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PARA UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL DO TERMO

No documento Emily Dickinson : uma poética de excesso (páginas 55-87)

UMA POÉTICA DE EXCESSO

PARA UMA DEFINIÇÃO POSSÍVEL DO TERMO

The road of excess leads to the palace of wisdom William Blake, "The Marriage of Heaven and Hell"

A transgressão: é esse o leu limite Yvette K. Centeno, Sinais

Em The Aesthetic Dimension, um estudo crítico das concepções marxistas de cariz historicista e determinante sobre a estética, escreve Marcuse:

... by virtue of its aesthetic form, art is largely autonomous vis à vis the given social relations. In its autonomy art both protests these relations and at the same time transcends them. Thereby art subverts the dominant consciousness, the ordinary experience.

66 Herbert Marcuse, The Aesthetic Dimension: Toward a Critique of Marxist Aesthetics (Boston:

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Nesse mesmo trabalho, Marcuse acrescenta: "...throughout the long history of art, and in spite of changes in taste, there is a standard which remains constant. This standard not only allows us to distinguish between 'high' and 'trivial' literature, opera and operetta, comedy and slapstick, but also between good and bad art within these genres."67 O gosto estético de que fala Marcuse são as convenções das épocas, mutáveis, sujeitas à evolução e a modificações. Por outro lado, o que oferece à componente estética uma constância e permite encontrar certos padrões de distinção entre géneros e valoração é a subversão de dentro dos sistemas linguísticos e literários, subversão essa que é conhecedora das regras que regem ambos os sistemas e que por isso está apta a transgredi-las. Por um idêntico processo, é possível, ainda hoje, referirmos a estética Barroca ou a obra de Sade (ou, como tentarei demonstrar, a poesia e poética de Dickinson) e falarmos aí do excesso como uma constante. Como e porquê é o que tentarei demonstrar em seguida.

O termo "excesso" ocorre várias vezes no discurso crítico, sem que seja definido: fala-se de excesso relativamente à estética Barroca, àss manifestações do carnavalesco na literatura, ou à poesia medieval, tal como há textos que a crítica canonicamente designa como de excesso (por exemplo, os de Sade ou Bataille, onde vigora a componente erótica e de perversão). No seu registo de crítica literária o excesso não surge, todavia, definido, mas aliado a outros aspectos: assim, quando se fala da sua presença no medieval, pode falar-se de "desmesura"; quando se fala da sua presença no Barroco, pode referir-se o rebuscamento do cultismo e o sobrecarregar do conteúdo do conceptismo, ou ainda o Maneirismo ou o Gongorismo, no que estes têm

57 de grotesco; quando se pensa na estética romântica, pode referir-se a busca do ilimitado e a exaltação do eu; quando se fala do Modernismo, pode referir-se o descentramento do eu e a multiplicação das vozes - tomando todos esses aspectos como momentos de excesso.

No entanto, o excesso é uma categoria não incluída em dicionários de literatura. Qual é então o seu estatuto? É certo que ele pode indicar o efeito no leitor, mas é também tomado como inerente ao texto. O seu valor encontra-se presente em dicionários filológicos, mas normalmente com dimensão adjectiva, não substantiva. No discurso crítico o excesso parece depender, tal como outros termos (como

"originalidade", por exemplo), de outros factores que lhe são associados. De qualquer forma, ele indica sempre fractura, ruptura: da língua, dos sentidos, do sistema, em suma, de normas.

As entradas lexicais para "excesso" são diversas. O termo surge no dicionário 1) como sinónimo para a distorção do proporcionado, do equilibrado; 2) como sinónimo para o estado de ultrapassar ou ir além do limite, da medida do suficiente; 3) significando esbanjamento, intemperança e imoderada indulgência; 4) comportando ainda o sentido de excedente ou supérfluo — tudo o que sobra depois de todo o necessário ter sido usado ou gasto.

Nesta primeira abordagem relativa ao uso corrente de excesso um factor comum parece emergir: exceptuando o primeiro termo de definição, que pressupõe o excesso como desvio imediato ao que é rígido, isto é, desvio do centro ou da norma, enquanto pontos de equilíbrio, o excesso pertence a espaços que já não têm a ver directamente com os centros, mas com os limites ou margens. Mesmo quando o excesso

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é definido como desequilíbrio, a sua demarcação é difícil, já que o ponto de equilíbrio nem sempre é estático, mas fluido.

