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3. DISCURSO, LINGUAGEM, E A PSICOLOGIA SOCIAL DISCURSIVA

3.1 A linguagem e a construção da realidade

Serão discutidos a partir de agora os principais conceitos da Psicologia Social Discursiva que subsidiam este trabalho. Considerando-se a importância da linguagem e do discurso em tal abordagem, a discussão se dará em torno principalmente da forma como ambos criam versões do mundo que atendem a determinados posicionamentos e interesses.

3.1.1 O discurso e a metáfora da construção

O papel exercido pela linguagem e pelo discurso no mundo humano, de acordo com Potter (1998), pode ser entendido a partir da contraposição entre duas metáforas muito difundidas no meio acadêmico. As duas metáforas tentam explicar o papel da linguagem na suposta expressão ou construção da realidade: são as metáforas do espelho e a da construção. Façamos um breve esboço de cada uma.

A metáfora do espelho advoga que a linguagem reflete a realidade (ou o conjunto de objetos do mundo, como diz Potter) tal como ela é. Quando fazemos relatos de acontecimentos ou descrições, por exemplo, estamos realizando uma representação cujo conteúdo pode ser considerado factual e verdadeiro, se se aproxima de um bom reflexo do real (no caso, se o espelho que é a linguagem reflete com fidelidade o que é refletido), ou pode ser considerada mentira, falsidade ou deturpação, se o espelho parece deformado. Salienta Potter (1998) que essa metáfora sugere uma certa passividade da linguagem e do próprio ser humano em relação ao mundo. Afinal, o uso da linguagem serviria tão somente para expressar o que o mundo nos transmite. Nada teríamos de ativos nessa relação. Um exemplo do uso dessa metáfora pode-se ter no discurso científico, principalmente da ciência empirista. Há a idéia nessa concepção de ciência de que os dados observados falam por si sós, ou seja, que as conclusões e análises do cientista foram realizadas somente de acordo com o que os próprios dados colhidos demonstraram, dando a idéia de que não houve interferências subjetivas humanas naquela atividade.

Com relação à metáfora da construção, Potter (1998) afirma que ela funciona em dois níveis diferentes. Primeiramente, ela advoga que as descrições e relatos, em vez de simplesmente refletirem como um espelho a realidade, na verdade a constrói. Além disso, num segundo nível essas próprias descrições são construídas, são uma atividade humana, e, assim, poderiam ser feitas de outras formas. Ou seja, elas são construtivas e construídas.

65 Desse modo, não há relatos e descrições últimas sobre o mundo, mas versões. Em relação ao papel da linguagem, essa metáfora apresenta uma grande diferença em comparação à do espelho. Enquanto nesta última o espelho simplesmente reflete passivamente o que recebe, na metáfora da construção as pessoas e suas falas fabricam ativamente o mundo em que vivem, o que traz conseqüências importantes para a responsabilidade que temos ao dizer coisas. Nas palavras de Potter (1998, p. 130):

A realidade se introduz nas práticas humanas por meio das categorias e descrições que formam parte dessas práticas. O mundo não está categorizado de antemão por Deus ou pela Natureza, de uma maneira que todos nos vemos obrigados a aceitar. Constitui-se de uma ou outra maneira a medida em que as pessoas falam, escrevem e discutem sobre ele.11

Assim, o modo como categorizamos e descrevemos homens e mulheres e suas funções na sociedade, por exemplo, diz muito de nossa cultura, e estas configurações se formam na medida em que falamos, escrevemos e discutimos sobre isso. De acordo com Wetherell e Potter (1992), mesmo a plausibilidade do conhecimento científico depende tanto quanto o conhecimento leigo de certas formas discursivas que, socialmente, lhe garantem respeito e dão uma idéia de veracidade. De fato, o que ocorre é que o que é considerado falso ou verdadeiro dentro da ciência muda regularmente, e não se pode considerar nenhuma teoria científica como definitivamente correta e atemporal, sem mais tarde ter que se deparar com inúmeros argumentos contrários. Não existem fatos nem dados que falem por si sós, independentes de uma interpretação, de uma versão. O modo de se expressar da ciência empirista é, também, uma construção discursiva, embora a maioria dos cientistas alinhados a essa perspectiva discorde disso, obviamente.

Existem inúmeras teorias diferentes que se baseiam em princípios construcionistas. Porém, pode-se dizer que elas têm uma base em comum, como veremos a seguir, e que orienta este trabalho. Gergen (1994 apud Potter, 1996) aponta algumas características básicas de uma visão construcionista da linguagem. Segundo ele, os termos e formas pelos quais nós compreendemos o mundo e nós mesmos são artefatos sociais, produtos de relações interpessoais situadas histórica e culturalmente. Uma determinada versão do mundo, dessa forma, não é mantida através do tempo pela sua validade objetiva, mas sim pelas vicissitudes

11 Tradução livre. Original em espanhol: “La realidad se introduce en las prácticas humanas por medio de las

categorias y las descripciones que forman parte de esas prácticas. El mundo no está categorizado de antemano por Dios o por la Naturaleza de una manera que todos nos vemos obligados a aceptar. Se constituye de una o otra manera a medida que las personas hablan, escriben y discuten sobre el.”

