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O liberalismo econômico e princípio do modelo “gerencialista”: o Estado mínimo e a cultura como setor “não essencial”

2. AS RELAÇÕES DO ESTADO COM AS CULTURAS POPULARES: O CONTEXTO

2.3 O liberalismo econômico e princípio do modelo “gerencialista”: o Estado mínimo e a cultura como setor “não essencial”

Após o período ditatorial, da segunda metade da década de 1980 ao final da década de 1990, houve paradoxalmente uma fase, na qual, por um lado, foram realizados importantes avanços e, por outro, ocorreu uma relativa instabilidade no campo das políticas culturais.

Naquele momento, por exemplo, foi criado o Ministério da Cultura em 1985, e diversos órgãos complementares, para que se pudesse ter mais autonomia e fossem implementadas políticas específicas para o campo das culturas. Além disto, foi promulgada a Constituição Federal em 1988, que trouxe importantes artigos

32 Afirma Holanda (1995, p. 146): “No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um

sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma orientação impessoal. Dentre esses círculos foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar – a esfera, por excelência dos chamados ‘contatos prim|rios’, dos laços de sangue e de coração – está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas”.

70 relacionados a demandas dos movimentos sociais e da classe artística do país. Houve, entretanto, um período de intensa instabilidade na estrutura administrativa dos órgãos recém-criados e um crescente processo de liberalismo do Estado, no que se refere aos investimentos no campo cultural. O Ministério da Cultura, por exemplo, logo é transformado em secretaria e são extintos uma série de órgãos e instituições públicas voltadas às políticas culturais (Calabre, 2009; Rubim, 2007).

Esta instabilidade está relacionada, ao menos em parte, conforme Filgueiras (2011), ao fato de que, a partir dos anos 1990, a administração pública brasileira passou a iniciar a adoção do chamado “modelo gerencialista”, com fins de atender às exigências de organismos internacionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, e se adequar às necessidades da globalização de mercados, da presença cada vez maior da legislação internacional de comércio e do aperfeiçoamento dos mecanismos de gestão pública33.

Neste contexto, dentre outros elementos, houve uma pressão para descentralização das atividades da burocracia do estado, disciplina no dispêndio de recursos, corte e/ou limitações de seus gastos, privatizações estatais, terceirização dos serviços “n~o essenciais” e criaç~o de instrumentos de maior transparência, como forma de controlar o repasse dos recursos públicos (Filgueiras, 2011)

Data desta época a defesa por parte do poder público de que o Estado deveria investir no campo cultural de forma apenas suplementar. Com base na ideologia neoliberal, passou-se a defender a ideia do “Estado mínimo”. Este processo de relativo enfraquecimento da política cultural irá se tornar ainda mais crítico no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, com a extinção de uma série de órgãos. Neste período foi promulgada a chamada “Lei Rouanet” em 1991 no Governo do estão presidente Fernando Collor de Melo, como mecanismo de

33 De acordo com Filgueiras (2011), diferentes diagnósticos passaram a reconhecer a histórica

desorganização, ineficiência e corrupção da estrutura burocrática do Estado brasileiro, desenvolvida após a Era Vargas. Neste contexto, por pressão de organismos internacionais o poder público procurou adotar em meados dos anos 1990, o chamado modelo “gerencialista”, sob o comando do ex-ministro Bresser-Pereira, regido, ao menos em tese, pelos princípios de descentralização, da accountability, da inclusão social e da eficiência fiscal.

71 incentivo à cultura por parte do empresariado por meio da renúncia fiscal34(Calabre, 2009; Rubim, 2007).

A Lei Rouanet, apesar de sua importância como mecanismo de fomento, consolida, na prática, o processo de fortalecimento do poder do mercado na tomada de decisão dos investimentos no campo artístico e cultural35, além da

inauguração de um crescente processo de burocratização nos processos de apoio às manifestações culturais no Brasil. Algumas destas questões posteriormente passarão a ser questionadas. De todo modo, percebe-se que sua implementação não teria grandes repercussões naquele momento no campo das culturas populares (Salgado; Pedra; Caldas, 2010).

Na contramão do movimento empreendido pelo governo federal, entretanto, o estado de Pernambuco procurou justamente ampliar neste período a sua atuação no campo da cultura, sob o comando do governador Miguel Arraes. Com o slogan “Gest~o Cultural pelas m~os do povo”, o governo estadual buscou desenvolver uma série de ações voltadas ao campo da cultura popular, políticas públicas na área da leitura e a expansão da estrutura de alguns órgãos, como a Fundarpe, de acordo com José Luiz da Mota Menezes (2008).

