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Liberdade, tutela e cidadania na loucura: o papel da assistência e da saúde

1 OS ESQUECIDOS E O FAMILISMO NAS POLÍTICAS SOCIAIS: DA

1.1 Ordenamento familiar e restrição de liberdade: a responsabilidade do Estado

1.1.2 Liberdade, tutela e cidadania na loucura: o papel da assistência e da saúde

Na Europa, na virada do século XVIII para o XIX, o fim do Antigo Regime e o surgimento de valores que fundavam a Idade Moderna trouxeram elementos novos para as respostas dadas ao tema da loucura nos países europeus. Robert Castel (1978) analisa o caso francês, mas pontua que a realidade francesa se assemelha à de vários outros países. A partir do século XIX, a resposta psiquiátrica foi montada em conjunto com uma prática assistencial asilar para os alienados: a psiquiatria não decorreu de uma evolução e especialização da ciência médica, mas de uma consequência da assistência pública para normalizar indigentes, pobres, desempregados, vagabundos e loucos (CASTEL, 1978). De repente, a sociedade do contrato, fundada nos direitos e deveres entre cidadãos livres e iguais e, principalmente, sujeitos produtivos, se viu desafiada pelo tema da loucura, em que os indivíduos acometidos de enfermidades mentais não se enquadravam nos pressupostos do indivíduo esclarecido, produtivo e independente do Iluminismo — em outras palavras, do projeto liberal-burguês. Isto é, o louco não tinha a capacidade de reciprocidade e produtividade necessária para as trocas com a coletividade que sustentam o contrato na sociedade moderna.

Castel demonstra que a Revolução Francesa que rompeu com o Antigo Regime, com o poder tradicional monárquico, rompeu também com o equilíbrio do controle dos comportamentos desviantes, antes operado pelo poder real, principalmente pelo mecanismo das lettres de cachet (CASTEL, 1978). As lettres de cachet representavam a autorização do rei para determinar a restrição de liberdade de indivíduos que precisavam de internamento por motivo de loucura. Foi a partir desse movimento que se construiu, aos poucos, uma política direcionada à loucura que culminaria na lei francesa de 1838, que instituiu o regime de tratamento dos alienados. Esse novo modelo regulador da loucura substituiu o poder real pelo

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da justiça e da administração; ao mesmo tempo, centralizou no asilo o corpo de profissionais, técnicas e saberes do controle da loucura como doença. Assim, o saber psiquiátrico como alienismo nasceu simultaneamente ao nascimento do asilo para receber o louco.

Para Castel (1978), a psiquiatria exerce a função de administrar a loucura transformando-a numa questão, acima de tudo, técnica. O alienismo e seu modelo de internação “representaram a versão medicalizada da concepção segregativa da assistência” (CASTEL, 1978, p. 273). O papel que a psiquiatria exerceu, ao longo do século XIX, respondeu à própria lógica da sociedade contratual, que anuncia o louco como incapaz, como irresponsável, como refratário à lógica do trabalho — portanto, como alguém que precisa ser protegido, tutelado. A psiquiatria oferece, por meio da técnica asilar, a possibilidade de administrar os inassimiláveis, os desajustados, os loucos, sujeitando-os às normas de uma sociedade produtiva constituída de indivíduos racionais e aptos para a produção. Mas, para essa sujeição ocorrer, a tutela dos loucos por meio do asilo antecipou em quase cinquenta anos a assistência pública aos pobres como proteção no capitalismo gerador de pauperismo (CASTEL, 1978). A tese de Castel é que essa antecipação foi pelo fato de o louco representar uma ameaça à sociedade contratual.

No caso brasileiro, o hospício foi criado pelo Decreto Imperial de 1841 e inaugurado em 1852 (ENGEL, 2001). Embora inspiradas na experiência francesa, onde a origem histórica da psiquiatria era decorrência da constituição do asilo, as respostas aos problemas colocados pela loucura no Brasil foram resultado do regime monárquico (ENGEL, 2001). O tema da proteção ao louco se colocava dentro de um enquadramento da caridade aos desvalidos, do isolamento dos loucos arruaceiros que ameaçavam a ordem pública, fazendo uso de práticas caritativas, longe ainda de decorrer de um contrato social de afirmação de proteção ao indivíduo incapaz para a ordem do trabalho e para a ordem burguesa (ENGEL, 2001). Para Pedro Gabriel Delgado (1992), o desafio colocado pela loucura à sociedade do contrato, no Brasil, só poderia se configurar a partir do Decreto de 1903, que criou o regulamento da assistência a alienados, no início do período republicano. Desse modo, assim como na França, a assistência aos loucos antecipou a assistência pública aos pobres — no caso brasileiro, também em quase cinquenta anos —, dado que as ações da assistência social foram estruturadas a partir da criação da Legião Brasileira da Assistência Social, em 1942 (SANTOS, 1979).

