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This is my Letter to the World': as cartas de Emily Dickinson

No documento Emily Dickinson : uma poética de excesso (páginas 197-200)

139 Success is counted sweetest

V CAPÍTULO UMA SEMIÓTICA DE EXCESSO:

1. This is my Letter to the World': as cartas de Emily Dickinson

Digo que a poesia é como un espaço que não nos pertence; mas é ele que pode ser por nós repartido. Inesperadamente, o poema que se escreve é a um estranho que deve ser entregue.

Fernando Guimarães, "Acerca de um Estúdio I"

thinking of resistance,

resistance to a world of purity, of domination, of control over our possibilities,

is separation not at the crux of . . . ambiguity, resistance? Is it not at the crux both of its necessity and its possibility? Separation as in the separation of the white from the yolk or separation as curdling?

Maria Lugones, "Purity, Impurity, and Separation"

This is my Letter to the World - That never wrote to He -

Emily Dickinson, P. 441

Comentando um passo de Hillis Miller, onde, a propósito de Kafka, se diz que "[o] facto de escrever um poema, uma história, ou um romance, não é outra coisa senão uma extensão do terrível poder de deslocação implicado no gesto mais simples,

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que consiste em escrever uma carta a um(a) amigo(a)",282 Silvina Rodrigues Lopes

afirma que "[e]ste princípio de escrita põe em deriva o autor e o leitor. . .".283 Por

sua vez, Smith, reportando-se a um artigo de Celeste Schenck, e falando da indefinição entre carta e poema na produção de Dickinson, escreve:

. . . [Dickinson] begins to undo 'a Western generic practice based on exclusion, limit, hierarchy, and taxonomy, and formal norms' by setting up 'a fluid, dialogical relationship' between literary forms.

As afirmações acima referidas vão ao encontro da questão com que desejo começar esta parte: são as cartas de Dickinson textos epistolares ou textos poéticos? Ou são, antes, a intersecção de ambos? Quando rodeia um poema, pode o resto do texto da carta funcionar "epigraficamente" e assim ser considerado um paratexto?

Muitas vezes, em termos de disposição gráfica ou de extensão, muitas das cartas de Dickinson são poemas. Reciprocamente, alguns dos seus poemas são

iU J. Hillis Miller, Confrontations 19 (Paris: Aubier, 1988). Citado por Silvina Rodrigues Lopes, Aprendizagem do Incerto, p. 179.

Silvina Rodrigues Lopes, Aprendizagem do Incerto, p. 179.

Smith, Rowing in Eden..., p. 107. 0 trabalho de Celeste Schenck referido por Smith neste passo é "All of a Piece: Women's Poetry and Autobiography",Life/Lines: Theorizing Women's Autobiography, ed. Bella Brodzki e Celeste Schenck (Ithaca: Cornell University Press, 1988), pp. 281- 305, p. 286. 0 capítulo de Smith onde se encontra esta citação ("'All Hen say 'What' to He?: Sexual Identity and Problems of Literary Creativity", pp. 96-127) parte de uma revisão e releitura das "Master letters" à luz da questão da identidade sexual; Smith levanta a possibilidade de estas cartas, tradicional e hegemonicamente vistas pela crítica dickinsoniana como escritas a um homem, se situarem na mesma linha de ambiguidade sexual que existe em tantos dos poemas de Dickinson, onde ela se dramatiza a partir da criação de uma máscara masculina. Como já disse em nota anterior (cf. p. 195, n. 278), Smith prevê a hipótese de que essas cartas não tenham sequer tido receptor; mas avança ainda com uma outra hipótese: a de que as cartas, tendo em consideração estratégias de escrita, poderiam ter sido destinadas a Susan Gilbert.

203 literalmente "cartas ao Mundo", seja enviados sozinhos, sem qualquer comentário, seja incluídos em texto epistolar. A forma de diário faz parte da herança puritana que Dickinson transporta, assim como a forma epistolar informa os hábitos victorianos dela coevos.285 Ambas as formas são, todavia, subvertidas pela poeta.

