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2 AUTONOMIA PRIVADA

2.2 AUTONOMIA PRIVADA X AUTONOMIA DA VONTADE

2.3.5 Moral e bons costumes

Para Francisco Amaral, bons costumes devem ser entendidos como um conjunto de regras morais de um povo, ou seja, devem ser entendidos como o aspecto moral da ordem pública162. Manuel A. Domingues Andrade163, no estudo sobre os negócios, informa que os negócios podem ser contrários à ordem pública, no que diz respeito ao seu objeto, por duas maneiras: por ilegalidade ou por imoralidade.

Na primeira, a lei proíbe o negócio. Na segunda, não há uma proibição expressa pela lei para a realização de certos negócios, ou seja,

[...] a lei não o proíbe ela mesma, mas só enquanto remete para as prescrições da moral, nelas como que delegando tal proibição. A lei não condena aqui certos negócios porque ela própria os considere imorais. Condena antes quaisquer negócios que a moral reprove. O conteúdo da norma proibitiva não é determinado pela lei mas sim pela moral. A lei nada mais faz do que subscrever em branco as prescrições da moral, como que impondo-lhes o selo da jurisdicidade, dando-lhes incontroladamente a chancela do direito164.

Impende salientar, por oportuno, que a moral, limitadora da autonomia privada e proibidora da realização de determinados negócios, deve ser entendida como a moral pública, a moral

160 SARMENTO, Daniel. Os princípios constitucionais da liberdade e da autonomia privada. In: PEIXINHO,

Manoel Messias et. al. (coord.). Os princípios da Constituição de 1988. 2.ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006. 161

Ibidem. Roxana Cardoso Brasileiro Borges entende que ordem pública tem um alto valor para o direito. No estudo sobre a disponibilidade dos direitos da personalidade, defende a autora que a ordem pública é um fator limitante de alta importância, já que, em certas circunstâncias, pode ser colocada acima lei, uma vez que as regras de manutenção da ordem pública não são necessariamente escritas. (BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos da personalidade e autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2005, p.135).

162AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000

163 ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria da relação jurídica: facto jurídico, em especial negócio

jurídico. Coimbra: Almedina, 1998, v.2.

objetiva, que corresponde ao sentido ético imperante na comunidade social. Não se trata da moral que se observa e se pratica, mas da moral como um conjunto de regras aceitas pela consciência social165.

Percebe-se que os conceitos de bons costumes e de moral são auto-referentes, na medida em que ambos se pautam na consciência da coletividade.

Tanto é assim que Francisco Amaral entende como fatores de limitação à autonomia privada a ordem pública, a boa-fé e os bons costumes, estes entendidos como “um conjunto de regras morais que formam a mentalidade de um povo e que se expressam em princípios como o da lealdade contratual, da proibição do lenocínio, dos contratos patrimoniais, do jogo, etc”166. Emílio Betti também coaduna com a idéia de bons costumes como limitadores à autonomia privada. O conceito de bom costume, nesses termos, deve ser interpretado de forma restritiva, limitando-se aos atos que sejam contrários à moral comum167.

O conceito de bons costumes, porém, é variável de acordo com o tempo e lugar. Na lição de Carlos Alberto da Mota Pinto, os bons costumes abrangem o conjunto de regras éticas aceitas pelas pessoas honestas, corretas, de boa-fé, em um dado ambiente e momento168.

Da análise dos conceitos, percebe-se que a utilização da moral e bons costumes como limitadores à autonomia privada é bastante delicada. Primeiro porque há dificuldade de se estabelecer um critério, um parâmetro para determinar o que seja moral comum, o que seja moralidade média169. Em uma sociedade plural, que resguarda a liberdade de pensamento e valores dos indivíduos, esse critério, estabelecido a partir dos valores de homens médios, seria distorcido, já que a cultura é diversificada dentro da própria sociedade. Segundo, se os bons costumes coincidem com a moral e, grosso modo, se a moral coincide com a ética, “podemos

165 Ibidem.

166

AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.347.