Para se entender a noção de excesso é necessário reflectir primeiro sobre a própria noção de "norma", já que é dela, e do seu estabelecimento e compreensão, que se tem de partir para se chegar à noção mesma de limite. É que "norma" engloba dois sentidos: o prescritivo e o descritivo, ou, se quisermos, o de "normativo" e o de "normal". O sentido descritivo, em que "norma" significa o que é "médio", limita-se a descrever situações ("é assim") e não estabelece, como o prescriptivo, juízos valorativos ou regras ("deve/devia ser assim"). A esse sentido de norma, visto ele constituir conjuntos de verificações e constatações, é, como já disse, fácil de aplicar, no seu desvio, o conceito de excesso. O mesmo não se passa com o segundo sentido, posto que ele introduz um outro tipo de qualificação, agora subjectivo: o "normativo", o que estabelece regras.

Muitas vezes, os dois sentidos de "norma" são interdependentes: o que é estabelecido socialmente acaba por se tornar, sob risco de punição, o procedimento mais comum, portanto verificável e passível de ser descrito; e o processo tem repercussões mútuas: porque se apoia no descrito como maioritário, o procedimento enraíza-se e torna-se o normativo. Como diz Perelman, "o locus da quantidade justifica a passagem do normal, que exprime uma frequência, o aspecto quantitativo das coisas, à norma que determina que esta frequência é favorável e que se deve agir em conformidade com ela. "68

w Chain Perelman, The New Rhetoric: A Treatise on Argumentation, trad. John Wilkinson e

Purcell Weaver (Notre Daie: University of Notre Dame Press, 1971), p. 88. Citado por Boaventura de Sousa Santos, Introdução a uma Ciência Pós-Hoderna (Porto: Edições Afrontamento, 1989), p. 117.

59 Há, todavia e por vezes, momentos em que os dois sentidos de "norma" não se justapõem, nem, com eles, o seu desvio. Por exemplo, a escala de Q.I., que tem por valor médio 100, pressupõe uma zona de variação considerada normal (geralmente entre 85 e 115 na mesma escala). Todavia, na maior parte dos casos, a comunidade escolar não aceita (punindo mesmo) um Q.I igual ou inferior a 100, já que ele significa, ainda que seja a norma, menor rapidez de aprendizagem do que é desejado. Igualmente o estado de doença, fugindo ao "normal" e sendo, nesse sentido, sinónimo de desequilíbrio, não comporta, à partida, valorações morais ou sociais; mas há doenças estigmatizadas (como a gota ou a cirrose) que, porque pensadas como resultado de excessos, podem ser punidas moral e socialmente. De qualquer forma, só o são enquanto circunscritas a minorias. Nos nossos dias, a situação dos contagiados pela SIDA é exemplo disso: inicialmente alvo de acusação por ser considerada sobretudo resultado de desvio sexual (enquanto circunscrita à população homossexual), a doença tem-se vindo a tornar assunto de preocupação e de sensibilização pública, não só com o crescente número de toxicómanos e hemofílicos infectados, mas ainda com a sua disseminação cada vez mais alarmante à população heterossexual "normal". Todavia, no último caso, porque também encarada, pelas normas religiosas e morais, como resultado de promiscuidade, a doença não perdeu ainda o seu carácter de a- normalidade. Comportando valorações de ordem ética e moral, a norma é, nestes casos, definida pelo estabelecido pela sociedade ou pelo grupo - o indivíduo surge como o factor de ruptura possível. É que essas normas, no sentido de evitar ameaças de ruptura à preservação de determinado status quo, estabelecem pontos de equilíbrio e depois limites que orientam as leis da homogeneidade.

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As regras do jogo social mudam com os tempos e com elas mudam também os sujeitos de poder e as ideologias que lhes subjazem. Aí, o excesso não é uma categoria fixa, mas variável: um modo de ver, de acordo com códigos estabelecidos pela ideologia. Se, por ideologia, se entender, com Sacvan Bercovitch, "o terreno e a tessitura do consenso", estamos então perante uma série de normas emanadas ou de um grupo (que, podendo ser pequeno, deve ser coeso) ou, no sentido mais largo, de uma cultura. Nestes casos, ideologia é, ainda segundo Bercovitch, "the system of interlinked ideas, symbols, and beliefs by which a culture ~ any culture — seeks to justify and perpetuate itself".69

Não sendo, todavia, estática, a cultura evolui dialecticamente: pelo conflito entre sinais de consentimento (consenso) e de resistência ou desaprovação ("dis-senso").70 Justificada por ritos de assentimento cultural, a hegemonia social

alimenta-se do "dis-senso" de forma a justificar a sua própria coesão. Quando o assimila, recuperando-o para si e transformando-o em mais um ponto de consenso, novos focos de resistência são criados. Estes focos são as franjas, as margens, muitas vezes metamorfoseadas depois em centros.