Delgado (1992) buscou demonstrar como ocorreu a articulação entre a psiquiatria e o direito para a determinação da cidadania na loucura no Brasil. Seu trabalho foi profundamente

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marcado pelos princípios e valores que orientaram a luta antimanicomial no país, que iniciou no final dos 1970, cresceu nos anos 1980 e 1990 e culminou com a aprovação da chamada Lei da Reforma Psiquiátrica em 2001, a lei 10.216 (BRASIL, 2001). O objetivo de Delgado (1992) foi o de percorrer historicamente e investigar como saberes e práticas da psiquiatria e da justiça dialogaram para estabelecer ou não o estatuto de cidadania dos loucos, principal reivindicação do Movimento da Reforma Psiquiátrica. É possível apreender da obra do autor que a afirmação dos direitos dos loucos contemporaneamente não pode prescindir de uma investigação de como saberes dialogaram em diferentes momentos históricos, acompanhando as mudanças das respostas dos governos, da psiquiatria e da justiça à questão da loucura e às práticas da tutela, da assistência, da interdição e da punição aos indivíduos loucos.

O dispositivo da interdição, comumente empregado em casos de loucos considerados, principalmente, por suas famílias como incapazes de gerir a própria vida, ganhou uma análise profunda na obra de Delgado. Por meio da análise de documentos históricos, leis e peças judiciais, ele concluiu que a interdição por motivos psiquiátricos serve para outras finalidades sociais, além da proteção das pessoas incapazes de cuidar ou de gerir suas vidas (DELGADO, 1992). Uma série de regulações de interesses familiares, administrações de bens e recursos dos loucos, restrição à participação na riqueza familiar, ou seja, exemplos extremos de violação de direitos fundamentais dos loucos fundamenta grande parte das interdições a pedido dos familiares. Delgado articula essas consequências da interdição ao modelo de tutela do indivíduo louco predominante no Brasil até os anos 1980. É da ausência do reconhecimento da cidadania do indivíduo louco que o paradigma da tutela estrutura a relação entre justiça e loucura, destituindo do indivíduo louco o status de cidadão (DELGADO, 1992). Em busca da desregulamentação desse modelo da tutela, o Movimento da Reforma Psiquiátrica buscou articular novas respostas à questão da loucura, promovendo a cidadania do indivíduo louco.

Tanto para Castel quanto para Delgado, a tutela que, por um lado, promove assistência aos sujeitos improdutivos, mas por outro, restringe a participação do indivíduo louco na vida social é decorrência de um modelo assistencial psiquiátrico montado em torno do asilo para responder ao impasse do indivíduo louco improdutivo que não faz parte da sociedade do contrato (CASTEL, 1978; DELGADO, 1992). A assistência psiquiátrica que tem como predomínio o modelo manicomial, voltado para a apartação social dos loucos como modalidade profilática das agruras do sofrimento mental, gera consequências deletérias para a vida do indivíduo, conforme demonstrado pelos autores. O efeito da tutela nesse modelo é o

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paternalismo, que institui uma relação institucional de dominação para controle dos loucos, mas sob a prerrogativa da assistência necessária e benfeitora.

Castel (1978) conclui seu livro dizendo que é depois do modelo do asilo e da tutelarização que surge a psiquiatria tal como conhecemos contemporaneamente, que considera a loucura como uma doença e que busca nas manifestações dos transtornos uma lesão constitutiva, aproximando-se assim da medicina com tendências organicistas. Por sua vez, Delgado conclui seu livro apontando que a reforma psiquiátrica se empenhou no Brasil para reverter essa tutelarização que destitui o status de cidadania e impossibilita o desenvolvimento de uma vida social com sentido na loucura; para isso, abriu os portões dos manicômios, oferecendo assistência psiquiátrica em serviços de base comunitária e de não apartação social.

