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Limites da tolerância

No documento MARIA ALICE DA SILVA AZEVEDO (páginas 81-86)

III. SOBRE A PROCRIAÇÃO

3. Limites da tolerância

O princípio da autonomia concede ao indivíduo o direito de usar ou não a sua capacidade para procriar. Contudo, se a decisão de a não usar é do foro íntimo de cada um, já a decisão de exercício desse direito, deve tomar em consideração os direitos do ser em potência, extrapolando então a questão para o espaço comum. A extracção desta conclusão tem subjacentes as razões apontadas por Patrão Neves (2008, p.54), quando deste âmbito exclui o princípio ético da autonomia, emergindo, em sua substituição, o princípio da dignidade humana. Nas suas palavras:

O facto de muitas crianças, recém-nascidos e mesmo fetos poderem ser violentamente afectados pelas circunstâncias de vida que os acolhem e acompanham o seu crescimento (por exemplo: morte do pai antes do nascimento, acidente e posterior deficiência da mãe durante a gestação, morte prematura do casal, etc.), por causas acidentais e não desejadas, é qualitativamente distinto (e, por isso, não comparável) com a gestação

93 Patrão Neves, M. C. ―Mudam-se os tempos, manda a vontade: o desejo e o direito a ter um filho‖ in Carvalho, A. S. (Coord.) Bioética e Vulnerabilidade. Coimbra: Editora Almedina, 2008.

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deliberadamente constituídas em prejuízo da criança (reproduzindo intencionalmente situações acidentais indesejadas).

É em nome desta dignidade humana, que somos obrigados a reflectir sobre a tolerância e os seus limites. Como refere Kaufmann (2009, p.440), ―a tolerância deverá ser uma das mais importantes virtudes na ‗sociedade pluralista de risco‘, sobretudo em vista da preocupante explosão demográfica‖. Em face das actuais sociedades democráticas e plurais, Kaufmann diz que não se pode ser tolerante e democrata, sem um pouco de relativismo, que considera não ser algo a superar, mas sim a praticar com inteligência e critério, segundo este autor:

(…) o próprio relativismo não pode ser postulado em termos absolutos, degenerando num indiferentismo, segundo a atitude daqueles que, perante as várias alternativas de decisão, não se conseguem decidir e, deste modo, se tornam joguetes do acaso. O relativismo é perfeitamente compatível com uma forte convicção, mas esta convicção é acompanhada pela consciência de que, para além da própria convicção, existem também outras convicções de igual valor. Ser um relativista consciente e responsável é (…) muito mais difícil do que defender uma posição absolutista… (Kaufmann, 2009, p.443)

A tolerância, pressupondo pois a existência de limites, aparece como o mediador essencial na relação entre o eu e o outro (Héritier, 1997)94, como uma norma para viver em democracia. (Savater 2001)95

John Locke96, considerado o filósofo do conhecimento, reforça o valor da prática da tolerância como uma virtude, tendo subjacentes princípios morais e de justiça universalmente válidos e acessíveis à razão humana. Na sua obra, Carta Sobre a Tolerância (1689), diz-nos que a tolerância é o espaço de liberdade que os indivíduos devem preservar como condição para a escolha de acções conscientes e livres e para o exercício da igualdade e liberdade entre os homens.

Também Isaac Guimarães nos alerta de que, “as pretensões de maior envergadura da Lei Fundamental, ligadas às relações interpessoais e dos cidadãos com o poder político, esvaziam-se de sentido quando se lhes subtrai um marco essencial para as

94Héritier, F. ―O Eu, O Outro e A Tolerância. Uma mesma ética para todos?‖ Lisboa : Instituto Piaget , 1997: 111-119.

95 Savater, F. ― À quel engagement conduit la tolérance?‖ in La tolérance, l’indifferance, l’intolérable, 2001. Disponível em : http://filosofianauac.blogspot.com/ , acesso em 25/05/2009. 96Locke, J. Carta Sobre a Tolerância . Lisboa: Edições 70, 2000.

70 sociedades pluralistas e democráticas: o da tolerância. A almejada sociedade fraterna e solidária não passará de um plano formal, se não for orientada por uma razão de tolerância. E o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana ficará restrito ao conceito metafísico, sem qualquer hipótese de concretizar-se nos direitos e garantias fundamentais‖ (Guimarães, 2002)97.

Porém, e citando ainda Patrão Neves (2002)98, ―a tolerância só subsiste entre limites (…), só existe para além do absolutismo, no reconhecimento de que ninguém possui uma verdade absoluta, e para aquém do indiferentismo, na afirmação da hipocrisia de uma neutralidade ética.‖ Defende esta autora que não podemos identificar a tolerância com o indiferentismo, com o tolerar tudo, não podendo nós tolerar o intolerável.

