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Limitações à circulação de veículos

4.1 Limitações à liberdade de trânsito e tráfego

Quando se fala em limitar a circulação de veículos nas vias, como atividade do Poder Público direcionada ao aprimoramento das condições de circulação de pessoas e bens nas cidades, está se referindo àquela atividade estatal de condicionar a liberdade e a propriedade individual em favor do interesse público.

Por se tratar de atividade afeta à otimização de uma das funções sociais da cidade, constitui um importante instrumento de atuação urbanística a ser utilizado no âmbito da política urbana.

Conforme se verifica, as limitações à circulação de veículos, enquanto limitações de direito urbanístico, compartilham com o direito administrativo das noções de limitação à liberdade e à propriedade, o que - na linha defendida pelo

pensamento de Márcio Cammarosano161 - denota, evidentemente, as interfaces

entre esses dois ramos do direito público. No mesmo sentido, José Afonso da Silva manifesta que: “[...] o poder de polícia, relevante instituição do direito administrativo,

ainda é um meio fundamental para a atuação urbanística [...]”162.

As limitações à circulação de veículos sobre determinadas áreas das cidades recaem sobre o uso das vias, que são bens de uso comum do povo. Como dizem respeito ao uso, que está ligado à idéia de atuação humana, tais limitações relacionam-se à liberdade das pessoas, mais especificamente: à liberdade de trânsito e tráfego.163

Consoante as lições de Hely Lopes Meirelles:

[...] trânsito é o deslocamento de pessoas ou coisas (veículos ou animais) pelas vias de circulação; tráfego é o deslocamento de pessoas ou coisas pelas vias de circulação em missão de transporte. Assim, um caminhão vazio quando se desloca por uma rodovia está em trânsito; quando se desloca transportando mercadoria está em tráfego [...].164

161 CAMMAROSANO, Márcio. Direito administrativo, urbanístico e ambiental: interfaces. In: BEZNOS, Clovis; CAMMAROSANO, Márcio (coord.). Direito ambiental e urbanístico, p. 16.

162 Direito urbanístico brasileiro, p. 48.

163 Note-se que, quando se fala em limitação à propriedade, na verdade, o que se limita é o uso do bem objeto de propriedade e que esse uso diz respeito à ação humana, é possível afirmar que, em rigor, toda limitação é à liberdade.

Em acatamento ao princípio da legalidade, somente a lei pode limitar a atuação humana. Significa, portanto, que deve haver lei específica para quaisquer limitações à liberdade de trânsito e tráfego que o Poder Público pretenda impor. 4.2 Competência legislativa sobre trânsito e tráfego

O trânsito e o tráfego, conforme ensina Hely Lopes Meirelles, admitem a tríplice regulamentação – federal, estadual e municipal:

De um modo geral, pode-se dizer que cabe à União legislar sobe os assuntos nacionais de trânsito e transporte, ao Estado-membro compete regular e prover os aspectos regionais e a circulação intermunicipal em seu território, e ao Município cabe a ordenação do trânsito urbano, que é de seu interesse local (CF, art. 30, I e V). O art. 24 do CTB elenca as várias competências municipais nos incisos I-XXI [...]

O tráfego sujeita-se aos mesmos princípios enunciados para o trânsito no que concerne à competência para sua regulamentação: cabe à União legislar sobre o tráfego interestadual; cabe ao Estado-membro prover sobre o tráfego regional; e compete ao Município dispor sobre o tráfego local, especialmente o urbano.

E assim é na generalidade das nações civilizadas, que reconhecem às comunidades locais o direito-dever de zelar pala circulação e pelo transporte em seu território, preservando seu sistema viário – urbano e rural – contra o congestionamento do trânsito e os excessos do tráfego [...] (grifado no original).165

Depreende-se, portanto, que a competência do Município para disciplinar o trânsito e o tráfego local deflui do art. 30, I, da Constituição Federal, e abarca os assuntos que se subsumem no conceito de interesse local, nos aspectos

relativos ao uso das vias públicas.166

Conforme dispõe art. 1°, § 1°, da Lei n ° 9.503/97, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro:

165 Op. cit., p. 454-456.

166 A esse respeito, já se posicionou o Supremo Tribunal Federal: “CONSTITUCIONAL. MUNICÍPIO: COMPETÊNCIA: IMPOSIÇÃO DE MULTAS: VEÍCULOS ESTACIONADOS SOBRE CALÇADAS, MEIOS- FIOS, PASSEIOS, CANTEIROS E ÁREAS AJARDINADAS. Lei nº 10.328/87, do Município de São Paulo, SP. I. - Competência do Município para proibir o estacionamento de veículos sobre calçadas, meios-fios, passeios, canteiros e áreas ajardinadas, impondo multas aos infratores. Lei nº 10.328/87, do Município de São Paulo, SP. Exercício de competência própria" CF/67, art. 15, II, CF/88, art. 30, I "que reflete exercício do poder de polícia do Município. II. - Agravo não provido.” (RE-AgR 191.363, Min. Carlos Velloso, j. 11.12.1998).

