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Realidade actual

No documento MARIA ALICE DA SILVA AZEVEDO (páginas 69-76)

III. SOBRE A PROCRIAÇÃO

1. Realidade actual

A liberdade de acção para a procriação, ou exercício da capacidade reprodutiva do indivíduo, se responsável, deve entrar em linha de conta com a realidade social onde está inserido, assim como das suas potencialidades para assumir o papel de pai/mãe, avaliando sempre as implicações para os concepturos consequentes aos seus actos.

57 individual. Apesar disso ser uma realidade assim entendida do ponto de vista legislativo, sempre nos preocupou, no sentido em que na nossa prática profissional, assim como na nossa vivência social, somos confrontados frequentemente com progenitores que acederam a este direito biológico, mas sem, no entanto, apresentarem competências no desempenho do seu papel de pais. Na verdade, é do conhecimento comum, salvo em situações de anomalia, que o ser humano tem em si capacidade reprodutiva, sendo esta inata. A esta capacidade não está afecta qualquer tipo de competência do cuidar de carácter também biológico. As competências são apreendidas dentro das relações sociais e familiares, dependendo igualmente das características de cada indivíduo na assimilação dos valores sociais e aquisição de competências parentais, indispensáveis à prestação de cuidados e prática dos afectos.

Os indivíduos ensaiam diferentes papéis dentro das redes de relações, tanto primárias (familiares, vizinhos, amigos, colegas), como secundárias (instituições sociais; de saúde, de educação, etc.). É a aquisição deste desempenho que lhes permite viver o seu quotidiano nas diferentes áreas relacionais, na família, no trabalho, nos amigos... Têm também características pessoais que lhes dão apetência para aferir de forma diferenciada os conceitos adquiridos no seu processo de crescimento. A este ponto acrescentamos ainda os projectos de vida individuais e familiares que são marcados pelos percursos e por um conjunto de factores que fazem parte do capital cultural, familiar e social de cada pessoa. É dentro desta linha de pensamento que no nosso quotidiano constatamos indivíduos, pais, que tiveram a liberdade de o ser, com capacidade duvidosa no desempenho do seu papel junto das suas crianças (Ana Augusta, 2005).

Às razões que levam a sociedade a tolerar esta forma de ―liberdade‖, estão subjacentes valores que defendem a supremacia da autonomia individual face ao todo social, mas como sabemos, o bem-estar individual está intimamente ligado ao bem comum, um e outro não se podem dissociar. Sendo assim, a autonomia é sempre relativa, quando estão em jogo interesses de terceiros.

58 No contexto do exercício da autonomia reprodutiva e inserido no Parecer Nº P/02/APB/0577, pode ler-se que ―a autonomia reprodutiva não é um valor absoluto e que a sua consagração enquanto tal, violaria os mais básicos direitos do nascituro.‖ No entanto, estamos inseridos em envolventes humanas, físicas, familiares, sociais, confeccionais, partidárias, que, muitas vezes, condicionam a actuação dos indivíduos face às suas escolhas, ou ausência delas.

A barreira primária de protecção das crianças são os progenitores. Podemos considerar ainda as barreiras secundárias sociais e políticas, no entanto, quando a barreira primária falha, nenhuma das outras a consegue substituir com a mesma eficácia. Sabendo que ―a maioria das pessoas adquire os seus significados de outras pessoas, cujo apoio constante é necessário para que esses significados possam continuar a ter credibilidade‖ (Berger, 1986, p.76)78, é importante garantir

referências sólidas às nossas crianças, o que implica formar indivíduos responsáveis e competentes, capazes de decidir sobre a melhor altura, em que se podem transformar em progenitores capazes de garantir os direitos fundamentais a que todo o ser humano deve aceder ao nascer: físicos, psicológicos, espirituais, familiares e sociais. Irresponsabilidades na concepção poderão implicar consequências menos positivas para o indivíduo, assim como para as gerações futuras. Ao longo dos tempos e ainda hoje se olharmos à nossa volta, observamos situações de fragilidade em que são colocados desde o nascimento alguns seres humanos, que automaticamente ficam habilitados à herança da indignidade humana a que todos ―fecham os olhos‖, pelo respeito à autonomia individual dos seus progenitores