No campo cultural a oposição entre norma e desvio varia, pois, consoante os tempos e as necessidades sociais. No seu estudo sobre a política e a poética da transgressão, Peter Stallybrass e Allon White defendem uma tese não muito distante da

" Sacvan Bercovitch, "The Probiei of Ideology in American Literary History", Critical Inquiry, 12 (Summer 1986), pp. 631-53, p. 635. 0 texto de Berkovitch trabalha a questão da ideologia na cultura americana e a ele voltarei ao longo do meu trabalho, especialmente no VI Capítulo. Da sua tese interessam-me agora os conceitos de ideologia, consenso e "dis-senso" e sua aplicação à problemática do excesso.

,0 0 terno inglês é "dissent", mas a tradução portuguesa, "dissidência", não me parece fornecer

o mesmo sentido. Assim, por analogia com o termo português "consenso" e por influência do termo inglês, adaptei e adoptei a palavra "dis-senso".

61 de Bercovitch: a de que os opostos "high'V'low" (conceitos aplicados à cultura, ao

corpo humano e político, à ordem social) nunca são inteiramente separáveis.71 O

trabalho de Stallybrass e White ocupa-se sobretudo do carnavalesco como manifestação da transgressão, mas parece-me poder ser aplicado ao estudo do excesso, no sentido em que envia para as questões do normativo (a "high culture", por exemplo) e do marginal (por exemplo, a "lumpen culture"). Segundo eles, a repugnância e o fascínio são os pólos gémeos que orientam o processo político que visa eliminar o "low" mas que todavia traduzem o desejo por ele, por esse Outro. Um padrão emerge: o topo tenta rejeitar a base, acabando por descobrir que é dela dependente, que simbolicamente a inclui como constituinte erótico das suas próprias fantasias. "It is for this reason", continuam os autores, "that what is socially peripheral is so frequently symbolically central."72

Nem tudo o que se afasta da norma é excesso, não obstante o excesso abranjer sempre a diferença. É excesso o que ultrapassa a norma em demasia (ou seja, o que

71 Peter Stallybrass e Allon White, The Politics and Poetics of Transgression (London: Methuen,

1986).

72 Stallybrass e White, The Politics and Poetics— p. 5. A expressão é de Barbara B. Babcock,

ed. The Reversible World: Symbolic Inversion in Art and Society (Ithaca: Cornell University Press, 1978), p. 32. Georges Bataille havia chegado a idêntica conclusão ao tentar explicar a génese da luta de classes através dos princípios do dispêndio e da perda: segundo ele, guando a perda final do opriíido se torna realidade o prazer do opressor é esvaziado e neutralizado. Escreve Bataille ei "The Notion of Expenditure", Visions of Excess: Selected Writings 1927-1939, ed. Allan Stoekl, trad. Allan Stoekl, Carl Lovitt e Donald H. Leslie, Jr. (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989), pp. 116-129, pp. 125-6: "The end of the worker's activity is to live, but the bosses' activity is

to produce in order to condemn the working producers to a hideous degradation ~ for

there is no disjunction possible between, on the one hand, the characterization the bosses seek through their iodes of expenditure, which tend to elevate them high above human baseness, and on the other hand this baseness itself, of which this characterization is a function."

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distorce o que é já desequilibrado). Neste segundo sentido o excesso tanto pode equivaler a supérfluo (a esbanjamento), como, opostamente, se pode revestir de sinal negativo e equivaler a escassez (a falha), embora escassez e supérfluo sejam termos

que, comummente, se costumam considerar opostos.73 Nas definições de excesso

enquanto "supérfluo" ou "esbanjamento", ou ainda enquanto o que está "para lá do limite" (o desmedido), não é já somente a norma que está em questão. Não sendo só o que da norma se afasta, o excesso é, nesses casos, ainda o que a ultrapassa de forma ilimitada. É esse ilimitado, esse lugar de ruptura-para-lá-da-ruptura que é difícil isolar e definir.