“CABE AO MUNICÍPIO REGULAR A UTILIZAÇÃO DAS VIAS PUBLICAS DENTRO DE SUA ÁREA TERRITORIAL DE VEICULOS, INCLUSIVE DE LINHAS INTER-ESTADUAIS E INTERNACIONAIS, DESDE QUE, EM RELAÇÃO A ESTAS, NÃO PROCEDA COM ABUSO DE PODER, DE MODO A IMPOSSIBILITAR OU EMBARACAR ATIVIDADES REGULADAS PELOS PODERES ESTADUAIS E FEDERAIS.” (RMS 9.190, Min. Victor Nunes, j. 22.1.1962).

Art.1° [...]

§ 1° Considera-se trânsito a utilização das vias po r pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga e descarga.

Em seu art. 24, II, assim, estabelece:

Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:

[...]

II - planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de pedestres e de animais, e promover o desenvolvimento da circulação e da segurança de ciclistas;

Veja-se, portanto, que o trânsito da cidade é matéria municipal e nela se inclui a competência do Município para disciplinar a circulação de veículos e suas restrições em seu território.

Como afirma Hely Lopes Meirelles:

[...] compete ao Município regulamentar o uso das vias sob sua jurisdição; conceder, autorizar ou permitir exploração de serviço de transporte coletivo para as linhas municipais; regulamentar o serviço de automóvel de aluguel (táxi); determinar o uso de taxímetro nos automóveis de aluguel; limitar o número de automóveis de aluguel. Essa enumeração é meramente exemplificativa, pois pode ser acrescida de outros assuntos não enumerados mas que se enquadrem no interesse local do Município, que é o atributo constitucional indicativo de sua competência. Na competência do Município insere-se, portanto, a fixação de mão e contramão nas vias urbanas, limites de velocidade e veículos admitidos em determinadas áreas e horários, locais de estacionamento, estações rodoviárias, e tudo o mais que afetar a vida da cidade (grifo nosso).167

Impende verificar, ainda, se o trânsito e o tráfego constituem matérias de iniciativa privativa do Poder Executivo. Alguns esclarecimentos, no entanto, fazem-se necessários.

A respeito do que se entende por iniciativa legislativa, João Jampaulo Júnior afirma que “[...] é um poder ou faculdade que se atribui a alguém ou a algum órgão, para apresentar projetos de lei ao Poder Legislativo. Esse poder ou faculdade concedida caracteriza o seu destinatário como o titular da iniciativa” (grifado no original).168

Com base nas explicações trazidas pelo autor, a iniciativa que compete a mais de uma pessoa ou órgão denomina-se concorrente ou geral. Essa

167 Ibid., p. 456.

modalidade é a regra e se aplica tanto ao processo legislativo estadual como o municipal.169

No caso dos Municípios, a iniciativa concorrente:

[...] é a que compete a qualquer Vereador, à Mesa ou Comissão da Câmara, ao Prefeito, ou, ainda, à população, na forma e nos casos previstos na Lei Orgânica de cada Município, obedecendo-se ao que dispõe o art. 61 da Constituição Federal. São ainda de iniciativa concorrente todas as demais que a Constituição Federal e a Lei Orgânica Municipal não reservaram exclusivamente ao Executivo, excetuando-se os projetos de resolução (efeitos internos) e de decretos legislativos (efeitos externos), que são de iniciativa privativa das Câmaras de Vereadores, não sujeitas a sanção e veto do Executivo. São exemplos de iniciativa concorrente: lei que delimita o perímetro urbano; projetos de lei que alterem o Plano Diretor; projetos de lei sobre matéria tributária (grifado no original).170

Por seu turno, a iniciativa privativa (exclusiva ou reservada) é a exceção:

