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3. DISCURSO, LINGUAGEM, E A PSICOLOGIA SOCIAL DISCURSIVA

3.5 Versões e factualidade

A Psicologia Discursiva de Potter (1998) entende a construção social da realidade a partir de três aspectos analíticos. Primeiramente, é anticognitivista. Isso significa que sua compreensão da construção não é como um processo mental que comportaria o aparato cognitivo de esquemas, memórias e representações sociais. De acordo com o autor, esta perspectiva desvia a atenção do modo como se organizam os relatos factuais e do modo como eles se encaixam nas interações particulares. Uma orientação cognitivista tende a um individualismo que se distancia de uma visão da construção dos fatos como prática humana social. O segundo aspecto destaca a importância do discurso enquanto prática social, e não como reconstrução dela. O terceiro ponto destaca a organização retórica da construção dos fatos.

Com relação a esta idéia de que o que existem são versões da realidade, Potter (1998) destaca, baseado neste ponto, a importância da retórica como um aspecto da relação antagônica entre versões, pois ela tratará de como algumas versões se contrapõem a outras alternativas, e como se organizam, ao mesmo tempo, para resistirem a uma oposição.

Para Potter (1998), o discurso descritivo e factual, além de ter uma orientação para a ação, tem também uma orientação epistemológica. Ou seja, ao se fazer uma descrição, há por um lado uma ação a se realizar através desta descrição. Por outro lado, há um interesse, por

82 quem faz uma descrição, de construí-la de modo a lhe dar um status de versão factual, de mostrá-la como uma descrição fiel da realidade tal como ela é, e não como uma simples versão. Porém, ele argumenta que essas duas orientações são inseparáveis, se mesclam e se vinculam com a ação em si. Potter (1998) afirma que as descrições são usadas como meios de realizar uma ação porque normalmente as ações em questão podem ser consideradas de alguma forma problemáticas. A aparência factual que esta construção discursiva lhe dá, dessa forma, possibilita que ela seja orientada para a ação ao mesmo tempo que tem um aspecto de objetividade, neutralidade e frieza, ou seja, independência em relação a quem fala. Assim, elas buscam controlar o chamado dilema da conveniência, ou seja, controlar a relação entre o que uma pessoa diz e as prováveis acusações de seus interesses pessoais em dizer o que diz. Esse é um aspecto fundamental da produção de um discurso factual, e gerenciar adequadamente essa questão é essencial para quem quer produzir uma versão dos fatos que seja confiável para quem ouve.

Dessa forma, a aparência factual de supostamente ser um relato fiel da realidade é uma característica construída discursivamente, com ajuda da retórica, embora as pessoas usualmente não tenham plena consciência desta característica de suas falas. Há inúmeros recursos para transformar uma versão da realidade em algo factual. Como afirma Potter (1998), os processos de construção de fatos não precisam atuar simplesmente sobre eles, pois podem também atuar sobre os recursos que formam os fatos. De acordo com o autor, eles buscam coisificar as descrições para que elas pareçam sólidas e literais. De modo inverso, existem outros recursos que buscam desqualificar uma dada versão, para que ela perca seu caráter factual.

O autor (op. cit.) divide o processo de construção de fatos em dois grupos. Primeiramente, existem os recursos que se focam na identidade do falante, que permitem, por um lado, desmerecer uma descrição factual pelas conveniências e interesses de quem fala, e por outro, permitem fortalecê-las aludindo à sua autoridade. Há, neste ponto também, as vacinas para se proteger contra acusações de conveniência. Em segundo lugar, estão os recursos que tentam destacar a independência existente entre o falante e a descrição.

Com relação ao argumento pela autoridade, Potter (1998) afirma que, se se acredita que certas categorias de pessoas têm um conhecimento maior sobre determinadas coisas, então as informações e descrições apresentadas por estas pessoas terão um crédito especial junto a quem ouve. É uma estratégia bastante utilizada pela mídia, que para tornar suas versões dos fatos mais plausíveis aos leitores, trazem regularmente opiniões dos chamados

83 especialistas, que servem de fiadores às opiniões da imprensa. Ou mesmo quando contamos uma história e a creditamos a “um amigo”. O fato de ser um amigo de quem fala, mesmo que desconhecido do resto das outras pessoas, aumenta a credibilidade da história. Essa atitude é, como não poderia deixar de ser, negociada retoricamente, e existem formas de desmerecê-la.

Potter (1998) traz também ao debate sobre a factualidade das descrições a questão dos detalhes. De acordo com ele, esse aspecto constitui-se como muito importante para transformar uma versão da realidade em algo que seja considerado fiel. Descrições detalhadas minuciosamente ajudam, por exemplo, a dar crédito a uma determinada descrição de um fato, pois dão a impressão de que o falante esteve presente e, mesmo que não sejam importantes para a descrição em si, creditam autoridade àquele que fala. Além disso, o interesse em detalhar às vezes se junta ao interesse em organizar a descrição na forma de uma narrativa. Esta forma é utilizada para aumentar a credibilidade de uma descrição, porque a insere numa seqüência na qual o que se descreve torna-se algo esperado, ou até mesmo necessário. Por outro lado, há ocasiões em que a vagueza é mais adequada à intenção de tratar uma descrição como factual, pela possibilidade de manter uma descrição orientada para a ação sem a necessidade de inserir informações que poderiam ser questionadas. O autor (op. cit.) argumenta que tratar o gerenciamento do detalhamento como uma construção retórica não significa de modo algum que ele não tem importância na construção de fatos, mas sim que se pode produzi-lo e desenvolvê-lo pelas suas propriedades em tal atividade.

Diante de tamanha complexidade, se torna difícil manter a posição de que a linguagem é um espelho da realidade, porque para as mais simples descrições há diferentes formas pelas quais o sujeito pode optar em suas escolhas lingüísticas e retóricas. Assim, as escolhas que se faz durante o discurso revelam bastante da própria orientação e dos interesses do orador. Uma conclusão que Potter et al. (1990) tiram destas considerações é que estamos lindando, todo o tempo, com construções discursivas ou versões do mundo. Se cada um tem múltiplas opções de como atingir seus fins através da fala, então o que se nos apresenta são argumentações, são versões de um mundo que pode bem ser apresentado em outros termos diferentes. Dessa forma, os textos e falas constroem o mundo, já que cada um fabrica seu discurso sobre ele de acordo com suas escolhas conscientes ou inconscientes.

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