Apresentando-se mais exequível em áreas que utilizam como instrumento de trabalho a estatística, onde é possível verificar valores-padrão e, a partir destes, estabelecer espectros razoáveis de variação, a tarefa de definir "supérfluo" continua a ser relativa e volátil nos campos que dizem respeito às ciências humanas e que geralmente o fazem equivaler a "esbanjamento": o dispêndio não produtivo.

E certo que a cultura hegemónica autoriza, em certa medida, manifestações destes sinais de excesso, necessitando deles para se validar e afirmar, desde o bobo medieval, "all-licensed", até ao espaço que o Igreja concede a manifestações contrárias

Há momentos em que estes sentidos aparentemente opostos de excesso (o supérfluo e a escassez) podem estar ironicamente ligados: nos nossos dias, pense-se no contraste entre a situação de morte pela fome nos países africanos, onde, não pelas normas biológicas mas pelos limites das normas de consumo, supérfluo pode ser um copo de leite a acompanhar uma imprescindível refeição e sociedades de consumo coió os Estados Unidos, onde se privilegia a escassez de gordura na alimentação, considerando-se o excessivo consumo de gordura uma das principais causas de morte precoce. As mortes pelo excesso de não ter (a demasia na escassez) ou de ter demais (a demasia que implica o supérfluo) aproximam-se assim, ironicamente.

63 às suas próprias normas.74 A essas formas de excesso podemos aplicar o que Bataille

chama "o princípio da perda". Nelas inclui Bataille as jóias, os cultos sacrificiais (começando pelo sentido da crucifixão de Cristo), os jogos, até a guerra.75 Todavia,

considerados perda no sentido de dispêndio não produtivo, esses sinais de excesso são válidos, do ponto de vista simbólico e pela sua função catártica. Desempenhados socialmente, contidos dentro de determinados limites, eles são muitas vezes definidos como manifestações culturais e não como excessos. É a fuga a esses limites ou o descentramento destes (como a destruição da vida humana, aceite em situação de guerra, mas considerada crime no âmbito civil); é ainda a desmesura ou a ostentação em demasia e deslocada (como as jóias usadas de forma abusiva -- quer fora de contextos aceitáveis, quer em profusão) que são considerados transgressores e excessivos. Nesse sentido, o excesso inscreve-se no próprio espaço consagrado à perda: transgride não só o necessário mas também o útil, sendo desprovido de carácter funcional; ele próprio surgindo como pretexto de si mesmo.

Excluamos, pois, as ciências ditas exactas. Nas suas manifestações políticas e sociais, terrenos que, embora mais objectivamente verificáveis que um texto literário, são, como vimos, também sujeitos a alterações normativas, o excesso é uma categoria volátil. Isso é mais agravado na literatura (ocidental, no nosso caso) a partir do que nela marcou uma ruptura nunca antes experimentada - o Romantismo. Antes do

74 É assim que, falando do Carnaval, diz Eugénio D'Ors, no seu estudo clássico sobre o Barroco:

"La loi du travail atteint la plénitude de sa valeur quand s'établit, à côté d'elle et dans de très étroites limites, une saison d'oisiveté. L'ordre, quand on donne la part du feu au désordre marginal". 0 Carnaval é, desta forma, o espaço simbólico, de quando ei quando recriado, do Paraíso perdido, imiscuindo-se no esforço constante para atingir o Jerusalém celeste. Eugénio D'Ors, Du Baroque, versão francesa de Agathe Rouart-Valéry (Paris: Galimard, 1935, 1968), p. 21.

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Romantismo pode tàlar-se, todavia, de um tipo de excesso diferente que informara um momento anterior de excesso na literatura; esse momento é a estética Barroca.

Considerado por uns como o estilo particular de uma época situada entre o Renascimento e o Rococó (o seu modo já degenerado), perspectivado por outros como uma constante histórica que permeia os diferentes períodos da história literária (como um "fenómeno essencialmente meta-histórico"),76 o Barroco constitui sempre uma

forma de excesso relativamente aos ideiais de equilíbrio e de sobriedade que imperavam

no Renascimento.77 De tal forma que, no modo que precede o Barroco (o

Maneirismo) é possível falar de um Anti-Renascimento. Nesse modo pré-barroco, que se caracteriza pelo "empolamento e distorção das formas renascentistas agonizantes",78

seres e coisas deixam de ser vistos segundo uma perspectiva una, coerente e digna, tal como acontecera na arte clássica do Renascimento. Esta constatação da precaridade e da insegurança do ser será vislumbrada por Shakespeare numa das suas tragédias mais tardias (King Lear) e expressa pela voz de uma das suas personagens, Gloucester:

