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Levantamento e caraterização da casa tradicional de Lospalos

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2. 1. CONFIGURAÇÃO SIMBÓLICA

Os "antigos" de Lospalos concebem a casa como a mais sublime representação (miniatura) do universo. A casa sintetiza, na sua configuração, uma sistema de relações e de crenças que a colocam para lá do mero objeto utilitário. Presume-se que há um ideal de orientação que se sobrepõe ante a exigência prática.

Assim, seria oportuno começar a falar da casa versando sobre a configuração simbólica, uma vez que esta tem a estreita relação com a própria configuração formal.

Existem várias versões a este respeito que variam, quase de casa em casa, consoante a tradição de cada linhagem familiar. Há quem diga que a casa deve ser alta porque o escadote teria que ter sete degraus. O número sete que teria a ver com o número de estrelas (não se sabe quais mas a verdade é que o número sete está presente também nos rituais).5 Há quem diga que a casa é alta, para enfatizar a relação com o Além, ou para afirmar o poderio.6 Assim por diante. Ora, devido à impossibilidade de recolher os dados, fazemos nós uma interpretação própria, na base do que se conhece, a partir do objeto da casa, relacionando-o com outros "objetos" que pensamos pertinentes. Perscrutar sobre o que está na base da conceção da casa foi importante, porque, assim, pudemos encontrar referências para a conceção do nosso Centro Cultural.

Ao observarmos a casa tradicional de Lospalos (Fig. 13), somos tentados a estabelecer algumas associações, suscitadas pela sua forma: um animal de quatro patas, uma árvore em cuja sombra os homens se refugiam, ou mesmo um ser humano. Todas estas associações são dignas de referência e, provavelmente, têm a sua influência mais ou menos explícita na conceção da casa.

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Informação do Sr. Faustino dos Santos (Chefe do Departamento de Indústrias Criativas Culturais de Timor Leste)

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Uma coisa é certa: quando o desenho é intencional, desenha-se o que se conhece. Na casa tradicional de Lospalos é de notar que a forma resulta, não da necessidade da exploração de si mesma, mas antes, como necessidade de desenhar intenções, sentidos e valores. Daí a evocação das figuras (acima referidas) como constituintes de tais valores.

O búfalo e o cavalo (Fig. 14 e 15) são animais que têm para os timorenses valores tanto reais como simbólicos, pois servem de meios para a execução de tarefas humanas, para as trocas matrimoniais, para assinalar prestígio e como animais de sacrifício nas cerimónias sócio-religiosas. De resto, são animais quadrúpedes com estruturas constituídas por patas (extremadas inferiormente por casco), tronco e cabeça. No caso do cavalo o pescoço é bastante comprido, afunila-se no sentido da cabeça e tende para a forma triangular. Deste modo, sob um certo ponto de vista, o cavalo é uma figura que pode associar-se à forma da casa de Lospalos: o estrado de madeira da casa (o envasamento) evocaria o casco, os quatro pilares como que as patas sustentando o tronco que seria o volume principal e a alta cobertura de gamuti, encimada por decoração em pau de fileira, seria o pescoço encoberto de crineira no bordo superior, encimado por orelhas.

Há também o galo (Fig. 16) que, sendo animal de grande estimação pelos timorenses, simboliza força, coragem e fertilidade. “Manu-aman” (de tradução literal em português ave-masculino, ou seja, galo) torna-se popularmente uma expressão que se refere à masculinidade e virilidade, pois é conhecido o desporto tradicional dos timorenses da “Luta de galos” em que os galos são postos em combate, pela vitória dos mais fortes e corajosos. O que se pretende realçar deste animal não é o seu aspeto físico (que no caso dos mencionados anteriormente inspiram estruturas de maior saliência, embora se possa também servir de inspiração figurativa), mas sim o seu valor simbólico, como testemunham as palavras de um ancião, enquanto comenta a casa tradicional: “Porquê a nossa casa fica sobrelevada? Porque deve ser em altura que o “Manu-aman” entoar a voz.”7

Trata-se, evidentemente, de uma alusão à relação entre o galo, a casa e o homem.