Queremos salientar que a Bioética tendo por objecto de trabalho o ser humano como sujeito de dignidade, deve estar ligada à resolução dos problemas que surgem na vida das pessoas, como consequência de acções menos correctas por parte de outras pessoas. É necessário que uns e outros tomem como hábito reflectir sobre princípios de responsabilidade e integridade, úteis na construção de um mundo melhor, para que a tolerância não se desvirtue ao validar direitos de procriação irresponsável:

- o de Kant, que nos liga ao dever, como seres racionais que somos e nos diz:

Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio. (Kant, apud Quintela, 1995, p.66)

- o de Kaufmann, que nos diz que sem tolerância jamais teremos dignidade. Contudo, também nos diz este autor que, ―a tolerância possibilita o agir responsável. Possibilita todavia o agir irresponsável. Assim, o princípio da tolerância tem que ser complementado pelo princípio da responsabilidade.‖ Este autor enuncia, então, o imperativo categórico da tolerância:

97Guimarães, I. S. ―A intervenção penal para a protecção dos direitos e liberdade fundamentais: linhas de acerto e desacerto da experiência brasileira‖ in Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 57, Jul. 2002. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2955, acesso em 27/5/2009. 98 Patrão Neves, M. C. ―Tolerância: Entre o absolutismo e o indiferentismo morais‖

in Brotéria, vol. 155, nº1, p.31-39, Lisboa, 2002. Disponível em:

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concordantes com a máxima prevenção ou diminuição da miséria humana. (Kaufmann, 2009, p.262)

- o princípio da responsabilidade remetemos para Hans Jonas, que orienta a responsabilidade do homem para com o futuro e que nos diz:

Nas tuas opções presentes, inclui a futura integridade do Homem entre os objectos da tua vontade. (Jonas, 1994, p.46)

Para Jonas urge normatizar as acções do homem descobrindo novas formas de actuação, rejeitadas que estão as tradicionais: teocêntricas e antropocêntricas. O homem emergente do século XXI é um ser humano holístico, inclusivo, biocêntrico, tendo como prioridades da sua acção, não só o homem, mas também todos os seres vivos e o contexto físico em que interactua, assim como os interesses das gerações futuras.

Entendemos, por isso, que conceber um ser humano como fim em si mesmo, acautelando os seus direitos a uma vida digna, para que a sociedade do futuro seja composta por homens íntegros, são as regras de ouro para a procriação humana responsável e com dignidade. Isto significa um exercício de equilíbrio permanente, dada a fragilidade da natureza ética, realçada por Siqueira99: ―A ordem ética está presente, não como realidade visível, mas como um apelo previdente que pede calma, prudência e equilíbrio. A esta nova ordem Jonas dá o nome de Princípio da Responsabilidade.‖

4. Considerações Finais

Ao discorrer sobre a procriação tivemos presente a preocupação de salientar a liberdade com responsabilidade, imprescindível nas opções individuais. Tendo como fio condutor a dignidade, procurámos sensibilizar a acção humana para a máxima prevenção de situações de risco no início da vida. Enfatizando os deveres de cujo cumprimento derivam os direitos, procurámos ainda promover uma atitude

72 proactiva no alcance de mais dignidade para os que estão ou possam vir a estar sob a nossa protecção.

Todos os autores apresentados defendem os direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos desde que protegidos os direitos e liberdades de terceiros.

Sabemos como Clotet e Feijó (2005, p.9)100que ―os dilemas éticos acompanham o trilhar da história dos homens pois advêm das suas acções‖.

Por isso, como já atrás dissemos, é da responsabilidade de todos a adequação da compatibilidade das acções com a dignidade humana, sendo necessário tomarmos consciência da necessidade de uma mudança de atitude perante a realidade que nos rodeia. É necessário, também, mudar essa realidade promovendo a educação e ensinando e incentivando as famílias a planear o número de filhos em função das suas capacidades; financeira, afectiva e física, que conduzam ao ―estabelecimento de condições indispensáveis para a afirmação da dignidade humana‖ (Patrão Neves, 2001, p.84)101.

100Clotet, J.; Feijó, A.. ―Bioética: uma Visão Panorâmica‖ in Clotet, J.; Feijó,A.; Oliveira, M. G. (Coords.). Bioética: uma Visão Panorâmica. Editora Epicucrs, 2009

101 Patrão Neves, M. C. ―A infertilidade e o desejo de procriar: perspectiva filosófica‖ in Nunes, R.; Melo, H., (Coords.). A Ética e o Direito no Início da Vida Humana. Coimbra: Editora Gráfica de Coimbra, 2001.

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IV. RESPONSABILIDADE ESTATAL

No documento MARIA ALICE DA SILVA AZEVEDO (páginas 81-86)

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