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77Nunes, R.; Rego, G.; Brandão, C., ―Parecer Nº P/02/APB/05 Sobre a Dimensão Ética da

Contracepção de Emergência‖ in Nunes, R.; Rego, G. (Coords.). Desafios à Sexualidade Humana. Porto: Editora Gráfica de Coimbra, 2006. Associação

78 Berger, P. L. (1963). Perspectivas sociológicas: uma visão humanística. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Petrópolis: Vozes, 1986.

59 um significado muito especial, pelo respeito devido ao futuro ser. A DUDH no seu preâmbulo, considera ―que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.‖ Os potenciais seres, têm dignidade e direitos que não podem ser alienados nem ignorados, aquando do planeamento da concepção. A sua garantia é da responsabilidade dos progenitores, que quando incapazes passa para a sociedade e para o Estado. Também a Constituição da República Portuguesa (CRP- 2005)79nos diz no seu artigo 1º, que

―Portugal éuma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana‖.

Em relação à concepção assistida e relativamente aos direitos dos nascituros muito se tem discutido, e irá continuar a discutir, no tocante aos dilemas éticos suscitados pela Procriação Medicamente Assistida (PMA) em múltiplas situações. Estas discussões acabaram por determinar a sua regulamentação que se encontra juridicamente enunciada na Lei nº 32/2006, de 26/7 e actualizada pela Lei nº 59/2007, de 04/09, versão mais recente. Contudo, em relação à procriação natural a discussão está praticamente ausente da sociedade. É aceite como incontestável, indiscutível, instintivo e inerente ao ser humano o acto de procriar, no pressuposto da necessidade que existe em perpetuar a espécie. Ora, como todos sabemos, o Homem não procria por razões altruístas, nem por uma questão de consciência na responsabilidade que tem na perpetuação da espécie (embora seja desejável que isso aconteça). A procriação acontece sempre por razões bem distintas: por pulsão sexual, ―na espécie humana, a capacidade procriativa ou sexualidade genital precede a maturidade psicológica‖ (Renaud, 1999,p.4)80; por pressões sociais,

tradicionalmente o projecto pessoal, social e natural de toda a mulher foi sempre o de procriar (Patrão Neves, 2001), embora seja ―do conhecimento comum que o enunciado ‗desejo de procriar‘ se reporta frequentemente apenas ao ‗egoísmo‘ ou à ‗necessidade‘ que satisfazem com a concretização da criança‖ (ibid, p.80) . Com a

79C.R.P. VII REVISÃO CONSTITUCIONAL [2005].

Disponível:http://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx, acesso em 04/07/2009.

80 Renaud, M. ―A Sexualidade Humana – Reflexão Ética‖ – 29/CNECV/99. Disponível em: http://www.cnecv.gov.pt/NR/rdonlyres/2BCB88BA-0710-473E-B3AE-

60 entrada na idade adulta é isso que socialmente se espera tanto do homem, como da mulher, pelo que a pressão social e cultural no sentido procriativo é um facto.

(…)será importante considerar que as noções de paternidade e maternidade não possuem carácter natural e evidente. A designação de pai e mãe baseia-se num constructo social que é a relação de parentesco (Parseval, 1993). Neste caso, também a família é uma definição social, que visa, é claro, o bem estar da pessoa. Não admira pois, que a pressão se torne constante no sentido do aparecimento de descendência, provocando uma necessidade e consequente tensão psicológica nos casais que, por algum motivo, não conseguem satisfazê-la. Inclusivamente, em algumas sociedades, o grande objectivo do casamento continua a ser a reprodução, pelo que quando tal não acontece, a junção daquelas duas pessoas é considerada um falhanço. (Ricou, 2000, p.137)81

Refere-nos este autor que, ao contrário dos animais, no Homem o instinto de sobrevivência ultrapassa o instinto de conservação da espécie. Existem ainda culturas em que a pressão para o casamento e a procriação acontece mesmo antes da chegada à idade adulta.

