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2 LINGUÍSTICA APLICADA E MULTILETRAMENTOS

2.2 LETRAMENTOS E MULTILETRAMENTOS

2.2.2 Letramento como prática social

Entendemos, em consonância com os autores citados, que o alfabetismo diz respeito às habilidades individuais, cognitivas ou linguísticas, aprendidas no contexto escolar ou acadêmico, enquanto que letramento, diz respeito aos usos e práticas de linguagem por meio da escrita, nos diversos contextos sociais, inclusive na escola. Nesta subseção, portanto, focamos nos estudos sobre letramento que consideram a escrita para além da técnica, levando em conta as competências de seus usos sociais, que ganharam visibilidade com os novos estudos sobre letramento (NEL/NLS).

Segundo Barton (1994), com os interesses de diversas áreas nos estudos sobre letramento, surgiram expressões como “letramento digital”, “letramento visual”, “letramento político”, etc., designando os diversos aspectos que envolvem as práticas de leitura e de escrita. Logo, o grande segredo para entender letramento seria situar a leitura e a escrita em contextos sociais. Nesse caso, reconhecemos que o letramento não existe no singular, pois a sociedade grafocêntrica permite a existência de múltiplos letramentos, como defendem Street (2014[1995]) e Hamilton, Barton & Ivanic (1993), que foram os inauguradores dos conceitos ligados aos estudos sobre letramento; enquanto que, no Brasil, nomes como Kleiman (1995), Rojo (2009), Soares (1995), Marcuschi (2001), etc. aprofundaram e ampliaram as reflexões relacionadas à temática.

Segundo os autores, as práticas de usos da escrita não se limitariam à escola, e sim, as que ali existem, fazem parte de um tipo específico de letramento, o letramento escolar, enquanto que as demais esferas cotidianas da vida permitem a existência de uma infinidade de tipos de letramento ligados às atividades e aos contextos dos cidadãos que vivem em sociedade. Isso reforça a ideia de que igrejas, shoppings, museus, tribunais, casas, parques, por exemplo, possibilitam relações sociais, por meio dos usos da escrita, que caracterizam tipos diferentes de letramentos.

Muitos dos apontamentos trazidos contemplaram o campo de estudos da linguagem a partir da obra precursora – a qual se prontificou a determinar os letramentos como práticas sociais – de Brian Street. Com a obra de Street (1984) são iniciados os Novos Estudos sobre Letramento. Essa nova vertente de pesquisas foi um movimento consolidado por volta dos anos de 1990, confrontando-se com a predominância da tradicional visão da linguagem, que tinha um enfoque limitado ao código linguístico e às capacidades individuais, e aos antigos pressupostos que consideravam dicotômicas a relação oralidade x escrita, supervalorizando esta em detrimento daquela, fatores criticados por Street (1984).

Nesse novo movimento, Street (1984) postulou dois modelos para os estudos do letramento, o modelo autônomo e o modelo ideológico, e, dois constituintes do letramento, os conceitos de eventos de letramento e práticas de letramento, cunhados por Heath (1983) e Street (2003), respectivamente.

Segundo Street (1984), o modelo autônomo considera o letramento “em termos técnicos, tratando-o como independente do contexto social, uma variável autônoma cujas consequências para a sociedade e a cognição são derivadas de sua natureza intrínseca”, ou

seja, é visto como um fenômeno individual, tendo como foco o sujeito e não o contexto social em que ele está inserido e opera utilizando a escrita. Ainda, Street (2001), nos diz que

o ‘modelo autônomo de letramento’ funciona a partir do pressuposto de que o letramento ‘per se’ – autonomamente – terá efeitos em outras práticas sociais e cognitivas. Entretanto, esse modelo, levando a crer que tais práticas são neutras e universais, na verdade mascara e silencia as questões culturais e ideológicas que a elas são subjacentes. (p. 7).

Ou seja, há uma total exclusão do caráter social do letramento, da natureza plural das práticas, fazendo com que esse modelo limite as diversas possibilidades sociais do letramento à única ideia de que o letramento existente é o escolar/pedagógico, ensinado e aprendido dentro dos muros da escola ou das instituições de caráter escolar. Isso nos faz concluir que a escola ensina por meio do modelo autônomo de letramento, considerando como individuais, à parte dos determinantes sociais, as diversas atividades que envolvem leitura e escrita.