66 do processo social. Dado o caráter situado do discurso, estudá-lo significa, assim, estudar padrões culturais. Refletindo-se esse ponto, torna-se mais claro entender, segundo Potter (1996), o porquê de nas abordagens construcionistas as fronteiras entre Psicologia, Sociologia, História e Antropologia se tornarem obscuras.

Essa perspectiva construcionista inviabiliza tentativas de definir distinções simplórias entre o discurso descritivo verdadeiro e o discurso supostamente distorcido. Na análise do discurso da Psicologia Discursiva, a questão da verdade na construção da realidade se organiza de tal modo que não se trata mais de descobrir a veracidade ou falsidade de uma afirmação, mas sim de descobrir que mecanismos lingüísticos fazem com que uma afirmação pareça verdadeira ou falsa, ou seja, como eles são construídos como “fatos” livres de subjetividade, espelhos da realidade, ou como distorções, ou falsas representações. De acordo com Wetherell e Potter (1992), um dos perigos da perspectiva representacionista da realidade é que, ao trabalhar com a noção de verdade e falsidade, ela pode negligenciar, em nome de uma suposta objetividade, a realidade das práticas ideológicas implícitas nas orientações funcionais do discurso. Porque a orientação funcional do discurso não está necessariamente explícita em seu conteúdo.

Wetherell e Potter (1996) afirmam que o discurso é construído, em parte, com base no fato de que ele está conscientemente ou não orientado para a ação, e isso faz com que variemos o que falamos de acordo com nossos interesses particulares. Longe de ser um reflexo do que se passa na mente ou a mera descrição objetiva das coisas, o discurso se faz com base em construções com funções próprias, orientado para determinadas direções, o que o torna, essencialmente, algo construído. Para os autores, o termo construção é apropriado por três razões. Primeiramente, porque orienta o pesquisador para o lugar onde o discurso se fabrica a partir de recursos lingüísticos pré-existentes e com características próprias. Em segundo lugar, porque deixa claro que, embora o sujeito tenha à sua disposição estes recursos pré-existentes, ele escolhe o que for mais conveniente para suas intenções. Em terceiro lugar, o termo construção destaca o fato de que, baseado nas escolhas que fazemos, o discurso tem conseqüências práticas, e constrói o mundo em que vivemos.

3.1.2 A Psicologia Social Discursiva

A Psicologia Social Discursiva (PSD, de agora em diante), de acordo com Potter e Edwards (2001), é a aplicação de várias idéias da análise do discurso para os principais

67 tópicos pesquisados pela Psicologia Social. A PSD considera o discurso como fundamentalmente orientado para ação e construtor da realidade, e considera as ações realizadas no discurso como partes de práticas situadas. Potter e Edwards (2001) argumentam que enquanto a maioria das teorias psicológicas considera que existe uma realidade e uma mente fora da linguagem, a Psicologia Social Discursiva busca entender como tanto a noção de realidade quanto de mente são construídas pelas pessoas na linguagem, na medida em que atuam na sociedade em torno de determinadas intenções.

A PSD, de acordo com Potter e Edwards (2001), é construcionista em dois sentidos diferentes. Primeiramente, porque ela estuda o modo como o próprio discurso é construído. Para eles, as palavras, metáforas, idiomas, artifícios retóricos, descrições, relatos, formas gramaticais, etc., são construídos a partir da interação e na realização de ações determinadas. Em segundo lugar, ela estuda como o próprio discurso constrói versões do mundo. O discurso é, para Potter (1996), o princípio organizador central do processo de construção do mundo. Ou seja, como já foi mencionado anteriormente, para a PSD, o discurso é produtor e produzido. De acordo com os autores, (2001, p. 106), “a construção é estudada na Psicologia Social Discursiva como o processo de montar e tornar estáveis versões para fazê-las como factuais e independentes de seus produtores”12.

Para Wetherell, Stiven e Potter (1987), a Psicologia Social Discursiva traz a possibilidade de lidar com o fato de que as falas e os textos, as ideologias expressas, os repertórios interpretativos, são na maioria das vezes contraditórios e inconsistentes. As pessoas têm comportamentos, opiniões, descrições, etc., que muitas vezes se chocam com o que disseram antes e irão dizer depois, de modo que uma análise do discurso que leve em consideração este fato possibilita uma compreensão melhor das ações e ideologias que estão sendo expostas nas falas e textos. Longe de ser um problema, a variação e contradição são recursos que facilitam a análise de tais ações.

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