A árvore, por sua vez, representa o movimento da vida, pela própria

32 Fig. 14 Fig. 15 Fig. 16

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força de regeneração. No livro “Motivos Artísticos Timorenses e a Sua Integração”, Ruy Cinatti notou que:

“A árvore tem para o timorense uma importância só equiparável ao facto de haver nascido.” De facto, “a ela vai buscar alimentos – folhas, flores, frutos -, os materiais com que constrói as casas e confecciona o vestuário (antigamente feito a partir da entrecasca) e toda a série de utensílios domésticos e afins com que melhora o condicionalismo vital; finalmente, como paradigma axiomático de multiformes circunstâncias, a árvore é a garantia do pão, já que Timor se situa numa zonafitogeográfico adstrita. De tudo isto se apercebem os timorenses que, por configuração própria à sua cultura, a elevaram à categoria de símbolo, do qual decorrem quase todas as suas atividades sagradas e profanas.”8

Ora, de modo global, será a árvore, talvez, a que desempenha maior ligação com a construção arquitetónica (em comparação com os animais) pela estaticidade, que sugere permanência e estabilidade, e além de constituir matéria-prima para a construção. Nesse sentido, é possível estabelecer uma analogia entre a casa tradicional de Lospalos e a árvore (Fig. 17).

Se a árvore é constituída por raiz, tronco e copa, na casa tradicional de Lospalos também se reflete esta tripartição, ao adotar, na sua organização vertical, uma composição tripartida: espaço térreo fluído, zona habitacional sobrelevada e cobertura com altura muito acentuada. Estes três componentes assumem valores simbólicos ao anunciar os três níveis cosmogónicos: o mundo dos mortos, o mundo dos vivos e o mundo dos espíritos; ou, noutra versão, o mundo dos animais (seres irracionais), o mundo dos humanos (seres racionais) e o mundo dos espíritos.

A fundação da casa de Lospalos, por sistema de estacas, não se enraíza tão funda na terra: o que dá (também) uma certa ideia de se encarar a terra como “superfície”, de entendê-la mais como realidade poética e não no sentido “geológico”, ou seja, para fora e não para dentro. Deste modo,

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CINATTI, Ruy, Motivos Artísticos Timorenses e a sua Integração (Lisboa, IICT / Museu de Etnologia, 1987), p. 162

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pode dizer-se que há, na conceção arquitetónica da casa de Lospalos, uma certa atitude de distanciamento e, em simultâneo, de respeito (no sentido de não exploração) perante a terra.

Assim, ao contrário dos contextos geográficos propícios ao uso da pedra, que instigam construções megalíticas, ou ainda a ideia remontada ao tempo mais remoto de a casa-caverna, quase poderia dizer-se que a casa de Lospalos nasceu de uma folha. Como a ideia do barco terá surgido a partir de uma folha a flutuar sobre a água, assim também a ideia da casa terá começado por gesto primário do timorense proteger-se da chuva com a folha de palmeira.

Em Timor, de uma forma geral, e em Lospalos, em particular, nos tempos remotos é mais fácil deparar-se com abrigo montado sobre árvore do que “casa-gruta” (abrigo de pedra). Isto deve-se, talvez, à falta de conhecimento de meios para a exploração da pedra, mas, ao mesmo tempo, testemunha a tendência natural dos timorenses pelas construções mais leves.

Finalmente, a figura humana. Ao observarmos os enfeites da cobertura, reparamos no esmerado cuidado com que os construtores de Lospalos enfeitam a sua casa: como se de ser humano tratassem (Fig. 18). Búzios laçados ou estendidos em cordões sobre o revestimento de fibra da gamuteira, prolongamento de paus de fileira, ou ainda outros objetos evocativos, coroam, na verdade, os habitantes da casa, ao realçarem a sua posição no universo ou na sociedade a que pertencem. A figura humana é, sem dúvida, o constante na inspiração artística, presente em todas as culturas e civilizações. A própria arte, enquanto invenção humana, corresponde a expressão humana, ora sob figuras alheias, ora sob figura própria. Uma das primeiras coisas que o homem aprende a escrever é o (seu) nome, o mesmo se sucede com as primeiras figuras que o homem apreende desenhar: a figura humana.

A arquitetura, a despeito da sua primordial natureza de construção e de abrigo, sempre foi, ao longo da História, um “meio” pelo qual se ativam e se registam as criatividades artísticas (e nela se incorporam, inclusive, as obras de pinturas, esculturas e afins).