O modelo ideológico de letramento, ao contrário do autônomo, considera “as práticas de letramento como indissoluvelmente ligadas às estruturas culturais e de poder da sociedade e reconhece a variedade de práticas culturais associadas à leitura e à escrita em diferentes contextos” (STREET, 1984, p.7). Assim, ele permite um olhar cultural sob as práticas de letramento, pois leva em conta que estas, enquanto sociais, são diferentes de acordo com o contexto, se modificando a cada momento histórico específico. Todo uso da escrita carrega um caráter social, histórico e cultural, e só com esse novo olhar, dado pelos integrantes dos NEL, é que o letramento passou a ser visto de forma contextualizada, compreendendo, agora, os usos sociais da escrita, suas relações de poder e seus aspectos culturais.

Pode-se constatar que, segundo o modelo ideológico, a compreensão sobre letramento varia de acordo com o tempo, a época e a cultura em que ocorre, portanto, algumas práticas, de contextos bem diferentes, são igualmente consideradas como letramento, mesmo que permitam poderes variados aos seus participantes e sejam valorizadas de diferentes formas. Esse enfoque, em nenhum momento, ignora a necessidade do conhecimento técnico da escrita, mas, ao contrário do autônomo, vai firmar a existência de diversos letramentos, construídos a partir das experiências dos sujeitos com/no mundo, mediados pela escrita. Para complementar essa reflexão, Buzato (2007), considera as atribuições de valor dadas ao letramento bastante conflituosas, quando nos diz que

Letramentos são práticas sociais, plurais e situadas, que combinam oralidade e escrita de formas diferentes em eventos de natureza diferente, e cujos efeitos ou consequências são condicionados pelo tipo de prática e pelas finalidades específicas a que se destinam. Também podemos dizer que a definição de quais letramentos são válidos como formas de ‘inclusão’ reflete os valores culturais e os hábitos linguísticos dos grupos mais poderosos no contexto social em que são praticados, e que a aquisição dos letramentos dominantes por grupos subalternos pode constituir-

se um processo conflituoso e simbolicamente violento, cujas repercussões são muito pouco previsíveis. (p.153-154).

Assim, esse modelo vai considerar a atuação social dos sujeitos, de acordo com as necessidades sociais, por isso letramento, no singular, não contempla as inúmeras possibilidades de letramentos existentes. O modelo ideológico fortalece a ideia de que letramento também abarca a oralidade, não apenas a escrita. Conforme Buzato (2007) “oralidade e escrita aparecem sempre entremeadas, diferentes códigos/registros linguísticos e modalidades semióticas se misturam, de modo que os sentidos da escrita são negociados interativamente, a despeito da natureza escrita do texto.” (p.152).

Na relação com o modelo ideológico, ganham espaço os conceitos de eventos de letramento e práticas de letramento. Tal como postulado por Heath (1983, p. 93), grifo da autora), “um evento de letramento é qualquer situação em que um portador qualquer de escrita é parte integrante da natureza das interações entre os participantes e de seus processos de interpretação”. Isso confirma a importância dessa noção, pois o letramento permite a interação, seja oral, com a mediação de escrita ou leitura, à distância, etc. o que nos mostra que, para entendermos o letramento como um todo, precisamos considerar as suas partes, e essas partes que o constituem e são observáveis, são os eventos de letramento particulares, mediados pela leitura ou escrita. Ou seja, nas atividades cotidianas os indivíduos participam de diversos eventos de letramento.

Quanto às práticas de letramento, Barton e Hamilton (2000) as consideram padrões culturais de uso de leitura e escrita que as pessoas realizam em situações particulares de sua vida diária. Ou mais especificamente, associando aos eventos de letramento, segundo Barton (1994), a partir do termo cunhado por Brian Street, “práticas de letramento são os modos culturais gerais de usar a leitura e a escrita que as pessoas produzem num evento de letramento”. Assim, definimos os eventos de letramento de forma particular, pois é o que é possível de se observar dos usos da leitura e da escrita pelas pessoas, enquanto que as práticas de letramento possuem um caráter mais amplo. Para clarear os conceitos, trazemos o exemplo: no universo de uma sala de aula existem eventos de letramento comuns a esse ambiente, como o registro na caderneta do nome dos alunos presentes, uma anotação no quadro ordenando os aniversariantes do mês, uma discussão entre professor e aluno sobre um artigo de opinião lido em uma revista, enquanto que as práticas de letramento estão ligadas às esferas discursivas, e cada esfera engloba uma série de eventos de letramento possíveis. No caso do exemplo dado, os eventos de letramento supracitados estão presentes nas práticas de letramento escolares.

É importante deixar claro que as diferenças conceituais apontadas são predominantemente de natureza metodológica. De fato, é o conceito de práticas de letramento que permitirá o conhecimento e a intepretação do possível evento de letramento atrelado a ela. Sobre isso, segundo Street (2001), “o conceito de ‘evento de letramento’ dissociado do conceito de ‘prática de letramento’ não ultrapassa o nível da descrição.” (p.11).

