do letramento são determinados por instituições sociais e relações de poder, logo, alguns tipos de letramento são mais dominantes, visíveis e influentes do que outros” (2000, p.12) . Uma dessas instituições é a escola que dá suporte a práticas de letramento dominantes.

A escola aprofunda ainda mais as desigualdades existentes entre os alunos, quando adota um currículo único – baseado nessas práticas de letramento dominantes – para trabalhar com alunos oriundos de diferentes realidades sociais, sem levar em conta os diferentes níveis de letramento existentes na sociedade. Tais práticas criam problemas de aprendizagem da modalidade escrita em sua fase inicial.

Um outro problema que tem implicações no domínio precário das competências de leitura e de escrita apresentado por nossos alunos em geral, diz respeito, segundo Soares (2003) ao equívoco que vem ocorrendo, com certa freqüência, no sentido de considerar os dois processos (letramento e alfabetização) como independentes e autônomos.

Esse fato levou a distorções metodológicas em sala de aula, motivadas por uma falsa percepção de que um desses processos poderia ser desenvolvido satisfatoriamente, sem levar em conta as especificidades do outro, o que levou a priorizar o letramento – num determinado momento histórico – em detrimento da alfabetização.

Soares (2003) sugere a “reinvenção da alfabetização” como forma de reconciliação entre esses dois processos, de modo que eles ocorram simultaneamente:

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6 – No original: “ In the simplest sense literacy practices are what people do with literacy.(…) literacy is best understood as a set of social practices: these are observable in events that are mediated by written texts.” ( BARTON & HAMILTON, 2000, p.9)

7 – No original: “(…) Literacy practices are patterned by social institutions and power relationships, and some literacies are more dominant, visible and influential than others. (op. cit, p.12)

Por outro lado, o que não é contraditório, é preciso reconhecer a possibilidade e necessidade de promover a conciliação entre essas duas dimensões da aprendizagem da língua escrita, integrando alfabetização e letramento, sem perder, porém, a especificidade de cada um desses processos, o que implica reconhecer as muitas facetas de um e outro e, conseqüentemente, a diversidade de métodos e procedimentos para ensino de um e de outro, uma vez que, no quadro desta concepção, não há um método para a aprendizagem inicial da língua escrita, há múltiplos métodos, pois a natureza de cada faceta determina certos procedimentos de ensino, além de as características de cada grupo de crianças, e até de cada criança, exigir formas diferenciadas de ação pedagógica.(SOARES, 2003, p.19)

A autora justifica seu posicionamento em função das conseqüências advindas da mudança paradigmática ocorrida nas décadas de 80 e 90 do século passado, quando houve uma significativa adesão à abordagem cognitivista da alfabetização, divulgada pelos trabalhos de Emília Ferreiro e Ana Teberosky, e identificada, aqui no Brasil, como construtivismo, ou socioconstrutivismo. Apesar de reconhecer os avanços e contribuições que essa proposta trouxe na área da alfabetização, Soares (2003) aponta alguns equívocos decorrentes dela.

O primeiro equívoco relaciona-se ao fato de que, ao privilegiar os aspectos psicológicos da alfabetização – mais precisamente o processo de construção do sistema da escrita pela criança – obscureceu-se seu aspecto lingüístico fonético e fonológico.

O segundo equívoco diz respeito à conotação negativa atribuída ao conceito de método de alfabetização, como se os métodos de alfabetização (sintético e analítico) fossem os responsáveis pelos problemas na aprendizagem da leitura e da escrita. O terceiro, refere-se à dissociação dos processos de alfabetização e letramento, como se, nesse último, pudesse ocorrer de forma incidental e natural a aprendizagem de objetos de conhecimento que são convencionais e arbitrários – o sistema alfabético e o sistema ortográfico.

Cremos que, atualmente, a orientação que deva ser dada aos professores se encaminhe no sentido de alfabetizar – aquisição do sistema da escrita – visando ao letramento, ou seja: inserindo, desde cedo, o aluno em efetivos contextos de letramento, oferecendo-lhe condições de interagir cooperativamente em nossa

sociedade letrada por meios de textos significativos e que circulem em diferentes esferas de conhecimento. Essa orientação inicial, um pouco mais uniforme, não garante que o sentido de letramento não vá se modificando ao longo da trajetória escolar e social de cada aluno. Determinado sujeito pode ser considerado letrado em um contexto social específico, já em outra situação, que demande diferentes práticas, essa mesma condição de letramento pode não receber a mesma conotação, mas não será tampouco ignorada ou desqualificada .

A escola deve ter uma idéia bem clara a respeito da concepção plural que o letramento abriga. Também não pode se esquecer de que a escrita é uma prática funcionalmente orientada. Só dessa forma os nossos alunos estariam mais aptos a usar socialmente a leitura e a escrita .