Conforme Menezes (2008), Arraes tinha o interesse de reproduzir algumas das ações e programas instituídos nos anos 1960 pelo Movimento de Cultura Popular. Para isto, a partir de 1987, em seu primeiro mandato, convidou representantes do próprio segmento cultural para participar de sua gestão, como o escritor Maximiano Campos, o livreiro Tarcísio Pereira e, por fim, a atriz Lêda Alves, em diferentes momentos, para presidir a Fundarpe. Em seu segundo mandato, em 1995, convidou ainda o mestre Ariano Suassuna para atuar como Secretário de Cultura. E, tanto na primeira gestão, quanto na segunda, convidou o Mestre Salustiano para atuar como Assessor Especial de Cultura (Bandeira, 2005; Nascimento, 2005).

34 Este mecanismo surge em substituição a outro um mecanismo de mecenato financiado por meio

renúncia fiscal que foi implementado durante o governo de José Sarney em 1986 (Calabre, 2009; Rubim, 2007).

35 Atualmente, encontra-se em tramitação uma proposta de mudança na Lei Rouanet para que o

Estado possa ter um maior controle na aplicação dos recursos públicos e garanta uma maior equidade na distribuição dos mesmos entre os proponentes das diferentes regiões do país.

72 Este último, como discutirei mais à frente, tinha uma atuação importante na cultura popular e gozava de um relativo prestígio entre os maracatuzeiros. Durante o período em que atuou como assessor, Mestre Salustiano contribuiu, por exemplo, para a criação da Associação de Maracatus de Baque Solto de Pernambuco, com o apoio do governo estadual, e fez com que fossem construídos espaços públicos para apresentações e sambadas dos maracatus, a exemplo do “Terreiro Lêda Alves36” no município de Aliança e o “Espaço Ilumiara Zumbi”, na Cidade Tabajara,

em Olinda (Bandeira, 2005; Nascimento, 2005).

O segundo mandato de Miguel Arraes pelo Partido Socialista Brasileiro – PSB à frente do governo estadual, em 1995, entretanto, foi marcado por uma forte oposição ao governo federal do então presidente Fernando Henrique Cardoso do Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB. Conforme Menezes (2008), esta postura contribuiu dentre outras razões para que o estado sofresse uma grave crise financeira que comprometeu fortemente a sua segunda gestão.

No plano municipal, em cidades como Recife e até mesmo em municípios do interior de Pernambuco, um exemplo que parece paradigmático das ações instituídas pelo poder público para o campo da cultura está no estímulo aos eventos chamados “Carnavais fora de época” ou “micaretas”. Como observou Rafael Moura de Andrade (2016), nestes eventos adotava-se o modelo de festividade carnavalesca que fazia grande sucesso em Salvador a partir dos anos 1990, em que predominavam desfiles de trios elétricos com atrações da chamada

Axé Music, em blocos de carnaval, no qual o público mantinha-se separado por

cordões de isolamento e tinham acesso, exclusivamente, por meio da compra de um abadá.

Este modelo de festividade, financiado predominantemente pelos patrocinadores e pela venda direta de abadás, foi mantido durante anos no Recife e em diferentes municípios do estado e ainda ocorrem em várias cidades do interior. Mas, no início dos anos 2000, pareceu chegar a uma espécie de esgotamento por seu caráter sazonal e não democrático de investimento e acesso aos bens culturais.

36 Nome escolhido para homenagear a ex-presidente da Fundação do Patrimônio Histórico e

Artístico de Pernambuco – FUNDARPE que teve um papel importante no apoio à criação da Associação de Maracatus de Baque Solto de Pernambuco.

73 Assim como o modelo de financiamento à cultura pela Lei Rouanet, neste tipo de atuação governamental, os investimentos estariam restritos ao mercado e ao interesse econômico.

Percebe-se, portanto, que neste período, enquanto que o governo federal e os municípios reduziam sua atuação no campo da cultura e desenvolvia ações com base no liberalismo econômico, o estado de Pernambuco buscava paradoxalmente ampliar algumas de suas ações governamentais no campo da cultura, sem que tenha havido modificações nas antigas relações patrimonialistas.

2.4 Cultura como política de Estado: a institucionalização das atuais políticas