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O Direito de procriar

No documento MARIA ALICE DA SILVA AZEVEDO (páginas 76-81)

III. SOBRE A PROCRIAÇÃO

2. O Direito de procriar

Fala-se frequentemente na liberdade de procriar, quando deveria falar-se em liberdade de analisar a possibilidade de colocar em prática a capacidade física de procriar. Procriar não é um direito, mas uma capacidade. Podemos ter ou não esta capacidade de procriar. Podemos ter ou não o direito de o fazer. Em cada um dos pratos da balança, devem ser colocados, os interesses dos progenitores e os interesses do concepturo, sendo da sua compatibilidade que poderá emergir o direito de procriar.

Falar, pois, do direito à procriação é também reflectir sobre o processo de perpetuação digna da espécie humana. Este direito funciona como premissa do

64 direito à vida digna que se reconhece aos filhos, tocando na situação jurídica da pessoa humanae da sua dignidade

Procriar é gerar filhos, perpetuar a espécie. É facto necessário, corriqueiro e natural (ou pelo menos era natural, porque actualmente também se vislumbra a possibilidade da procriação artificial), que se manifesta no seio familiar, com ou sem casamento, e que gera consequências jurídicas desde antes da concepção e até depois do nascimento do filho (Queiróz, 2006) 87..

O desejo de ter um filho é algo importante para o projecto de vida do indivíduo (Mori, 2001)88, no entanto, não se pode falar de liberdade de procriação exercida de qualquer maneira, mas de uma liberdade responsável.

Nesta problemática do direito e da liberdade da procriação, a maioria dos autores defende que ao exercício do direito de procriar, se contrapõe o direito do filho, havendo, todavia, autores que atribuem à mulher um direito absoluto e incondicional (Gómez Sánchez, 1994).

A Comissão Directiva dos Direitos Humanos do Conselho da Europa entende que o direito a procriar não pode ser considerado um direito absoluto. A este propósito, e quanto à legitimidade de intervenção do Estado nesta matéria, é pertinente voltarmos a citar Queiroz quando diz que a procriação é facto essencial à sobrevivência da espécie humana e, apesar de estar ligada à liberdade individual, não pode ser tratada apenas como um assunto privado, já que os interesses envolvidos são, como é evidente, mais amplos:

Parece intuitivo, ainda, que o exercício do direito à procriação é manifestação do primordial direito à liberdade pessoal, que tão caro deve ser aos seres humanos. É inevitável, portanto, que a discussão deve partir da premissa do fundamental direito à liberdade e dos seus limites em cada situação concreta.

Também se mostra fecundo o debate de ideias em torno do direito à procriação a partir da perspectiva do planeamento familiar, para que se possa compreender o porquê da necessidade da sua realização de forma responsável e com o auxílio do Poder Público, de molde a permitir uma convivência familiar sadia e a protecção ao melhor interesse da criança.

87 Queiroz, V. S. ―Direito à procriação: fundamentos e consequências‖. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 943, 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7905, acesso em 09/04/ 2009.

88 Mori, M. ―Fecundação Assistida e Liberdade de Procriação‖ in Revista Bioética, vol. 9, nº 2, 2001.

65 sentido amplo, significando que em matéria de procriação tudo o que não é proibido é permitido. Segundo Mori, exercer o direito à liberdade de procriar significa agir ou não, podendo então falar-se a este respeito em liberdade positiva e negativa.