167 BETTI, Emílio. Interpretação da lei e dos atos jurídicos. Tradução de Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

168 PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria geral do Direito Civil. 3.ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p.552.

169 Essa idéia de moralidade média remete, no campo do direito processual civil, à utilização das regras da

experiência, utilizadas pelo julgador para pautar o seu convencimento. As regras da experiência, pois, consistem em juízos formados pela observação do que de ordinário acontece e fazem parte da cultura média do juiz e da sociedade. Essa idéia de cultura média do juiz, assim como o critério de moralidade, é bastante discutida, já que não há parâmetros objetivos a serem seguidos. Eis a crítica de Friedrich Stein: “las máximas de la experiência

carecen también, como todas las proposiones obtenidas mediante el audaz salto de la inducción, de aquella certeza lógica. No son más que valores aproximativos respecto de la verdad, y como tales, sólo tienen vigencia en la medida en que nuevos casos observados no muestren que la formulación de la regla empleada hasta entonces era falsa”.(STEIN, Friedrich. El conocimento privado del juez. [S.l]: Editorial Centro de Estudios Ramón Areces, [19-], p.29.

dizer, como afirmou João Maurício Adeodato, que, ‘quando se discute a respeito dos aspectos éticos, não se pode argumentar em termos de verdade, seja ela qual for. Aqui só se pode opinar e tentar persuadir. É o campo por excelência da retórica’”170.

Roxana Cardoso Brasileiro Borges muito bem expõe:

Sem pretender separar o direito da moral ou tecer teorias sobre a relação entre ambos, considera-se que a moral, por si só, assim como os bons costumes, quando não refletidos em lei (que seja constitucional) ou quando não inferidos do ordenamento, não podem servir como barreiras jurídicas (pseudojurídicas) para as escolhas de vida de uma pessoa.

[...]

Enfim, por não se admitir a possibilidade de uma concepção objetiva da dignidade; por não considerar que a sociedade possa ser tida como sujeito autônomo, dotado de consciência e moral próprias; por não se considerar a sociedade como um corpo único, mas como uma pluralidade de individualidades diversificadas; por não se considerar que algum tipo de costume possa adequadamente ser considerado bom ou mau em si mesmo [...] a moral e os bons costumes, ambos, num Estado de Direito, democrático e pluralista, não podem constituir fatores isolados restritivos às liberdades pessoais [...]171.

Na lição de António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, a cláusula geral dos bons costumes faz remissão para a Moral. Esse entendimento, porém, levanta dificuldades intransponíveis: “para além das atinentes à determinação do que se tenha por ‘Moral”, acresce que, por intuição imediata, apreende-se a existência de muitas regras morais estranhas em absoluto, ao Direito”172.

Percebendo a necessidade de concretizar a Moral, o BGB, na justificação dos motivos, adotou o critério de retirar da consciência popular dominante essa conceituação. Ocorre, entretanto, que esse critério não permite uma conceituação objetiva, levando a expressão “moral e bons costumes” à tradução de uma fórmula vazia173.

Não se admite, sob pena de ferir os direitos dos envolvidos nas situações concretas, a utilização da moral e bons costumes como limites à autonomia privada. Esses conceitos são vagos e dependem de critérios frágeis de determinação, que são a consciência coletiva e os valores de um homem médio.

170BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos da personalidade e autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2005

171Ibidem, p.136-137.

172 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2007,

p.1216.

Não se pode esperar de uma sociedade pluralista uma consciência coletiva ou valores uniformes, destacados a partir de um homem médio. Limitar, como faz a doutrina, a autonomia privada a esses conceitos é um retrocesso174.

Há muito, portanto, os conceitos de bons costumes e moral deviam ser desconsiderados, sob pena de ferir a liberdade dos indivíduos nos tratos negociais.