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O FOCO NARRATIVO COM FUNÇÃO SOCIAL DA ESCRITA,

3.1 NOÇÕES BÁSICAS SOBRE O FOCO NARRATIVO

3.1.1 O FOCO NARRATIVO COM FUNÇÃO SOCIAL DA ESCRITA,

ANTECIPANDO ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE SEU PAPEL NO ROMANCE DE CHRISTA WOLF

A escolha de Wolf de utilizar múltiplas vozes na construção da história, contada sob a perspectiva de personagens variadas que transpõem a tragédia grega para o romance, exige análise literária, porém, também histórica e sociológica, visto que seu romance indica, inclusive, uma possível leitura como alegoria política das Alemanhas divididas. Chiappini (1985) evoca Hegel ao afirmar que o tema básico do romance como gênero seria o conflito entre “a poesia do coração” e a “prosa das circunstâncias” visto que “o romance pressupõe uma realidade tornada prosaica, sem a transcendência do mundo épico onde habitam deuses e heróis, mas procuraria, nessa realidade prosaica, restituir os acontecimentos e aos indivíduos a poesia de que foram despojados” (CHIAPPINI, 1985, p. 10). Nessa perspectiva, caberia a pergunta: não estaria Christa Wolf, escritora oriunda da República da Alemanha Oriental, construindo uma alegoria mítica para fazer uma releitura da história de seu próprio povo, através de uma heroína que vive em um mundo dividido entre gregos e bárbaros, assim como inúmeros autores24 já o fizeram exercendo um ato revolucionário, durante períodos de crise

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política e ditaduras? As múltiplas vozes que contam a história da Medeia contemporânea não seriam seres autônomos que revelariam as diversas faces de uma civilização em crise? Tal foco narrativo reforça e amplia a ideia de multiplicidade de perspectivas e coloca as personagens na condição de portadoras de múltiplos olhares desveladores do real em que o escritor desempenha um papel revolucionário, de revelação. Para explicitação desse aspecto, menciona-se a teoria crítica do escritor Julio Cortázar, que trata dessa questão tanto na escrita de contos quanto na de romances. Nela, Cortázar ressalta que o escritor revolucionário é aquele em que se fundem, indissoluvelmente, a consciência do seu compromisso individual e coletivo, e essa outra soberana liberdade cultural que confere o pleno domínio do ofício. Observe-se:

Se esse escritor, responsável e lúcido, decide escrever literatura fantástica, ou psicológica, ou voltada para o passado, seu ato é um ato de liberdade dentro da revolução e, por isso, é também um ato revolucionário, embora seus livros não se ocupem das formas individuais ou coletivas que adota a revolução. Contrariamente ao estreito critério de muitos que confundem literatura com pedagogia, literatura com ensinamento, literatura com doutrinação ideológica, um escritor revolucionário tem todo o direito de se dirigir a um leitor muito mais complexo, muito mais exigente em matéria espiritual do que imaginam os escritores e os críticos improvisados pelas circunstâncias e convencidos de que seu mundo pessoal é o único mundo existente, de que as preocupações do momento são as únicas preocupações válidas. (CORTÁZAR, 1993, p. 161)

Seguindo nessa linha de análise do foco narrativo, é relevante citar, também, para o estudo sobre o impacto do mito na obra de Wolf, a opinião de Cortázar quanto à função social do escritor. O teórico acredita que não se julga um escritor somente pelo tema de seus contos ou de seus romances, mas, sim, “por sua presença viva no seio da coletividade, pelo fato de que o compromisso total da sua pessoa é uma garantia insofismável da verdade e da necessidade de sua obra, por mais alheia que esta possa parecer à vista das circunstâncias do momento” (CORTÁZAR, 1993, p. 161). Para o escritor, essa obra não é alheia à revolução por não ser acessível a todos. Ao contrário, “prova que existe um vasto setor de leitores em potencial que, num certo sentido, estão muito mais separados que o escritor das metas finais da revolução, dessas metas de cultura, de liberdade, de pleno gozo da condição humana.” (CORTÁZAR, 1993, p. 161)

Gabriel Garcia Márquez faz uma crítica à dominação do poder político, e O Santo Inquérito (1966), peça teatral do escritor brasileiro Dias Gomes, onde esse retoma a história das inquisições para tratar, alegoricamente, da ditadura militar brasileira, através do julgamento da personagem Branca, uma espécie de Joana D’Arc nordestina.