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A arquitetura tradicional de Lospalos não está isenta desse procedimento. Aliás, desde as pinturas rupestres do Neolítico e Mesolítico timorense reproduzem os motivos artísticos com referência à figura humana, cujo significado simbólico se traduz na proteção contra os espíritos malignos e na recordação dos antepassados.9 Essa prática repete-se, posteriormente, nos motivos aplicados nas casas tradicionais. No que se refere à casa de Lospalos, as decorações com a evocação à figura humana estão presentes (entre outras representações) em forma pictórica ou entalhada na face exterior das paredes, ou através de objetos ornamentais escultóricos, como já referimos.

Pode, ainda, trazer-se à memória uma outra figura: o barco (Fig. 19). Um barco à vela, resistente ao vento e à tempestade, navegando no alto mar, em triângulo, o velame erguendo-se sobre a plataforma, entre eles param e movimentam os homens. Um veleiro lançando-se ao mar faz lembrar a casa de Lospalos “caminhando” sobre planície.

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2. 2. MATERIAIS E SISTEMAS CONSTRUTIVOS

A casa de Lospalos é construída, globalmente, em materiais naturais de origem vegetal: desde os elementos estruturais, aos revestimentos e aos de ligação. Os materiais mais utilizados são pau-ferro (ai-bessi), pau-rosa (ai-ná), acadiro (ai-acadirum), bambu (au-maus), palapeira/palapa (ai-car) e gamuteira/gamuti (au-naulurir).10 Os materiais são obtidos diretamente nas florestas e pelos próprios aldeões (que pretendem construir).

Para possibilitar a tarefa, o "pretendido", normalmente congrega familiares ou pessoas conhecidas (dirigidos por um especialista, carpinteiro, caso o proprietário não o seja) que vão derrubar as árvores específicas, extraindo as madeiras e transportando, por vezes, troncos inteiros para o local a construir, onde serão efetuadas as adequações necessárias para a execução. São rudimentares os instrumentos utilizados no derrube e na aparelhagem das madeiras: o machado, a catana, o formão e a plaina rústica.11

Devido às condicionantes climáticas, escolhe-se a época para construir, de preferência, a época seca que ocorre nos meses de junho, julho, agosto e setembro: sendo a preparação dos materiais efetuada em junho e julho (tempo suficiente para que os troncos sequem) e aplicados na construção em agosto e setembro.

Na execução da casa conta-se sempre com a ajuda de especialistas, ou seja, carpinteiros, pois as exigências construtivas e decorativas são mais complexas e arrojadas: chegando a durar anos (3, 4 ou 5) a conclusão da obra.12

O terreno escolhido para implantar a casa é, de preferência, plano, tratando-se dum sistema arquitetónico preconcebível e unitário, não é adaptável aos declives.

A construção inicia-se com a fundação de quatro pilares de pau-rosa

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CINATTI, Ruy, Arquitectura Timorense (Lisboa: IICT/Museu de Etnologia, 1987), p. 221

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Ibidem, p. 132

40 Fig. 20 | A base da casa

Fig. 21 | Detalhes construtivos

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(ai-na) em quatro buracos escavados nos vértices de uma planta quadrangular, nos quais os pilares são firmados com calços de pedra e terra (Fig. 20). A seguir, colocam-se os vigamentos, particularmente dois (feitos em pau-ferro, ai-bessi), postos em paralelo e fixos aos pilares por entalhe e cordame de gamuti e rota13. Sobre estes, coloca-se um segundo vigamento, igualmente dois (ou três, dependendo da dimensão da casa), paralelos entre si e perpendiculares aos anteriores, nos quais ainda é posto um terceiro vigamento aumentando-se em número de modo a ganhar o vão a fim de receber os barrotes do pavimento do piso, revestido, a seu tempo, de bambu espalmado ou placas de madeira (Fig. 21).

Até aqui as técnicas empregues nas ligações dos diversos elementos constitutivos são os entalhes, as cavilhas e as ligações por cordame. As mesmas técnicas que se aplicam no resto da construção (Fig. 22).14

Feita a estrutura-base, sobre ela são erguidas as paredes e a cobertura, e começam por colocar-se os esqueletos do corpo principal com travamentos, que desempenham duas funções estruturais sustentando as paredes e transmitindo para a estrutura-base as cargas concentradas provenientes de cobertura. Estes são unificados, na parte superior, com frechal que, por sua vez, se conecta à quase piramidal estrutura do teto enquanto presos, na parte inferior, às traves do pavimento (Fig. 23 e 24).

