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3. OS “ATOS DO ESTADO”: A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA E SUA LEGITIMAÇÃO

3.1 O poder do Estado e a sua legitimação

É importante ressaltar que, ainda sob perspectivas distintas, o exercício do poder pelo Estado é um tema encontrado reiteradamente na obra de autores fundantes das ciências sociais, como Durkheim, Marx e Weber39 e continua sendo

apontado nas contribuições de autores contemporâneos, como observa Sallum Júnior (2011). De acordo com John Scott (2010, p.80), ”os Estados desempenham muitas funções e regulam quase todos os aspectos da vida das pessoas”. Sua atuação, em princípio, está diretamente relacionada à implantação da ordem no meio social e o poder que exerce, como instituição reguladora, encontra legitimidade, em geral, entre os agentes aos quais suas ações são destinadas. É papel do Estado, portanto, empreender na contemporaneidade este ordenamento do mundo social “para o bem de todos”.

Conforme Bourdieu (2014), no entanto, o Estado não é uma entidade em si mesma autônoma e desconectada do universo social, e, os seus agentes não estão, em princípio, a serviço dos setores dominantes. Para este autor, o Estado pode ser mais bem definido como um “campo de poder” da administraç~o pública que detêm o monopólio da violência simbólica legítima. De acordo com Bourdieu (2014), portanto, mais do que pensar no Estado em si, é importante pensar nos “atos de ´Estado´” e como estes atos s~o legitimados e aceitos tacitamente por meio do consensus sobre princípios e valores compartilhados na sociedade.

Nas palavras de Bourdieu (2014, p. 38 - 39):

O que chamamos de Estado, o que apontamos confusamente quando pensamos em Estado, é uma espécie de princípio da ordem pública, entendida não só em suas formas físicas evidentes, mas em suas formas simbólicas inconscientes [...] Para escapar à teologia, para poder fazer a crítica radical dessa adesão ao ser do Estado, que está inscrita em nossas estruturas mentais, é possível substituir o Estado pelos atos que podemos chamar de atos de “Estado” – pondo “Estado” entre aspas -, isto é, atos

39 Como observa Miceli (2014, p.14), o poder exercido pelo Estado nestas diferentes perspectivas

pode ser resumidamente definido como o “fundamento da integração lógica e moral do mundo social”, para Durkheim; o “aparelho de coerç~o a serviço da classe dominante”, para Marx e o “monopólio da violência legítima”, para Weber. Independentemente da perspectiva, no entanto, o exercício do poder parece inerente a atuação do Estado.

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políticos com pretensões a ter efeitos no mundo social. Há uma política reconhecida como legítima, quando nada porque ninguém questiona a possibilidade de fazer de outra maneira, e porque não é questionada. Esses atos políticos legítimos devem sua eficácia à sua legitimidade e à crença na existência do princípio que os fundamenta.

Apesar do aparente consenso em torno da legitimidade das ações oficiais do Estado, no entanto, é necessário salientar que Bourdieu não nega a importância dos movimentos sociais e dos questionamentos às ordens instituídas. Na verdade, sua compreens~o de Estado como “campo de poder” aponta justamente para a existência de disputas e dissensos na sociedade. Há contradições e paradoxos nos atos do Estado. Sua perspectiva, de todo modo, reconhece que há assimetrias nas capacidades dos agentes contestarem estes atos legitimamente.

Os juristas como agentes do Estado, por exemplo, conforme Sérgio Miceli (2014, p.24):

Na condição de mestres do discurso, eles dispõem de um trunfo formidável de poder: fazer crer naquilo que dizem. Sua autoridade lhes permite dizer e fazer como verdadeiro aquilo que lhes interessa. Ao fazer crer que é verdade para os que têm poder de fazer existir o verdadeiro (os poderosos), os juristas podem tornar real aquilo que dizem. Contam com o direito de hálito universal e dispõem da capacidade profissional de fornecer razões ou melhor, de converter evidências em arrazoados, pelo apelo a princípios universais, pelo recurso à história, aos precedentes, aos arquivos, à causuística e às demais fontes de jurisprudência.

Para Bourdieu (2006), as diferenças em termos do que ele chama de “capital cultural”, “econômico”, “social” e “simbólico” entre os agentes que ocupam determinadas posições na esfera social, trazem como consequência, a ilusão de que há uma autonomia absoluta do campo do Direito. Como observa o autor, na verdade pode haver uma ampla pluralidade de interpretações concorrentes das leis implementadas pelo Estado por parte dos próprios juristas, mas a linguagem utilizada em sua elaboração tende a reforçar por meio do que ele chama de “violência simbólica”, a vis~o de que existe uma objetividade, imparcialidade e unanimidade em relação à sua interpretação e aos seus efeitos40.

40 Conforme Bourdieu (2006, p. 212), “O campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio

do direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a vis~o legítima, justa, do mundo social”.

88 Como demonstra Mary Douglas (1988, p. 56), instituições sociais, se não determinam, exercem uma forte coerção no pensamento dos indivíduos, em razão de sua legitimidade social, “baseada na concord}ncia comum em torno de algum princípio fundante.” No entanto, é importante notar que a “racionalidade” e a “objetividade” da sociedade moderna Ocidental n~o deixam também de ser um tipo de “construç~o social”, influenciada por uma complexidade de elementos, que envolvem representações sociais, interesses políticos, dentre outros aspectos,41

como alertaram, por caminhos e objetivos teóricos distintos, Jean Comaroff, Jonh Comaroff (2010) e Bruno Latour (2011).

Como observou Jessé Souza (2015, p. 9 – 10):

Nas sociedades do passado o privilégio era aberto e religiosamente motivado: alguns tinham “sangue azul” por decis~o supostamente divina, o que os legitimava terem acesso a todos os bens e recursos escassos. A sociedade moderna, no entanto, diz de si mesma que superou todos privilégios injustos. Isso significa que os privilégios injustos de hoje não podem aparecer como privilégio, mas sim como, por exemplo, “mérito pessoal” de indivíduos mais capazes, sendo portanto justific|vel e merecido. É isso que faz com que o mundo social seja sistematicamente distorcido e falseado. Todos os privilégios e interesses que estão ganhando depende do sucesso da distorção e do falseamento do mundo social para continuarem a se reproduzir indefinidamente. A reprodução de todos os privilégios depende do “convencimento” e n~o da “violência”. Melhor dizendo, essa reprodução depende de uma violência simbólica, perpetrada com o consentimento mudo dos excluídos e dos privilégios, e não da “violência física”.

Percebe-se, na prática, que no caso específico das políticas culturais, os instrumentos burocráticos implementados para gestão dos recursos públicos, apesar de serem tidos como “necess|rios”, nem sempre cumprem com seus reais objetivos, no que se refere à garantia da transparência, isonomia e democratização na aplicação dos recursos públicos. Além de não serem plenamente eficazes no controle da corrupção, como aponta Fernando Filgueiras (2011), parecem inadequados para lidar com a complexidade de algumas expressões culturais. A seguir, contudo, descrevo brevemente como estes “atos do Estado” têm sido instituídos e os seus mecanismos de legitimação.

41 Afirmam Jean e John Comarrof (2010, p. 8), com base nas discussões de Bourdieu, que os

conceitos que utilizamos para descrever a vida moderna s~o “nossa própria cosmologia racionalizadora posando de ciência”. Conforme os autores também “fetichisamos” a noç~o de racionalidade moderna e é necess|rio empreender um “estranhamento” para compreendê-la tal como fazemos com as cosmologias nativas.

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