Entendemos, também, que os conceitos apresentados levantam possibilidades de refletirmos acerca dos letramentos diversos da sociedade, ultrapassando os limites do letramento escolar. Percebemos, portanto, que os estudos acerca dos letramentos, principalmente os que tomaram por base os pressupostos dos novos estudos sobre letramento, firmam a multiplicidade de práticas sociais por meio da oralidade ou escrita e o uso da língua ou linguagem das sociedades letradas. Acerca disso, Street (2003, apud Rojo, 2009, grifos da autora) aponta que essa situação

implica o reconhecimento dos múltiplos letramentos, que variam no tempo e no espaço, mas que são também contestados nas relações de poder. Assim, os NLS não pressupõem coisa alguma como garantida em relação aos letramentos e às práticas sociais com que se associam, problematizando aquilo que conta como letramento em qualquer tempo-espaço e interrogando-se sobre “quais letramentos” são dominantes e quais são marginalizados ou de resistência.

Isso ratifica a ideia de que a sociedade em constante mudança é um universo em que circulam letramentos múltiplos, diferenciados, valorizados ou não, institucionalizados ou cotidianos, autônomos ou ideológicos, sempre em convergência e divergência.

Em nossa pesquisa, assumimos a concepção sociocultural de letramento e entendemos que as pessoas participam de múltiplas práticas de letramento em seu cotidiano. Para expressar essa multiplicidade, Rojo (2009) fala sobre os multiletramentos e os letramentos multissemióticos, ressaltando a importância que deve ser dada aos novos letramentos que surgem devido à valorização das culturas locais (diversas) e os novos textos/os textos contemporâneos que comunicam essas culturas. Assim, os novos letramentos têm sua noção ampliada para o campo de diversas semioses para além da escrita, como a música, a imagem, etc.

Dessa forma, entendemos, em conformidade com os autores aqui debatidos, que os

multiletramentos e os letramentos multissemióticos são decorrência dos avanços da

sociedade contemporânea em que vivemos e dos estudos que consideram a realidade e a existência de diversas culturas circulantes entre os alunos, eliminando a ideia de uma única cultura erudita, que delimita a definição dos sujeitos como sujeitos de cultura e sem cultura.

Afinal, sobre isso, já nos dizia Rojo (2003), que, “essa visão dessencializada de cultura(s) já não permite vê-la com maiúscula – A Cultura –, pois não supõe simplesmente a divisão entre culto/inculto ou civilização/barbárie, tão cara à escola da modernidade”. Isso ocorre porque é preciso, agora, valorizar as culturas popular, local, de massa, que fazem parte do universo dos alunos, se utilizando, em sala de aula, não só dos conhecimentos tradicionais institucionalizados para garantir a aprendizagem, mas sim dos gêneros, mídias, linguagens por eles conhecidos, a fim de efetivar um aprendizado crítico, democrático e ético, que se consolide na prática.

Assim, por via de novos letramentos – sejam eles valorizados ou não –, desenvolvidos a partir da realidade dos estudantes, consolida-se o domínio de competências e habilidades de acordo com o repertório cultural desses sujeitos. Ainda, como aponta Rojo (2012), vale salientar que os multiletramentos não envolvem obrigatoriamente o uso de novas tecnologias digitais da comunicação e informação, visto que eles se caracterizam pela valorização das culturas de referência do alunado, mas é comum que as envolva, por conta do caráter emergente da sociedade e da realidade digital em que os alunos se encontram, o que, consequentemente, fará com que as manifestações da mídia digital faça parte de seu cotidiano e, logo, das culturas em que circulam.

Apesar de as novas Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação – TDICs – não serem caráter determinante para o surgimento dos multiletramentos, possibilitaram inovações nas práticas sociais de oralidade, escrita e leitura. É como nos diz Signorini (2012), ao enfatizar que ao usar tecnologias e dispositivos computacionais são integradas antigas práticas de escrita, mas também são criadas novas. Assim, entendemos que a cultura letrada emerge neste novo contexto social, em que práticas escritas antigas e novas se imbricam e se complementam, desenvolvendo-se a partir de ferramentas e suportes tecnológicos novos. Ou seja, as concepções sobre a realidade grafocêntrica tradicional são complementadas ou sobrepostas por novas práticas letradas emergentes da hipermídia. Portanto, reconhecendo o campo letrado fértil que a sociedade contemporânea possibilita, além das diversas culturas das quais fazemos parte, finalizamos esta subseção para iniciar a seguinte, que abarcará as oportunidades letradas decorrentes dos multiletramentos e em seguida guiará às reflexões sobre os novos letramentos e o novo ethos que se desenvolve com o advento das novas tecnologias.