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4.3 O DIÁLOGO DA MEDEIA DE CHRISTA WOLF COM A MEDÉIA DE

4.3.1 AS TRANSFORMAÇÕES OPERADAS PELO POLIFÔNICO CORO DE

4.3.1.4 LEUCON: A FORÇA DA CUMPLICIDADE

Leucon representa a voz do amigo fiel. Apesar de grego e de ser segundo astrônomo do rei de Corinto, ele transita entre os subúrbios e o centro da cidade e se relaciona com

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imigrantes de forma cordial e desprovida de preconceitos. Além disso, é uma espécie de protetor de Medeia. É o amigo cúmplice que a auxilia, inclusive nos encontros românticos e clandestinos que a curandeira mantém com Estro, o amante. É através da voz de Leucon, inexistente na mitologia grega, que conhecemos em detalhes o lado luminoso da protagonista reinventada. Leucon demonstra considerar Medeia generosa e cativante, mas ao mesmo tempo teimosa e confiante demais a ponto de não perceber a trama que a envolve e que culminará na fatal condenação ao exílio. Em sua primeira intervenção no romance, Leucon admite que previsões nefastas se cumprirão sobre o destino de Medeia; descreve o romance entre ela e Estro, o escultor; revela as verdades sobre o sacrifício de crianças em Corinto e, ainda, demonstra ter visão crítica sobre a cultura e a mentalidade vigente na sociedade coríntia.

Ao antever o desfecho tenebroso da protagonista, Leucon angustia-se por perceber que nenhum de seus avisos é considerado por Medeia, como se pode perceber em seu depoimento, quando diz: “Medeia está perdida. Vai-se esfumando. Vai-se esfumando diante dos meus olhos e eu não posso travá-la. Estou a ver diante de mim o que lhe vai acontecer. Vou ter de assistir a tudo. É o meu destino, ter de assistir a tudo, antever tudo e não poder fazer nada, como se não tivesse mãos” (WOLF, 1996, p. 141).

Tal desabafo está embasado no seu conhecimento sobre o funcionamento da corte coríntia. Leucon sente-se desolado por ele mesmo afeiçoar-se “de alma e coração a pessoas que não conhecem verdadeiramente a situação em Corinto, não tem ideia daquilo que os coríntios são capazes de fazer quando se sentem ameaçados, como agora.” (WOLF, 1996, p. 143), como é o caso de Medeia.

O amigo também intermedia e revela a relação de Medeia com o amante, Estro. Leucon diz que “Medeia vai a casa de Estro quase sem tomar precauções” e que tal “negligência torna-se perigosa, mesmo punível” (WOLF, 1996, p. 142). Observe-se um monólogo dessa personagem:

Que vai ser de nós, Leucon? Pergunta ela, e eu não tenho coragem de lhe dizer o que sei, o que vejo, o que vai ser dela. Vem, na sua beleza resplandecente e ardente de amor, de visitar Estro, abraça-me e eu abraço-a, a uma mulher que já não está aqui. Faz coisas que não devia fazer, não dá ouvidos aos meus avisos, e com Estro não se pode falar. […] Ela está na ponta dos seus dedos, Medeia, apossou-se dele, é o que ele mesmo diz, nunca lhe aconteceu uma coisa destas, o prazer de ter esta mulher deu-lhe um novo prazer de viver, de trabalhar […]. (WOLF, 1996, p. 142)

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O papel de protetor que o segundo astrônomo assume diante da amiga colca se justifica, por ser membro daquela cultura e ter a dimensão exata do que podem cometer os coríntios contra aquela mulher que, mesmo sem ter intenção, provoca o desconforto, o constrangimento e a ira da corte grega.

Na percepção de Leucon, Medeia é uma espécie de referencial de mulher ideal, uma iluminadora no caminho dos amigos ou, do seu ponto de vista amedrontado, “[...] o centro do perigo. E o mais terrível no meio de tudo isto é que ela não se deixa convencer de que é assim.” (WOLF, 1996, p. 145). Leucon se enche de admiração pela amiga, mas ao mesmo tempo, à maneira dos coríntios, encobre tal sentimento. Esse comportamento fica nítido em trechos como: “não lhe quero dizer que a segurança que dela irradia é vista agora por muitos coríntios como arrogância, e que ela é odiada por isso. Nunca pensei tanto sobre uma pessoa como sobre essa mulher” (WOLF, 1996, p. 146).

Pode-se criar uma analogia dessa mulher-iluminadora à carta da Imperatriz, do tarô. Entre os 22 Arcanos Maiores do tarô, a carta de numero três é o arquétipo da Imperatriz. Baseado na Teoria do Inconsceinte Coletivo, de Carl Jung (1995), psicanalista discípulo do criador da psicanálise, Sigmund Freud (1976), e que estudou esse oráculo oriunto de antigas civilizações, como o Egito, as imagens das cartas podem ser interpretadas como um conjunto de símbolos que refletem conhecimentos e vivências de todas as épocas da humanidade, à semelhança dos mitos, como é o caso dos argonautas retratados em tarôs, como o mitológico.

Com variações, a figura da Imperatriz, no tarô, costuma ser retratada como a força feminina que representa autonomia, poder de cura e destreza, com base na suavidade e na convicção de seus ideais. Pode-se estabelecer, a partir dessa interpretação, uma nova relação mítica na figura da nova Medeia reinventada no romance. Em contrapartida, a Imperatriz é o oposto complementar do Imperador, carta de número quatro do tarô, que significa a força masculina que, se utilizada com equilíbrio, é motriz para a construção da realidade material. Leucon, através de sua voz, traz essa imagem da mulher-luminária, que, por lançar luz sobre a cidade de Corinto, ilumina as obscuridades e ofusca a visão dos que se valem da sombra para manter-se na condição de dominação. A luz, nesse caso, torna-se ao mesmo tempo incômoda e ameaçadora, assim como a personagem Medeia o é para as personagens que assim interpretam sua atuação no meio social.

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as vozes que me atormentam!” (WOLF, 1996, p. 193). É do céu que o amigo da protagonista extrai suas previsões e seus lamentos sobre o fim triste de outras personagens, como Glauce.

É através da voz de Leucon que se conhece parte importante da reinvenção do mito de Medeia, como se pode perceber no segmento a seguir, quando ele diz que, entre outros motivos, “não sente rancor de Jasão”, pois:

[…] Acamante foi adversário mais forte: este domina agora as operações. Foi ele que espalhou a notícia sobre a morte de Glauce, versão oficial que todos, sob pena de morte, têm de aceitar: que Medeia terá enviado a Glauce um vestido envenenado, um terrível presente de despedida que terá queimado a pele da pobre Glauce quando o vestiu, o que a obrigou, no meio de dores insuportáveis, a procurar alívio, atirando-se ao poço. (WOLF, 1996, p. 197)

Aqui, mais uma vez, utiliza-se, no romance, fragmento essencial da tragédia grega e constrói-se uma versão dos fatos, como se o mito fosse destituído de verdade e apenas falácia inventada por Acamante, que tenta imprimir uma versão oficial dos fatos numa tentativa de desviar a atenção de seu jogo de poder.