• Nenhum resultado encontrado

2 AUTONOMIA PRIVADA

2.2 AUTONOMIA PRIVADA X AUTONOMIA DA VONTADE

2.3.3 Limitação normativa

Além dos direitos fundamentais e do atendimento à boa-fé objetiva, os particulares não podem excluir os elementos de existência e os requisitos de validade dos negócios jurídicos previstos legalmente.

Reside aí a limitação normativa à autonomia privada nos negócios jurídicos, vale dizer, “os pressupostos, assim como a maioria dos efeitos do negócio jurídico em geral, não estão sujeitos à disposição das pessoas, por não serem atingidos pelo poder da autonomia privada, uma vez que estão sob outra competência, a da lei, ou seja, não estão sob alcance do sujeito de direito[...]”142.

No que diz respeito à limitação normativa, Emílio Betti defende a possibilidade da ordem jurídica comportar-se de três maneiras diferentes, assumindo a conotação de negócios irrelevantes, ilícitos e ilegais.

A figura do negócio irrelevante se apresenta quando o Direito adota uma atitude de indiferença perante o negócio jurídico.

Esse negócio pertence ao campo da autonomia privada, que “o direito não protege, nem combate”, deixando submetido às regras de comportamento, às necessidades políticas, sociais e econômicas da sociedade143.

Segundo Emílio Betti, “a função socialmente relevante a que se dirige a autonomia privada pode, sob o império dessas regras, excluir a oportunidade de uma mais enérgica sanção da ordem jurídica, segundo a contingente valoração desta, quer por não ser suficiente para justificá-la, quer por não necessitar de obtê-la”144.

também nas fases preliminares e de formação dos contratos (MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2007, p.553-574).

142

BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos da personalidade e autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2005, p.58.

143

BETTI, Emílio. Teoria geral do negócio jurídico. 1. ed. Tradução de Fernando Miranda. Coimbra: Coimbra Editora, 1969, t.I, p.239.

144

Já os negócios reprovados pelo Direito são qualificados como ilícitos. Nesse caso, a autonomia privada é empregada com fins anti-sociais, ofendendo interesses, gerais ou particulares, que a ordem jurídica de uma sociedade favorece ou protege145.

Impende salientar que a qualificação da ilicitude de um negócio jurídico terá alcance e sanções diferentes a depender da importância social do interesse que ele ofende146.

Quando o negócio é utilizado para lesar interesses de ordem geral, isto é, interesses da sociedade como um todo, ocorre uma desnaturação da função social da autonomia privada, o que implica, na esfera cível, a invalidade do negócio jurídico147.

Quando, porém, no negócio realizado, uma das partes tenta mitigar ou lesionar direitos da outra parte, ou de terceiros, excedendo ao limite social à autonomia privada, a sanção civil pode não ser a de nulidade absoluta. Vale dizer,

[...] esta violação das obrigações de correção e de boa fé, ou de respeito ao direito alheio, não justifica, aos olhos da lei, a sanção, talvez excessiva, da nulidade do negócio, mas de uma reacção da contraparte ou de terceito, destinada a paralisar-lhe os efeitos, na medida em que eles lhe prejudicam, ou, pelo menos, a restabelecer, equitativamente, o equilíbrio patrimonial. Na verdade, nos casos agora considerados, a figura da ilicitude não abarca todo o negócio, mas sòmente um certo aspecto dele, circunscrito ao critério da boa fé entre as partes e à sua relação com determinados terceiros, na medida em que estes possam ser por eles prejudicados148.

Por fim, tem-se os negócios ilegais, ou irregulares.

Esses negócios são desprovidos dos requisitos previstos em lei, vale dizer, embora não reprovados pelo Direito, não possuem os requisitos exigidos por lei para obter a adequada proteção do ordenamento. São negócios inidôneos, porque não podem ser resguardados em sua plenitude, conforme a intenção das partes.

145Ibidem, p.224.

146 Manuel A. Domingues de Andrade ressalta que é tradicional classificar a lei em quatro grupos, a depender das

conseqüências geradas em razão da infração às leis proibitivas dos negócios jurídicos, a saber: “1) leges perfectae. São aquelas cuja sanção reside ùnicamente na nulidade dos respectivos negócios. É o caso geral quanto às normas proibitivas do direito privado; 2) leges plus quam perfectae. São aquelas cuja transgressão, além da nulidade, acarreta uma pena para os infractores. É a regra quanto às leis penais que proíbem certos negócios jurídicos; 3) leges minus quam perfectae. A sua violação só dá lugar a uma pena. É muitas vezes, senão normalmente, o caso das leis de direito público que visam pôr restrições à liberdade econômica, para a melhor organização da economia geral; 4) Leges imperfectae. Aqui não há lugar à nulidade dos respectivos negócios, nem mesmo a uma pena; a sanção aplicável é doutro gênero. Mas não deixa de existir. Estas leis procuram por outros meios obstar à conclusão dos negócios proibidos”. (ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria da

relação jurídica: facto jurídico, em especial negócio jurídico. Coimbra: Almedina, 1998, v.2, p.336-337). 147

BETTI, Emílio. Teoria geral do negócio jurídico. 1. ed. Tradução de Fernando Miranda. Coimbra: Coimbra Editora, 1969, t.I, p.227. A lesão ao interesse geral pode ser tão grave que mereça a proteção penal, qualificando o negócio realizado como crime.

148

Na lição de Daniel Sarmento149, a limitação normativa faz-se imprescindível, porque se toda autonomia privada fosse absoluta, os valores de igualdade, solidariedade, segurança não poderiam ser resguardados e a sociedade estaria fadada a viver em anarquia, em um permanente “estado de natureza”, com a prevalência da vontade do mais forte.

Eis a sua lição:

Portanto, é inevitável que o Estado intervenha em certos casos, restringindo a autonomia individual, seja para proteger a liberdade dos outros, de acordo com uma “lei geral de liberdade”, como diria Kant, seja para favorecer o bem comum e proteger a paz jurídica de toda uma sociedade. Numa democracia, estas intervenções

estatais no campo da autonomia privada são viabilizadas, sobretudo, através da lei editada pelos representantes do povo, traduzindo manifestação da autonomia pública do cidadão. Com isto, tais intervenções se reconciliam com a idéia de liberdade num sentido mais amplo. No conceito de lei, incluímos também, como não poderia deixar de ser, a mais importante dentre todas, que é a Constituição, eis que ela não depende da mediação do legislador ordinário para incidir diretamente sobre as situações de fato150 (grifo nosso).

Válido ressaltar que há limites para a própria lei. Existem dimensões da autonomia privada tão relevantes para a sua dignidade que se torna necessário protegê-las até mesmo do legislador. No Estado contemporâneo, as esferas das decisões existenciais, de caráter afetivo, religioso, ideológico abrem espaço para limitações mais profundas às liberdades de contratar e de desfrutar de direitos patrimoniais, somente se justificando em face da necessidade de promover a igualdade material e outros valores sociais151.