(…) no nosso país, até há bem pouco tempo a grande maioria das raparigas terminava a infância, deixava a escola e era ―empurrada‖ para o trabalho e/ou para o casamento. Esta ainda é uma realidade que se faz também sentir noutros países, noutras sociedades e sub-culturas. Aí a adolescência não é reconhecida como tal. Em casos mais extremos, por volta dos 12/13 anos as raparigas, consumam casamentos planeados e/ou desejados por terceiros… e engravidam.

(…) uma jovem que se revela estéril, ou cujo marido é estéril, corre o risco de ser rejeitada, quer pelo seu marido quer pela sua família, e assim, de perder o pouco prestígio de que beneficia (OMS, FNUAP e FISE, 1989).

(…)Em determinadas culturas (como sejam a cigana e a cabo-verdiana) a maternidade precoce, para além de ser bem aceite, é mesmo desejada (Fonseca e Lourenço, 1993). A gravidez gratificaria a adolescente, valorizando-a aos olhos do companheiro e dos seus congéneres. Contam-nos Ventura et al. (1991) que na Índia, ainda há bem pouco tempo, o facto da mulher atingir os quinze anos sem ter filhos era motivo de penalização social. (Lourenço, 1998, p.20, 45 e 52)82

A procriação também acontece por interesses pessoais; ter alguém a quem deixar a herança, ou que dê continuidade aos negócios ou ao nome da família; por razões

81 Ricou, M. ―Inseminação artificial com recurso a dação de gâmetas: Implicações psicológicas‖ in Nunes, R; Melo, H. (Coords.) Genética e Reprodução Humana. Coimbra: Editora Gráfica de Coimbra, 2000.

82 Lourenço, M. M. C. Textos e contextos da Gravidez na Adolescência. A Adolescente, a Família e a Escola. Lisboa: Fim de Século Edições, 1998.

61 cuidar dos progenitores, renunciando a constituir a sua própria família (Esquivel, 2008)83; por razões económicas, inúmeras situações de trabalho infantil e de exposição de crianças à caridade alheia, para suportar as despesas familiares, quando os adultos se divorciam das suas responsabilidades no seio familiar. Pior ainda quando são concebidos com o objectivo de se tornarem fonte de rendimento, ao atraírem subsídios estatais; por acto irreflectido, ou por dificuldade, ou incapacidade em gerir necessidades fisiológicas; acontece também, com muita frequência a concepção de uma criança para salvar uma relação que se deteriora.

Estes são alguns exemplos, mas muitos mais poderiam ser referidos, que justificam que a procriação não resulta de um acto altruísta. Na maioria dos casos, o filho não surge como um fim em si mesmo, mas como um meio para atingir determinados fins. O que significa sofrer instrumentalização e perder direitos.

Onde fica nestas situações a dignidade do ser humano, base da Constituição da República Portuguesa?

Numa sociedade sujeita a um regime democrático, os direitos e liberdades individuais são bens considerados de extrema importância, daqui se inferindo na sequência do que atrás ficou exposto, que esses direitos também devem ser equacionados no planeamento da concepção e em relação ao novo ser a ser gerado. É aqui que esta dissertação considera a importância ou não da existência do direito e da responsabilidade. A este respeito diz-nos Aivanhov (1999, p.12)84, ―quantas pessoas há que querem ter filhos mas não se preocupam em saber se reúnem realmente condições para isso: se têm boa saúde e meios materiais para os criar e, acima de tudo, se possuem as qualidades necessárias para ser, para essas crianças, um exemplo, uma segurança, um conforto em todas as circunstâncias da vida!‖. E perante a inconsciência de muitos progenitores, noutra passagem da sua obra interroga-se - ―como puderam os humanos descer tão baixo, a ponto de deixarem ao acaso esse acontecimento tão importante: a concepção de um filho?‖ (p.20)