[...] Tal é conferida a apenas um órgão, agente ou pessoa, ou seja, é a que cabe exclusivamente a um titular, seja o Prefeito, seja a Câmara. As matérias de iniciativa privativa do Chefe do Executivo são aquelas que a Constituição da República reserva exclusivamente ao Presidente da República, e que por simetria e exclusão aplica-se ao Prefeito Municipal. Encontram-se elencadas nas alienas do inciso II do § 1° do art. 61 da CF.171

Sustenta Hely Lopes Meirelles:

[...] As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias previstas nos arts. 61, § 1°, e 165 da CF, as que s e inserem no âmbito da competência municipal. São, pois, de iniciativa exclusiva do prefeito, como chefe do Executivo local, os projetos de leis que disponham sobre a criação, estruturação e atribuição das secretarias, órgãos e entes da Administração Pública Municipal; matéria de organização administrativa e planejamento de execução de obras e serviços públicos; criação de cargos, funções ou empregos públicos na Administração direta, autárquica e fundacional do Município; o regime jurídico e previdenciário dos servidores públicos municipais, fixação e aumento de sua remuneração; o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias, o orçamento anual e os créditos suplementares e especiais. Os demais projetos competem concorrentemente ao prefeito e à Câmara, na forma regimental.172

Cumpre ressaltar que as regras que dispõem sobre a iniciativa privativa não se presumem e tampouco comportam interpretação extensiva, vale dizer, o rol estabelecido no art. 61, §1°, da Const ituição Federal, é taxativo, pois, do contrário, implicaria violação do princípio da independência e harmonia entre os poderes.

169 O processo legislativo, p. 93.

170 JAMPAULO JÚNIOR, João. O processo legislativo municipal, p. 79-80. 171 Ibid, p. 81.

Observando-se o referido artigo constitucional, que trata da iniciativa privativa das leis pelo Presidente da República, infere-se que, em nenhum dos casos está o trânsito e o tráfego. Logo, ante os ensinamentos trazidos a lume, por simetria e exclusão, a iniciativa dos projetos de lei que disponham sobre tais matérias não é privativa do Prefeito.

Sendo assim, na hipótese da Câmara Municipal identificar a necessidade de limitar a circulação de veículos em determinadas regiões da cidade, ante a inércia do Poder executivo, entende-se que nada lhe impede de apresentar um projeto de lei dispondo a esse respeito.

Entretanto, a questão não é pacífica e, na jurisprudência, verifica-se tendência em sentido contrário, ou seja, julgados atribuindo competência privativa ao chefe do Poder Executivo do Município para matérias que versem sobre o trânsito e o tráfego local.173

Tendo em vista os princípios do planejamento e da gestão democrática das cidades, o ideal, certamente, é que a lei que imponha a medida restritiva esteja baseada em um plano. Neste sentido, pronuncia-se Daniela Libório:

[...] mesmo que a Constituição Federal não tenha deixado clara a vinculação da elaboração de leis urbanas específicas com a existência de um Plano Diretor, o desenvolvimento urbano adequado e harmônico, compatível com as necessidades dos habitantes locais, só será plenamente atingido se houver um diagnóstico da realidade, aliado à participação popular, que deverá definir as prioridades na cidade. E o resultado da compatibilização de todos os interesses deverá estar transcrito em um plano urbanístico.

173 “ADIN - LEI MUNICIPAL QUE PROÍBE A CIRCULAÇÃO DE VEÍCULOS DE CARGA EM CORREDORES DE TRÂNSITO E A CARGA DE BENS E MERCADORIA NO HIPERCENTRO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE - INICIATIVA DE VEREADOR E PROMULGAÇÃO PELO PRESIDENTE DA CÂMARA DE VEREADORES, APÓS DERRUBAR O VETO DO EXECUTIVO - INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI. Resulta inconstitucional Lei que versa sobre matéria pertinente à área administrativa e já regulada pela Lei Federal nº 9.503/97 - CTB - art. 63 e 24, II, se tal Lei resultou de projeto de iniciativa de Vereador e da promulgação pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeitar veto do PREFEITO MUNICIPAL, caracterizando inversão de competência. Inconstitucionalidade que se declara, suspendendo-lhe a eficácia” (ADIn n° 1.0000.00.313096-0/000/Belo Horizonte, TJMG, Rel. Des. Orlando Carvalho, j. 26.11.03).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL N. 1.703/2007, PROVENIENTE DO MUNICÍPIO DE NOVO HAMBURGO/RS, QUE AUTORIZA O FECHAMENTO DE RUAS RESIDENCIAIS SEM SAÍDA, IMPOSSIBILITANDO O TRÁFEGO DE VEÍCULOS ESTRANHOS AOS MORADORES. VÍCIO DE INICIATIVA DO LEGISLATIVO LOCAL. Lei de iniciativa da Câmara de Vereadores não poderia dispor sobre o fechamento de ruas residenciais sem saída, inviabilizando o tráfego de veículos estranhos aos moradores. Embora não se esteja diante da hipótese de incidência da regra contida no inc. XI, do art. 22 da Constituição da República, sendo matéria de interesse local, é evidente a competência exclusiva do Poder Executivo para estabelecer diretrizes sobre o crescimento e dispersão do Município. Vício de iniciativa constatado. Afronta aos arts. 8º, 10 e 82, VII, da Constituição Estadual. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME”. (ADIN nº 70026580266/Novo Hamburgo, Tribunal Pleno, TJRS, Rel. Des. José Aquino Flores de Camargo, j. 17.08.09)