O teto em si, arma-se em varedo, finas vigotas, intermediadas de terças, concorrem a culminar-se na cumeeira. Então visualizam-se prontas quatro águas a serem cobertas com camadas de palapa e fibra de gamuti, postas em sobreposição e atadas ao varedo. Tendo a forma de quase uma pirâmide invertida, a cobertura chega a elevar-se até onze ou doze metros de altura e, em alguns casos, é forrada no interior com um esteirado de bambu espalmado, como medida de proteção contra o fogo.15 A inclinação muito acentuada da cobertura funciona eficazmente no escoamento de águas pluviais, que, chegando ao beirado, são afastadas das paredes.

A construção conclui-se com a aplicação de revestimentos e suplementos decorativos. 13 Ibidem, p. 143 14 Ibidem, p. 217 15 Ibidem, p. 145

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Fig. 23 | Uma casa (vulgar) em construção

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Já se mencionou, acima, os revestimentos empregues na cobertura e no pavimento do piso, sendo de fibra da gamuteira/palapa e de bambu espalmado, respetivamente. Quanto aos revestimentos das paredes, existem algumas variações: ou em tabuado de madeira (palavão preto ou pau-rosa), ou em palapa, ou em bambu espalmado, ou ainda em revestimento misto (Fig. 25).

As pequenas aberturas são efetuadas nas paredes, cujas folhas apoiadas nos travamentos, permitem a "acessibilidade" visual e a circulação de ar (e de fumo). Eleva-se acerca de um metro do solo um estrado de madeira donde se acede ao interior da casa através de um escadote e alçapão aberto no sobrado.

Por fim, procede-se às decorações de entalhes, desenhos incisos, pinturas e esculturas de madeira, armações de gamuti e longos cordões de grandes búzios. Os desenhos são aplicados nos vigamentos do piso, nos tabuados das paredes e as representações escultóricas aplicam-se no remate da cobertura que apresenta traves esculpidas que prolongam a cumeeira para ambos os lados e terminam em forma de proas de barcos; dos quatro cantos da cobertura pendem cordões de búzios terminando num grande univalve (Fig. 27).16

16 Idem. p. 145

44 Fig. 25 | Corte

45 Fig. 26 | Alçado

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Fig. 27 | Detalhe decorativo da cobertura

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2. 3. CONFIGURAÇÃO ESPACIAL

O contexto, a todos os níveis ligado à vida natural, em que a casa tradicional de Lospalos se insere é o fator determinante da configuração espacial da casa. A vida ocorre mais no exterior do que no interior, as atividades de subsistência, ou seja, os trabalhos do campo exercidos ao ar livre ocupam a maior parte do tempo dos habitantes. Normalmente, saem de manhã, passando o dia no campo a trabalhar e só retornam ao entardecer. Não raras vezes, todos (homens, mulheres e crianças) vão à faina: ninguém fica em casa. Mesmo os que ficam, realizam os seus trabalhos domésticos ao ar livre, ao redor da casa, quando não chove: como, por exemplo, secar ou pilhar o milho, preparar a comida para seus animais domésticos, as crianças a correrem de um lado para outro a céu aberto, as mães a tecerem panos sob o sobrado da casa e a conversar, etc.

O piso da casa, propriamente dita, é usado durante o dia para cozinhar, comer, ou fazer cesta. A pouca abertura em relação ao exterior e o reduzido dimensionamento do espaço interior tornam forçoso aí realizar outras atividades. Durante a noite, toda a família se acolhe para cozinhar, estar e dormir.

Relativamente às disposições interiores, o espaço apresenta-se unitário, não existem paredes divisórias, de modo que não faria sentido falar em termos “divisões interiores”. Diferentes funções atribuídas pelo espaço são assinaladas pelas disposições dos tabuados de madeira, ora no pavimento, ora no vertical assinalando pequenas compartimentações.

A localização da entrada é decisiva para que se organize o espaço interior. Abre-se o alçapão, num canto da planta quadrada, (exterior à planta inicial sobre a qual estão erguidos os quatro pilares, recordando-se que a planta do piso aéreo se amplia em metade da área medida entre os pilares). Fixando a entrada, as compartimentações jogam-se com poucas variáveis: uma antecâmara acolhe a chegada de escadote; uma zona central de uso livre, serve-se para estar, comer, dormir; uma cama encostada a uma parede, de cujo lado oposto está localizada cozinha com lareira; aproveita-se também o interior da cobertura dispondo um ou dois estrados de bambu

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ligados ao varedo, onde arrumam parte das reservas alimentares e riquezas de família (Fig. 29 e 30).