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Em suas observações acerca da figura do narrador, Chiappini (1985) diz que esse “é um, entre os vários elementos com os quais se articula, orgânica e especificamente, a composição das obras singulares” (CHIAPPINI, 1985, p. 86). Chiappini trata a figura do narrador como alguém que, ocultando-se na narrativa, pode projetar-se na personagem da qual fala. Observe-se:

No decorrer da HISTÓRIA, as HISTÓRIAS narradas pelos homens foram-se complicando, e o NARRADOR foi mesmo progressivamente se ocultando, ou atrás de outros narradores, ou atrás dos fatos narrados, que parecem cada vez mais, com o desenvolvimento do romance, narrarem-se a si próprios; ou, mais recentemente, atrás de uma voz que nos fala, velando e desvelando, ao mesmo tempo, narrador e personagem, numa fusão que, se os apresenta diretamente ao leitor, também os distancia, enquanto os dilui. (CHIAPPINI, 1985, p. 84)

O teórico Walter Benjamim, em O Narrador, observa que “a experiência de boca em boca é a fonte onde beberam todos os narradores. E, entre os que escreveram histórias, os grandes são aqueles cuja escrita menos se distingue do discurso dos inúmeros narradores anônimos.” (BENJAMIM, 1985, p. 58). Portanto, é relevante para esse estudo, sob o ponto de vista sociológico, a opinião que esse teórico expressa no texto abaixo:

A orientação para o interesse prático é um traço característico de muitos narradores natos [...]. Tudo aponta para a relação que isso mantém com qualquer narrativa verdadeira. Clara ou oculta, ela carrega consigo sua utilidade. Esta pode consistir ora numa lição de moral, ora numa indicação prática, ora num ditado ou norma de vida – em qualquer caso o narrador é um homem que dá conselhos ao ouvinte [...]. O conselho é de fato menos resposta a uma pergunta do que uma proposta que diz respeito à continuidade de uma história que desenvolve agora [...]. O conselho, entretecido na matéria da vida vivida, é sabedoria. (BENJAMIM, 1985, p. 59)

Não que esta função prática, necessariamente, deva estar explícita no tema ou no discurso das personagens, mas faz parte do exercício criativo, como situa ainda Cortázar quando diz que essas obras não terão sido escritas necessariamente por obrigação, por mandado da hora ou por força de encomenda. Seus temas nascerão quando for o momento, quando o escritor sentir que deve plasmá-los, materializá-los em contos ou romances, peças de teatro ou poemas. Os temas conterão uma mensagem autêntica e profunda, porque não terão sido escolhidos por um imperativo de caráter didático ou proselitista, mas por uma força que pressionará o autor, e que esse, “apelando para todos os recursos de sua arte e de sua técnica, sem sacrificar nada a ninguém, haverá de transmitir ao leitor como se transmitem as coisas fundamentais: de sangue a sangue, de mão a mão, de homem a homem” (CORTÁZAR, 1993, p. 163).

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Retomando, ainda, os estudos sobre teoria da narrativa de Cortázar, esse defende que a arte popular não está dissociada das histórias que nasceram da oralidade e que compõem os clássicos literários. O autor dá o exemplo de que presenciou a emoção que entre gente simples provoca uma representação de Hamlet, obra considerada difícil e sutil, e que continua sendo tema de estudos eruditos e de infinitas controvérsias. Cortázar ressalta que:

É certo que essa gente não pode compreender muitas coisas que apaixonam os especialistas em teatro isabelino. Mas que importa? Só sua emoção importa, sua maravilha e seu arroubo diante da tragédia do jovem príncipe dinamarquês. O que prova que Shakespeare escrevia verdadeiramente para o povo, na medida em que seu tema era profundamente significativo para qualquer um – em diferentes planos, sim, mas atingindo um pouco de cada um – e que o tratamento teatral desse tema tinha a intensidade própria dos grandes escritores, graças à qual se quebram as barreiras intelectuais aparentemente mais rígidas, e os homens se reconhecem e confraternizam num plano que está mais além ou mais aquém da cultura. (CORTÁZAR, 1993, p. 162)

Portanto, interessa ao presente estudo, a teoria do dialoguismo de Bakhtin, na construção de uma narrativa com pontos de vista variados, o qual diz: “o diálogo do autor com o herói é, no romance polifônico de Dostoiévski, um procedimento de construção das personagens e, ao mesmo tempo, a afirmação da presença não ostensiva, porém eficaz, do autor nesse processo” (BAKHTIN, 2008, p. XII)25

. Nessa concepção as fronteiras entre autor/narrador se esmaecem e se confundem, propositalmente: é o que Bakhtin chama de “cosmovisão do autor, de cujo ponto de vista ele entende o mundo dos seus heróis” (BAKHTIN, 2008, p. 9) e que, porém, dialoga incessantemente com e entre eles, personagens, além de oferecer ao leitor perspectivas também multiplicadas de interpretação da obra. Desvendar a cosmovisão que rege a dialógica reinvenção do mito de Medéia na obra de Wolf pelo viés polifônico é o objetivo do presente trabalho. Parte-se, então, dessas breves observações sobre o foco narrativo para aprofundar a teoria da polifonia.