Elaborar leis de cunho urbanístico, estando estas dissociadas deste processo, não contribuirá, em nada, para o equilíbrio do desenvolvimento urbano.174

O pensamento da autora ilustra de maneira satisfatória a importância dos planos para a consecução dos objetivos da atividade urbanística. O plano de mobilidade urbana, tal como previsto no projeto de lei n° 1.687/2007, certamente, contribui para uma atuação urbanística mais eficaz.

Todavia, é preciso ressalvar que as limitações a circulação de veículos não estão condicionadas à existência prévia de um plano. Vale dizer, ainda que não haja plano anterior, inexiste norma impeditiva da elaboração de eventual lei que restrinja a circulação de veículos, que pode ser de iniciativa tanto do Prefeito, como da Câmara de Vereadores, ou, ainda, dos cidadãos, na forma e nos casos previstos na Lei Orgânica de cada Município, obedecendo-se ao que dispõe o art. 61 da Lei Maior.

4.3 O que pode ser objeto de ato infralegal

A Constituição, haja vista o princípio da legalidade, veda a edição de atos infralegais que criem obrigações ou estabeleçam proibições aos administrados. Com efeito, o princípio da legalidade permeia todas as limitações e figura no texto constitucional como uma garantia dos administrados, ao condicionar a disciplina das limitações à lei.

Tomando por base o a redação do seu art. 5°, II, Ce lso Antônio Bandeira de Mello adverte que o “[...] o preceptivo não diz ‘decreto’, ‘regulamento’, ‘portaria’, ‘resolução’ ou quejandos. Exige lei para que o Poder Público possa impor

obrigações aos administrados” (grifado no original).175

O autor enfatiza a supremacia da lei sobre o regulamento, o que implica que este ato não pode contrariar a lei e a esta se subordina. Além disso, repisando a assertiva de O. A. Bandeira de Mello, adverte que só a lei pode inovar

originariamente na ordem jurídica.176

174 Elementos de direito urbanístico, p. 66. 175 Curso de direito administrativo, p. 344-345. 176 Ibid., p. 344.

Explica, ainda, que, no Brasil – nos termos do art. 84, I, da CF -a função regulamentar restringe-se à produção de regulamentos para “fiel execução”

da lei os quais a doutrina estrangeira denomina “executivos”.177

E mais: conjugando o art. 37, que submete a Administração ao princípio da legalidade com os indigitados artigos 5°, II e 84, I, da Lei Maior, infere que “[...] a Administração, para agir, depende integralmente de uma anterior previsão legal que lhe faculte ou imponha o dever de atuar”. E, por isso, o regulamento, além

de ato inferior, subordinado, é dependente de lei.178

Tendo em vista que o decreto é o meio através do qual são expedidos os regulamentos, depreende-se que ele tem como objetivo minudenciar as disposições da lei de modo a facilitar sua execução. No entanto, de forma alguma, pode aumentar ou reduzir o conteúdo da lei, e tampouco inovar matéria que não foi por ela prevista.

Assim, aos decretos regulamentares, que são de competência de chefes de Executivo, é defeso criar limitações diversas das que foram estabelecidas previamente na lei regulamentada.

Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello:

Há inovação proibida sempre que seja impossível afirmar-se que aquele específico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição já estavam estatuídos e identificados na lei regulamentada. Ou, reversamente: há inovação proibida quando se possa afirmar que aquele específico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição incidentes sobre alguém não estavam já estatuídos e identificados na lei regulamentada. A identificação não necessita ser absoluta, mas deve ser suficiente para que se reconheçam as condições básicas de sua existência em vista de seus pressupostos, estabelecidos na lei e nas finalidades que ela protege.