Importa salientar que não estão incluídas na organização da casa as instalações sanitárias, que, quanto muito, correspondem a improvisadas casas de banho instaladas exteriormente nas áreas contíguas.

Do ponto de vista da perceção espacial, a casa de Lospalos dá-se em formas básicas e regulares que permitem ao observador uma relação franca com o objeto. Desenvolve-se na vertical, sendo elevada contra a gravidade, não deixa de transparecer leveza; os quatro troncos de suporte em madeira fazem com que a casa se libere da ideia de construção pousada. O peso que se deve descarregar brutalmente no chão, é controlado e transmitido com delgadeza. Desvirtuando a tensão, transmite a sensação de movimento.

A gravidade acentuada pela altura da cobertura – inclusive em termos visuais, devido à cor preta forte da fibra de gamuti – é compensada, paradoxalmente, por “vazios deixados” entre os pilares no piso térreo, que dissimulam a tensão e anulam o efeito estático. O jogo formal e material confere, ao espaço, um sentido gradual, ascendente, do aberto ao fechado: semiaberto (piso térreo), fechado com pouca abertura (piso aéreo), fechado por completa (teto).

A execução com sensibilidade técnica e estética do uso da madeira - explícita especialmente nos pontos de conexão, nos detalhes de remate ou decorativos - dão uma certa profundidade que se não deixa perceber “superficialmente”. A conjugação entre a complexidade dos vigamentos, o volume simples, quase cúbico, a forma piramidal da cobertura e o interior “minimalista”, espelha uma certa tendência pela abstração/perfeição a partir da consciência do real. As três divisões verticais são claras, sem banalização, atribuindo-se a cada parte abordagem própria, as diferenciações são conjugadas em torno dum espaço ideal.

Acedendo-se ao interior, o observador é acolhido sob o sobrado, sendo a chegada anunciada por uma elevação de pavimento em madeira, a separar o espaço da casa, da terra seca ou lamaçal pela época de chuva. A chuva já se não faz sentir, a não ser o vento salpicar águas pluviais no espaço térreo desprovido de paredes.

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O sol, quanto mais alto, mais se esconde do sobrado e a sombra encolhe-se. Sobre a cabeça do observador estão entrelaçados os vigamentos que à partida, parecem exagerados em número, mas cumprem, na verdade, funções precisas. Pega-se no escadote para subir ao piso aéreo. O alçapão é bastante estreito, só dá para passagem de uma pessoa. Então, encontra-se no interior da casa: o ambiente escuro contrasta com o do exterior, que precisa de segundos para adaptar a visão. Se o revestimento do pavimento é de bambu espalmado, faz-se barulho ao caminhar-se sobre ele. Mas o espaço não é próprio para se caminhar, sendo reduzido, aberto e unitário, sugere vontade de se sentar a quem chegue. A volumosa fibra de gamuti da cobertura consegue amenizar a temperatura interior e os materiais vegetais das paredes e do pavimento, além da sua fina espessura, têm brechas que deixam circular o ar mantendo fresco o ambiente. As pequenas janelas (uma ou duas) abertas nas paredes reforçam ainda esse efeito ao estabelecerem o contacto visual com o exterior. As paisagens naturais, lá fora, ganham outra intensidade vistas a partir destas pequenas aberturas do espaço interior escurecido.

Tomando-se conta, à luz do dia, o percurso tinha conduzido o observador, dum exterior radiante, a um interior obscurecido, onde todo o movimento do espaço se introduz numa verticalidade enigmática.

Aqui, precisamente, o habitante de Lospalos repousa. No limiar da luz e sombra. Do mundo e mistério.

Quanto à relação do interior e exterior, é de ter em consideração, primeiramente, que a tipologia da casa de Lospalos é uma tipologia que resulta, não propriamente do confronto com a topografia, mas do facto de a sua implantação não proceder, por princípio, a alterações efetivas ao terreno.

As aglomerações humanas presentes nos aldeamentos tradicionais são compostas normalmente de parentescos, pessoas da mesma linhagem de família que se ocupam nas suas propriedades terreais. De modo que a elevação do piso da casa, que libera o espaço térreo e o mantém fluído,

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