(…) a liberdade de procriação comporta dois aspectos diferentes: a liberdade de procriar (ou liberdade positiva), que permite à pessoa ter filhos quando decide tê-los; e a liberdade de não procriar (ou liberdade negativa), que tem o efeito da pessoa não ter filhos quando decide não tê-los. (Mori, 2001, p.57)

Segundo estudos deste autor, na sociedade actual ocidental parece haver uma absoluta liberdade de procriação natural. Porém, em relação à procriação medicamente assistida, emerge a reflexão sobre a liberdade de procriação e os seus limites. Apresenta a liberdade negativa de procriar como um direito civil fundamental e absoluto, porque não prejudica ninguém. Já a liberdade positiva de procriar, como não absoluto, porque pode prejudicar o novo ser a ser gerado, sendo necessário que estejam garantidas as condições mínimas que possibilitem o seu bem-estar. Este autor define como condições mínimas ―vida normalmente saudável e um contexto familiar suficientemente amável‖ ou ―adequada condição de saúde física e um nível de ‗amor parental‘ suficiente‖, afirmando que a menos que haja violação destas condições mínimas, a liberdade positiva de procriar deve ser garantida como um direito civil fundamental. Os limites à liberdade positiva só são justificáveis por razões evidentes da inoportunidade de um novo nascimento e devem valer tanto para a procriação natural como para a artificial (Mori, 2001, p.66-68).

Ainda no tocante a direitos positivos e negativos, dizem-nos Beauchamp e Childress:

Enquanto um direito positivo é um direito de ser provido por outros de um bem ou serviço particular, um direito negativo é um direito de estar livre de alguma acção executada por outros. O direito positivo de uma pessoa traz consigo a obrigação de uma segunda pessoa fazer algo pela primeira; um direito negativo está vinculado à obrigação de uma outra pessoa se abster de fazer alguma coisa… As confusões acerca das políticas públicas… pode ser atribuída a um fracasso em distinguir os direitos positivos e os direitos negativos. (2002, p.91)89

66 Em relação à capacidade de procriar do indivíduo constatamos, em relação à nossa sociedade, que lhe está subjacente o direito negativo e o positivo, o indivíduo pode optar por fazer uso da sua capacidade procriativa, ou de se abster de o fazer, em função do seu livre-arbítrio. No entanto, os direitos não se põem relativamente a pessoas, como nos fala Patrão Neves:

Se a reivindicação do direito a reproduzir pode ser feita, este será de natureza negativa, isto é, um direito de não interferência (de alguém ou de algum organismo) no desejo pessoal de procriar. Foi nesse sentido, que importava prevenir atendendo ao conhecimento da recente história da humanidade, que a ―Declaração Universal dos Direitos do Homem‖ e a ―Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina‖ se pronunciaram ao referirem-se à família. As exigências de assistência médica para o exercício do ―direito reprodutivo‖, implica já a concepção deste como um direito positivo na expressão do direito a um filho. Os direitos, porém, referem-se a bens materiais ou ao estabelecimento de condições indispensáveis para a afirmação da dignidade humana o que, por essência, exclui a possibilidade de se reportarem a um qualquer outro ser humano.‖ (Patrão Neves, 2001, p.83-84)90

O indivíduo pode ter um direito moral ainda segundo Beauchamp e Childress (2002, p.92) e, ao mesmo tempo, não estar a agir correctamente ao exercer esse direito. Isto acontece porque os direitos estão sempre vinculados a obrigações, que os mesmos autores distinguem em perfeitas - por ex. a justiça e imperfeitas - por ex. a generosidade. As primeiras, passíveis de sanções morais e legais aquando do não cumprimento, as segundas, opcionais, nunca têm direitos correlativos. Nas obrigações perfeitas estão incluídas as obrigações parentais de proteger os filhos. Ainda quanto a questões normativas sobre o exercício dos direitos, estes autores dizem-nos:

Com frequência, a indagação que fazemos não é se alguém possui um direito, mas se o direito possuído deveria ou não ser exercido… A obrigação ou o carácter de uma pessoa, e não o seu direito, estão em questão. Mesmo que tenhamos uma teoria completa dos direitos, ainda precisaríamos de uma teoria da obrigação, ao menos do exercício apropriado dos direitos (ibid, p.95).

O desejo de procriar é uma das mais importantes motivações da espécie humana (Nunes e Melo, 2006, p.157)91. É disso que nos fala Vergara, professor de direito

90Patrão Neves, M. C. ―A infertilidade e o desejo de procriar: perspectiva filosófica‖ in Nunes, R.; Melo, H. (Coords.) A Ética e o Direito no Início da Vida Humana. Coimbra: Editora Gráfica de Coimbra, 2001.