"These late eclipses in the sun and moon portend no good to us. Though the wisdom of nature can reason it thus and thus, yet nature finds itself scourged by the sequent

76 À expressão é de Aguiar e Silva, Teoria de Literatura..., p. 451. Acrescente-se que o

crítico português defende essa primeira linha. A defesa da constante meta-histórica do Barroco encontra eco por exemplo ei D'Ors, Du Baroque, trabalho que já aqui referi e a que voltarei daqui a pouco.

77 Na introdução à Antologia da poesia do período barroco (Lisboa: Moraes Editores, 1982), p.

8, Natália Correia escreve, referindo-se a estas duas vertentes: "Nun e noutro caso a relação do Barroco e do Renasciíento estará sempre em causa, pois mesmo que se adopte a tese da continuidade, é inevitável considerar-se o cansaço das formas vinculadas ao equilíbrio renascentista como determinante da antítese barroca, da mesma forma que o realismo gera, por exaustão, a atitude romântica e vice-versa."

65 effects. Love cools, friendship falls off, brothers divide. In cities, mutinies; in countries, discord; in palaces, treason: and the bond cracked 'twixt son and father";79 e será a constatação definitiva dessa incoerência que levará Dorme a escrever, alguns anos mais tarde, em "The First Anniversary", '"Tis all in pieces, all coherence gone / All just supply, and all Relation: Prince, Subject, Father, Sonne, are things forgot".80

Podendo dividir-se, como diz José Antonio Maravall, entre duas grandes linhas, uma "retórica, rica em ornamentação, emocional e extravagante ... e outra mais intelectual, mais culta, embora talvez não menos convoluta",81 o Barroco sofre da demasia que é o ser humano reconhecer-se agora já não como centro, mas como descentrado das coisas - bem como descentrado em relação a um universo que deixara igualmente de estar coerentemente situado.

Graças às revoluções científicas já iniciadas no século XVI, que desestabilizariam o lugar central que Aristóteles e Ptolomeu haviam atribuído à Terra e ao ser humano; graças à demolição da ideia de um cosmo regido pela ordem e pela imutabilidade, herança da velha cosmogonia medieval; graças às modificações político- económicas, preparadas por uma situação de pré-capitalismo, vindas já também do século XVI; graças às convulsões religiosas preconizadas pelos movimentos de Reforma

79 William Shakespeare, King Lear (Cambridge: Caibridge University Press, 1960), I, ii; 107-

113.

80 John Donne, The Complete English Poems, ed. À. J. Smith (Harmmondsworth: penguin Books,

1971), p. 276.

81 José Antonio Maravall, La Cultura del Barroco: Análisis de una Estructura Histórica

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e Contra-Re forma82 - não podendo expandir-se a não ser para dentro de si próprio,

num movimento suicida de implosão, a ênfase do Barroco é no movimento ambíguo de desejo e de reconhecimento da impossibilidade, não na crença da beleza regular renascentista.

El hombre [barroco] es un ser agonico, en lucha dentro de si, como nos revelan tantos solilóquios de tragedias de Shakespeare, de Racine, de Calderón. En la mentalidad fonada por el protestantisio se da, no menos que en los católicos que siguen la doctrina dei decreto tridentino 'de justificatione', la presencia de ese elemento agónico en la vida interna dei hombre",

escreve Maravall, citando, em seguida, Quevedo: "La vida dei hombre es guerra consigo mismo."83 Se o Renascimento havia harmonizado formas e seres, se

o Romantismo irá avolumar a importância do sujeito, o Barroco descentra sobretudo os objectos e o olhar, encontrando-se o seu excesso aliado ao insaciável. A linguagem que o serve, podendo ser vazia de tão ludicamente sobrecarregada e luxuriante de tão cultivada e engenhosa, traduz de facto a inquietação e a dualidade. Por isso o espaço do Barroco é simultaneamente, como diz Severo Sarduy, "o da superabundância e do

Reieto, mais uma vez, para Maravall, La Cultura dei Barroco— esp. para o capítulo 1, "La conciencia coetânea de crisis y las tensiones sociales del siglo XVII", pp. 54-125.

No documento Emily Dickinson : uma poética de excesso (páginas 55-87)

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