É, pois, à lei, e não ao regulamento, que compete indicar as condições de aquisição ou restrição de direito. Ao regulamento só pode assistir, à vista das condições preestabelecidas, a especificação delas. E esta especificação tem que se conter no interior do conteúdo significativo das palavras legais enunciadoras do teor do direito ou restrição e do teor das condições a serem preenchidas. Deveras, disciplinar certa matéria não é conferir a outrem o poder discipliná-la. Fora isto possível, e a segurança de que “ninguém poderá ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” deixaria de se constituir em proteção constitucional. Em suma: não mais haveria a garantia constitucional aludida, pois os ditames ali insculpidos teriam sua valia condicionada às decisões infraconstitucionais, isto é, às que resultassem do querer do legislador ordinário

É dizer: se à lei fosse dado dispor que o Executivo disciplinaria, por regulamento, tal ou qual liberdade, o ditame assecuratório de que “ninguém

177 Ibid., p. 345. 178 Ibid., p. 346-347.

será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” perderia o caráter de garantia constitucional, pois o administrado seria obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa ora em virtude de regulamento, ora de lei, ao líbito do Legislativo, isto é, conforme o legislador ordinário entendesse de decidir. É óbvio, entretanto, que, em tal caso, este último estaria se sobrepondo ao constituinte e subvertendo a hierarquia entre Constituição e lei, evento juridicamente inadminssível em regime de Constituição rígida (grifado no original).179

Acresça-se, ainda, que não só o decreto regulamentar, mas qualquer ato através do qual a Administração exerce seu poder normativo – sejam resoluções, portarias, deliberações, instruções, editadas por autoridades que não o Chefe do Executivo – não pode contrariar a lei, nem criar direitos, impor obrigações, proibições, penalidades que nela não estejam previstos, sob pena de ofensa ao

princípio da legalidade.180

Ratifica Celso Antônio Bandeira de Mello:

[...] toda a dependência e subordinação do regulamento à lei, bem como os limites em que se há de conter, manifestam-se revigoradamente no caso de instruções, portarias, regimentos ou normas quejandas. Desatendê-los implica inconstitucionalidade. A regra geral contida no art. 68 da Carta Magna, da qual é procedente inferir vedação a delegação ostensiva ou disfarçada de poderes legislativos ao Executivo, incide e com maior evidência quando a delegação se faz em prol de entidades ou órgãos administrativos sediados em posição jurídica inferior à do Presidente e que se vão manifestar, portanto, mediante atos de qualificação menor.181

Nada obstante, não raras vezes, o Executivo baixa normas infralegais criando limitações, em profundo descaso com esse princípio basilar do Estado Democrático de Direito.

Cite-se, por exemplo, a Portaria n° 58/09 – SMT.GAB , de 27/07/2009, que limitou a área de circulação de ônibus fretados na região central do município de São Paulo.

Para dar cumprimento ao art. 47, da Lei n° 14.933/0 9,182 o Poder

Executivo, por meio da Secretaria Municipal de Transportes, criou a referida portaria, que organizou o trânsito dos ônibus fretados em duas áreas distintas (Zona de Máxima Restrição de Fretamento – ZMRF - e Área Livre) e passou a exigir, dentre

179 Op. cit., p. 355-356.

180 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito administrativo, p. 85. 181 Op. cit., p. 370.

182 Lei que institui a Política de Mudança do Clima no Município de São Paulo. Reza o seu art. 47: “O Poder Público Municipal estabelecerá, por lei específica, no prazo de 60 dias, as regras gerais de circulação, parada e estacionamento de ônibus fretados, bem como a definição de bolsões de estacionamento para este modal.

Parágrafo único. O Poder Executivo implementará as medidas de sua competência até a edição da lei específica de que trata o ‘caput’ deste artigo”.

outras regras, "Autorização Especial de Trânsito" para as operadoras que realizam o transporte rotineiro de passageiros circularem na denominada ZMRF, no período das 05h00 às 21h00, de 2ª a 6ª feira.

Como condições para obterem essa autorização as operadoras, além de cumprirem as exigências quanto à regularidade dos veículos, são obrigadas a apresentar um “Plano de Operação”, que deve prever o local de embarque e desembarque dos passageiros, conter a relação completa dos usuários do serviço de fretamento, bem como indicar a origem, destino e itinerário da viagem, para estudo do impacto viário.

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