A forma de diário pressupõe, nos seus processos, uma coincidência de autor e leitor, ao passo que a carta pressupõe a distinção (e, geralmente, distanciação espacial e temporal) destes; a carta pressupõe ainda uma unicidade de auditório. Definindo a sua poesia como "Letter to the World", Dickinson, conscientemente ou não, ofereceria igualmente a muitas das suas cartas o estatuto de poemas, tornando-as, assim, pelo próprio carácter da sua poesia, já não só pertencentes ao âmbito da circulação privada, mas ainda ao âmbito do pessoal. Paradoxalmente, é neste campo do restrito e do tangente que ela se publica. Como se expusesse uma página de diário íntimo, ou escondesse uma folha de versos dos olhares do público. Sendo as cartas de Dickinson, tal como as define Miller, "mensagens privadas universalizadas", 286 nelas prevalece também, tal como vimos acontecer com a poesia, um movimento de ambiguidade.

Falando de questões centrais ao iodo de vida puritano (coió a questão da eleição individual e da condenação, ou a relação entre o destino privado e a predestinação), Richard Ruland e Halcoli Bradbury escrevem: "Besides the history and the sermon, there was the journal, the recording of the individual life. . . . Each day's experiences could be scrutinized for indications of God's will and evidence of predestination, and so the story of individual lives grew in the pages of diaries and journals in much the way historians shaped their accounts of historical crises and public events.", Fron Puritanism to Postmodernism: A History of American Literature, ed. Richard Ruland e Malcolm Bradbury (Harmmondsworth: Penguin Books, 1991), p. 17.

Ver também Rowing in Eden...f p. 104, onde Smith não só salienta a dívida que o romance, enquanto género, mantém para com a forma epistolar, mas faz ainda notar o seguinte: "In Dickinson's day, letters were a primary medium of both personal and professional communication, and for many letter writing was a fine art, a literary endeavor."

Miller, Emily Dickinson: A Poet's Grammar, p. 15. Miller utiliza uma outra expressão que me parece ser útil para abordar as cartas de Dickinson: "deceptive privacy" (p. 15).

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Julgo que podemos dividir as cartas nos seguintes tipos: a) as cartas que são só comunicação, preenchendo assim uma função unicamente pragmática (como as cartas n°s 181, 399 ou 445); b) as cartas com poemas destacados do resto do texto, aparentemente autónomos dele, como as cartas n°s 283, 374 ou 390; c) as cartas onde surgem versos, estes intercalando o resto do texto, como as cartas n°s 413 ou 444; d) as cartas que são constituídas somente por poemas, como as cartas n°s 105, 341 ou 361); e) as cartas que não são escritas na forma tradicional versificada e que, todavia, ou pela prosódia ou pela imagética, caem dentro da categoria de poesia, como as cartas n°s 181, 399 e 445, ou 1025.

No inicio (sensivelmente entre as primeiras cartas que se conhecem de Dickinson e que datam de 1842, tem ela doze anos, e as cartas de 1856, tem ela vinte e seis anos), as categorias a) e e) são as mais frequentes, evoluindo a escrita de Dickinson ao longo da vida dessa primeira categoria (as cartas enquanto só comunicação) para as categorias b) e c) (as cartas com poemas destacados e as cartas com versos intercalados). Abundam, sobretudo para o final da vida de Dickinson, cartas que se integram nas categorias d) e e) - cartas que são poemas, ou cartas cujo corpo textual pode ser transformado em poema. Também para o final da vida, Dickinson serve-se cada vez mais da forma epigramática, como nas cartas n°s 971, 1016 e 1045, um processo idêntico ao que se detecta nos manuscritos dos poemas, onde, como tive já ocasião de referir, se vai notando uma maior condensação e elipse.287

287 Cf. o que diz Stonum, The Dickinson Sublime, p. 106, a propósito dessa consonância entre

a escrita dos poeias e a escrita das cartas: ". . . a t about the time that she invented her distinctive style, the style of her letters changed also, becoiing even less forthcoming to a recipient not already in tune with her. Dickinson clearly recognized and perhaps rather enjoyed the fact that others found her baffling."

No documento Emily Dickinson : uma poética de excesso (páginas 197-200)

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