83 Esquivel, L. Como Àgua para Chocolate. Espanha: Edições Asa, 2008.

62 O Plano Nacional de Saúde 2004/201085 da Direcção Geral da Saúde, e na sua abordagem centrada na família, diz-nos que há uma elevada cobertura em cuidados de saúde reprodutiva, mas que se mantém baixa a cobertura em consultas médicas pré-concepcionais. Algo a precisar de análise e reflexão nos aspectos quantitativos, mas sobretudo qualitativos. É na fase pré-concepcional que muito pode ser feito pelos direitos das crianças, onde a viragem para uma sociedade mais digna é possível, ondeo superior interesse da criança pode ser acautelado.

Defendemos que um filho não pode ser instrumentalizado, é um ser humano irrepetível, nasce livre e com direitos inalienáveis, ―porque cada criança é um ser único, insubstituível, digno de carinho, dos cuidados que necessita e de toda a atenção para ser feliz‖ (Oliveira, 2004, p.37)86. Porém, sabemos que a procriação

natural em determinados contextos anula a dignidade do futuro ser, violando as disposições expressas no artigo 1º da DUDH que nos diz que ―todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos‖, e reforça o direito à liberdade e à segurança pessoal no seu artigo 3º. Também a CRP nos seus artigos 26º e 27º, reforça o direito ao desenvolvimento da personalidade e o direito à liberdade e à segurança. A protecção dos direitos e liberdades de terceiros, é indispensável à dignidade do ser humano, sendo particularmente relevante a análise desta problemática na fase pré-concepcional.

A DUDHpugna pelos direitos e liberdades humanas, mas entende a sua limitação legítima quando em defesa e protecção dos direitos e liberdades de terceiros. Direitos e liberdades absolutas não existem em democracia, precisamente porque devem existir direitos e liberdades para todos.

Como seres racionais devemos agir eticamente, mas sabemos como atrás deixámos exposto que ―a universalidade dos juízos éticos exige que não pensemos apenas nos nossos próprios interesses, levando-nos a adoptar um ponto de vista no qual temos de considerar igualmente os interesses de todos os que são afectados pelas nossas

85 Portugal. Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde. Plano Nacional de Saúde 2004/2010: mais saúde para todos – Lisboa: Direcção-Geral da Saúde, 2004 – 2V. Vol. I – Prioridades, Vol. II Orientações estratégicas.

86 Oliveira, J. M. G.‖ Porque o Melhor do Mundo São as Crianças‖ in Revista do Hospital de São João de Deus, SA. Nº 1, 2004, pp. 34-37.

63 acções‖ (Singer, 2002, p.341). Na nossa presente discussão, os interesses daqueles que a nossa capacidade de procriar nos permita gerar.

Sabemos que, ―provavelmente, o Homem é o animal que, quando nasce, se encontra num estado de maior dependência, sendo que é a partir dela que ele se constrói. Somos, por isso, no início do nosso desenvolvimento, totalmente dependentes das pessoas que se responsabilizam por tomar conta de nós.‖ (Ricou, 2004, p.151). Daí a importância da qualidade de quem está presente neste início.

Ainda segundo este autor, quanto maior for a confiança que depositamos nessas pessoas e a segurança que elas nos conseguirem transmitir, maior será a nossa capacidade em adquirir competências sociais e forjar uma verdadeira autonomia, sendo esta indispensável ao indivíduo cuidado, que será um dia, por sua vez cuidador.

Somos confrontados a cada momento no nosso quotidiano com situações de escolha, em que temos de decidir pelo ideal, pelo possível, pelo mal menor. É esta capacidade de decisão que precisamos de estimular e de reforçar nas crianças de hoje, que serão os adultos de amanhã. Para tentar clarificar esta problemática da procriação vamos analisar a liberdade e os direitos que lhe subjazem.

No documento MARIA ALICE DA SILVA AZEVEDO (páginas 69-76)

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