Estabelecer uma analogia para compreender as instituições disciplinadoras e normalizadoras da sociedade atual não deve significar “dissimular o antagonismo de princípio entre o direito de punir e o dever de dar a assistência” (CASTEL, 1978, p. 38). A relação entre família, psiquiatria, justiça e indivíduo louco sempre esteve às voltas com os desafios da garantia da cidadania na loucura, cujo experimento do asilo é o melhor exemplo da resposta que inviabiliza a participação do louco na vida cotidiana da comunidade. No Brasil, a Lei 10.216, de 2001, buscou promover alternativas para a assistência médica diferentes das da resposta asilar (BRASIL, 2001). Por outro lado, o direito à assistência social firmado na Constituição Federal de 1988 visa à garantia de necessidades básicas aos indivíduos, independente de sua capacidade produtiva (BRASIL, 2004b). Entretanto, em meio à assistência social e à política de saúde mental no modelo antimanicomial, a assistência aos indivíduos com doença ou deficiência mental que cometem crimes ainda figura primordialmente como da alçada da segurança pública.

A família, portanto, é a instituição que engatará os seus membros nos sistemas disciplinares para fins de docilização dos corpos e maximização de sua utilidade. No caso do louco, a disciplina psiquiátrica servirá também para refamiliarizar o indivíduo para que a convivência não se constitua em ameaça à dinâmica familiar. Por outro lado, o fenômeno da tutelarização foi a resposta ao anacronismo provocado pela loucura nas sociedades modernas do tipo contratual: o sujeito improdutivo precisa ser protegido, inclusive, para fazer valer os valores dessas sociedades (CASTEL, 1978). A assistência social, como nas palavras de Foucault, que “tem por função constituir uma espécie de tecido disciplinar que vai substituir a

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família” (1974, p. 105) cumpre a função de garantir proteção às necessidades do indivíduo improdutivo em uma sociedade pautada por produção, individualismo e independência.

No Brasil, a assistência social é hoje um tema comumente tratado como uma reivindicação na esfera dos direitos, em especial dos direitos humanos e sociais. No entanto, a história da assistência social nem sempre foi abordada nessa perspectiva. Durante quase todo o século XX, a assistência era matéria privada, filantrópica ou de práticas caritativas da igreja católica. Apenas a partir dos anos 1980 a ideia da assistência como política pública começou a se estabelecer até ser firmada na Constituição Federal de 1988 como direito de seguridade social (BOSCHETTI, 2006; TAVARES, 2008). Foi estabelecida a assistência social como componente da seguridade social, ao lado da saúde e da previdência social. Além disso, foi garantida no artigo 203 da Constituição uma renda mensal às pessoas idosas e deficientes que, em razão da pobreza, não pudessem manter sua sobrevivência ou tê-la suprida pelo grupo familiar. A norma constitucional assinalada no artigo 203 foi regulamentada pela Lei Orgânica da Assistência Social, em 1993 (BRASIL, 1993).

No entanto, os avanços da assistência social nos últimos anos, principalmente a partir de 2004, não foram capazes de desonerar o papel das famílias na provisão de bens e serviços ligados à assistência e ao cuidado de seus membros (PEREIRA, 2006a). São comuns situações de cuidado de crianças, pessoas com deficiência, pessoas com doença mental e idosos atendidos exclusivamente pela atuação das famílias (DINIZ; SQUINCA; MEDEIROS, 2006). Sem atenção de políticas sociais, a assistência e o cuidado oferecido pelas famílias, mais especificamente pelas mulheres, é um fenômeno que aprofunda as desigualdades no interior das famílias e fragiliza a autonomia de quem oferece o cuidado e de quem o recebe. No caso dos indivíduos em medida de segurança, a situação se agrava pelas dificuldades das famílias em oferecer cuidados específicos que a situação exige, além do fato de os crimes cometidos por esses indivíduos serem, em muitos casos, contra membros de seu grupo familiar, o que pode ser um obstáculo para o retorno do indivíduo a esse ambiente.

1.2 Governamentalidade e dispositivos de segurança: o espírito do familismo que vai da