91 Nunes, R.; Melo, H. ―Relatório/Parecer nº P/03/APB/05 sobre Procriação Medicamente Assistida.‖ in Nunes, R.; Rego, G. (Coords.) Desafios à Sexualidade Humana. Coimbra: Editora Gráfica de Coimbra, 2006.

67 como fim em si mesmo:

A procriação é consubstancial ao ser humano, algo que imana da sua natureza, um dom essencial para a perpetuação da espécie… é evidente que os seres humanos podem exercer a sua sexualidade como um direito que terá por finalidade conseguir a perpetuação da espécie humana, assim entendido, este seria o chamado direito à procriação, mas, ele não pode levar-nos à conclusão, de que o seu exercício possa ser irrestricto… também devemos considerar as normas morais fundamentais a que o ser humano está ligado… o direito à procriação não deve confundir-se com o direito ao filho – direito que consideramos inexistente porque os filhos são sujeitos e não objectos… (Vergara, 1998)92

Este autor estima que não existe a chamada "liberdade procriativa" ou o direito à procriacão, entendido este como um direito absoluto que permitiria à pessoa exercê-lo segundo o seu livre-arbítrio, consubstanciando esta dedução na dignidade do ser humano em que repousa o estatuto constitucional da pessoa, na questão da procriação está assim em jogo a dignidade intrínseca do ser humano reconhecida na DUDH.

A liberdade individual tem como limite a dignidade do ser humano. Perante as possibilidades que oferece a moderna genética, este autor defende a existência de uma regulação que fixe o seu uso dentro de limites ético-jurídicos, fixando uma fronteira entre o admissível e o proibido na matéria, que sem lesar princípios e direitos constitucionais permita estabelecer restrições legais à ―liberdade‖ individual de procriar. Embora se refira à necessidade de regulação relativamente à PMA, com as suas múltiplas possibilidades e dilemas éticos, a mesma base de raciocínio é adequada também ao campo da procriação natural, onde os dilemas éticos se apresentam com muita frequência e de múltiplas formas.

Ainda segundo Vergara, não é encontrado um reconhecimento explícito do direito à procriação, nem na legislação, nem nas declarações ou pactos internacionais, aparecendo apenas em todos estes documentos referência ao direito a constituir família e à sua protecção por parte da sociedade e do Estado, afirmando que não

92 Vergara, A. B. ―Estudos e Investigações: Dignidade da Pessoa e Reprodução Humana Assistida‖ in Revista de Direito, Vol. IX, n.1 Valdivia, 12/1998, pp. 7-42. Versão on-line. Disponível em: http://mingaonline.uach.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S071809501998000200001

68 pode ser ligado o exercício da liberdade de constituir família ao direito de procriar, pois o que se enquadra na categoria de direito humano, é o exercício responsabilizado da função procriativa. Assim sendo, o direito do indivíduo à procriação não pode ser absoluto, devendo ter em consideração a protecção do potencial ser, isto é, a maternidade e paternidade de forma responsável é feita em função dos interesses do filho a conceber como um valor em si mesmo.

O desejo a um filho convertido no direito a um filho proporcionado pelos avanços tecnológicos, como exposto por Patrão Neves, considerando exclusivamente a liberdade e autonomia dos progenitores, coloca-nos no cerne da nossa discussão, já que faz a centragem da atenção nos pais, secundarizando os interesses do filho a gerar. Lembra esta autora (2008, p.56)93 que ―o princípio da autonomia só é eticamente legítimo em relação ao próprio ou por respeito a outrem e jamais como reivindicação do outro, neste caso, do filho‖ e conclui que ―um filho está absolutamente fora do âmbito de aplicação do princípio ético da autonomia. E, o direito a um filho, seria incompatível com a dignidade do filho.‖

No documento MARIA ALICE DA SILVA AZEVEDO (páginas 76-81)

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