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2 AUTONOMIA PRIVADA

2.2 AUTONOMIA PRIVADA X AUTONOMIA DA VONTADE

2.3.1 Direitos fundamentais

2.3.1.4 Teoria dos deveres de proteção

Parte da doutrina alemã, a exemplo de Claus Canaris, passou a defender outra tese no que diz respeito à vinculação dos particulares aos direitos fundamentais.

Segundo essa teoria, os direitos fundamentais direcionam apenas o Estado, especialmente o estado-legislador, evitando riscos para a autonomia privada, além de proteger os particulares do ativismo judicial. Isso porque quando o legislador deixa de cumprir o seu papel de salvaguarda dos direitos fundamentais não cabe ao juiz fazê-lo, sendo que a questão apenas

entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força

normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do

contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO (grifo nosso). (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Constitucional. Recurso Extraordinário n. 201819, da 2.ª Turma do Supremo Tribunal Federal. Relatora:

Ministra Ellen Gracie. Brasília, 11 de outubro de 2005. Disponível em:

<http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/nova/pesquisa.asp >. Acesso em: 15 nov. 2007).

Na antiga redação do artigo 57 do Código Civil, não havia previsão expressa sobre a necessidade de um procedimento para exclusão do associado, com obediência à vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. Essa norma, porém, foi alterada pela lei 11.127/2005. Isso porque os entes associativos não podem punir o associado por transgressões às normas previstas no estatuto sem antes passar pelo devido processo legal, aí entendido o devido processo em seu aspecto material e formal. Eis a atual redação: “A exclusão do associado só é admissível havendo justa causa, assim reconhecida em procedimento que assegure direito de defesa e de recurso, nos termos previsto no estatuto”.

poderia ser resolvida pelo controle de constitucionalidade por omissão, que na Alemanha é concentrado no Tribunal, e não permite a elaboração de norma pelo Judiciário102.

Claus Canaris defende que os direitos fundamentais assumem dupla função: como proibições de intervenção e imperativos de tutela. Vale dizer, os direitos fundamentais servem como proteção aos cidadãos para que o Estado não intervenha nos seus bens jurídicos fundamentais, assim como obrigam o Estado a proteger um cidadão perante o outro (dever de proteção positiva).

O autor apresenta algumas conclusões, a saber:

[...] destinatários das normas de direitos fundamentais são, em princípio, apenas o Estado e seus órgãos, mas não os sujeitos de direito privado.

[...] o objeto de controlo segundo os direitos fundamentais são, em princípio, apenas as regulações e actos estatais, isto é, sobretudo leis e decisões judiciais [...]103.

E continua o autor:

Designadamente, mantém-se, por um lado, a posição de que apenas o Estado é destinatário dos direitos fundamentais, já que é também sobre ele que recai a obrigação de os proteger. Por outro lado, resulta clara a razão pela qual outros cidadãos são também atingidos e os direitos fundamentais produzem também – de certa forma por via indirecta – efeitos em relação a eles: justamente porque também no campo jurídico privado o Estado, ou a ordem jurídica, estão, em princípio, vinculados a proteger um cidadão perante o outro104.

Na verdade, segundo Daniel Sarmento105, a teoria dos deveres de proteção baseia-se na idéia de que a conciliação entre a autonomia privada e os direitos fundamentais deve incumbir ao legislador e não ao Judiciário. O autor critica essa teoria ao expor que a teoria dos direitos fundamentais encobre o fato de que, na sociedade contemporânea, só por preconceito se pode excluir os particulares, sobretudo os que não detêm poder econômico e social, da qualidade de destinatários dos direitos fundamentais. Ademais, essa teoria deixa a esfera privada refém da vontade do legislador, negando ao cidadão uma proteção adequada106.

De fato, o Estado tem o dever de proteção, não somente o de abster-se, mas de ação positiva.

102 SARMENTO, Daniel. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no direito comparado e no

Brasil. In: DIDIER JR., Fredie (org.). Leituras complementares de Processo Civil. 4.ed. Salvador: Juspodivm, 2006, p.167

103 CANARIS, Claus- Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Tradução de Ingo Sarlet e Paulo Mota

Pinto. Coimbra: Almedina, 2003, p.55

104 Ibidem, p.58

105 Na lição do autor, apesar da diferença na formulação, as teorias dos deveres de proteção e da eficácia mediata

em muito se aproximam quanto aos efeitos, porque ambas reclamam, em princípio, a mediação do legislador.(SARMENTO, op. cit., p.167)

Mas não só. A esfera privada deve ser destinatária dos direitos fundamentais, sobretudo diante das desigualdades graves que assolam os diversos países e, em grau acentuado, o Brasil. Não deve prevalecer o argumento de que haverá comprometimento da autonomia privada, pois a proteção de um direito fundamental de um particular esbarra na autonomia e liberdade privada do outro – que também é titular de direitos fundamentais. Mas esse choque não acarreta a sobreposição ou mitigação de direitos de um cidadão sobre o outro. Basta, para tanto, que “o legislador ou o juiz os conforme e harmonize, tomando como diretriz a máxima da proporcionalidade”107.

Na desigualdade entre as partes, muito importante se faz a aplicação dos direitos fundamentais, “porquanto venha combater os cerceamentos e tolhimentos de liberdade da parte mais vulnerável, preservando seus direitos mais essenciais”108.

Pode-se afirmar que, nesses casos, não há ameaça à autonomia privada mas, sobretudo, a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais serve para resguardar a autonomia dos indivíduos109.